QUERIDOS AMIGOS E AMIGAS, CAROS LEITORES

Formigas no Frasco – Uma Reflexão

Permitam-me, antes de tudo, dirigir-me a vós com a serenidade que mereceis. Embora os temas que aqui abordo sejam, por vezes, candentes e envoltos nas chamas do debate político, dirijo-me especialmente àqueles que, sensíveis e ponderados, preferem não se deixar consumir pelo fogo das paixões partidárias. É, de facto, lamentável observar como a defesa de um ponto de vista político pode, tantas vezes, transformar-se em motivo de exaltação e desavença. Mais triste ainda é constatar que, na era da informação, somos constantemente bombardeados por narrativas manipuladas, mesmo por veículos que se presumem sérios. Seria uma pena permitir que essa torrente de desinformação — esse lixo que nos é servido como verdade — pusesse em risco os laços que nos unem, seja na família, seja entre amigos.

As elites políticas, aqueles que se reúnem em Bruxelas, Londres ou Washington, não nos levam a sério, nem perguntam se estamos de acordo. Procuram influenciar-nos, sim, mas será que devemos, em contrapartida, dar-lhes a importância que reclamam para si quando grande parte do que nos apresentam é mentira? Ou será mais sensato voltarmos o nosso olhar para o que verdadeiramente importa: o nosso bem-estar físico e emocional, as relações que nutrimos, a harmonia que construímos no nosso quotidiano?

A propósito, recorro a uma imagem de Mark Twain que, embora singela, encerra uma profunda sabedoria. Imaginemos um frasco. Dentro dele, colocamos um grupo de formigas pretas e outro de formigas vermelhas. Inicialmente, cada uma segue o seu caminho, ocupada com as suas tarefas, sem incomodar as outras. Há uma paz frágil, mas palpável. Agora, imaginemos que alguém pega nesse frasco e o agita vigorosamente. O que acontece? As formigas, antes pacíficas, começam a lutar umas contra as outras. O medo, insuflado de fora, desencadeia nelas um instinto de defesa agressiva, transformando-as em inimigas.

Esta metáfora, caros amigos, é um espelho do que vivemos hoje. A política, nas suas múltiplas e enganosas facetas, agita o frasco da nossa sociedade. Mexe com as nossas inseguranças, alimenta os nossos medos, e põe-nos uns contra os outros. E, enquanto nós nos gladiamos, distraídos pela confusão, os que agitam o frasco seguem impunes, alcançando os seus fins, que no contexto em que nos encontramos são maldosos.

Não permitamos que isso aconteça. Deixemos a maldade para eles. Não nos deixemos levar pela agitação do frasco. Em vez disso, cuidemos do nosso bem-estar, das nossas relações, da nossa paz interior. Como as formigas antes de serem perturbadas, busquemos a harmonia possível, mesmo num mundo empenhado em nos dividir.

Com muita estima no sentido da reflexão

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A União Europeia e o Malogrado Encontro Zelensky-Trump

Necessidade de uma Europa mais Latina e menos Anglo-Saxónica

O recente e malogrado encontro entre Volodymyr Zelensky e Donald Trump expôs, mais uma vez, as fragilidades da União Europeia (UE) no cenário geopolítico global. Este episódio poderia ter sido uma oportunidade para a UE refletir sobre o seu papel e estratégia, mas, infelizmente, a cegueira política e a falta de visão própria continuam a dominar. A UE insiste em seguir um caminho que não só a afasta de uma solução ética e equilibrada para os conflitos, como também a mantém refém de uma visão maniqueísta e anglo-saxónica, que pouco contribui para a paz e a estabilidade globais.

A Cegueira da União Europeia e a Aposta na Guerra

A UE, ao apoiar de forma indiferenciada Zelensky e ao insistir numa estratégia belicista, demonstra uma profunda impreparação para lidar com a complexidade do conflito geopolítico atual. A aposta numa única cartada, alinhada com os interesses dos Democratas americanos, revela uma falta de autonomia estratégica e uma submissão a agendas externas. Esta postura não só contribuiu para o agravamento do conflito, como também impediu a UE de assumir um papel mediador e construtivo.

O apoio incondicional a Zelensky e a narrativa simplista de que a guerra começou em 2022 são exemplos de uma visão preconceituosa e reducionista. A UE, ao adotar esta postura, ignora as raízes profundas e multifacetadas do conflito, preferindo uma abordagem emocional e maniqueísta que impede a resolução do problema. Esta cegueira política é, em grande parte, resultado da influência anglo-saxónica, que domina as instituições europeias e impede uma visão mais abrangente e integradora. Encontramo-nos em tempos de reorganização geopolítica que não pode ser reduzida pela EU a uma mera questão de contendas entre a Rússia e a Ucrânia.

A Necessidade de uma Europa Mais Latina e Menos Anglo-Saxónica

Para encontrar um caminho próprio e eficaz, a UE precisa de se libertar da influência anglo-saxónica e abraçar uma visão mais latina. Esta mudança implicaria uma síntese entre razão e emoção, entre diálogo e acção, e uma rejeição da dialética maniqueísta que domina o discurso político actual. A Europa foi outrora grande precisamente pela sua capacidade de integrar diferentes perspetivas e encontrar soluções equilibradas. Hoje, no entanto, parece ter perdido essa capacidade, preferindo seguir agendas externas e adotar posições polarizadas.

A infeliz peça teatral entre Trump e Zelensky poderia ter sido uma lição para a UE. Em vez de seguir cegamente os interesses de uma das partes, a UE deveria ter aproveitado a oportunidade para promover conversações e encontrar uma solução negociada. No entanto, a insistência numa estratégia belicista e a falta de visão própria impediram que isso acontecesse.

O Papel do Cidadão Europeu e a Necessidade de uma Reflexão Ética

O cidadão europeu foi, em grande medida, enganado. A narrativa dominante apresenta o conflito geopolítico como um simples embate entre duas nações, ignorando as complexidades e os interesses externos que o alimentam. Esta visão reducionista não só distorce a realidade, como também impede uma reflexão ética e profunda sobre o conflito.

Na discussão pública, predominam discursos emocionais e polarizados, que pouco contribuem para uma compreensão real do problema. Partidos de direita e esquerda arvoram-se em detentores da verdade, esquecendo que a grandeza da Europa reside na sua capacidade de integrar diferentes perspetivas e encontrar soluções equilibradas. O que falta é uma abordagem que combine cabeça e coração, que encare a situação com racionalidade, mas também com empatia e ética.

A UE precisa urgentemente de mudar de rumo

A UE precisa urgentemente de mudar de rumo e começar por reciclar o lixo ideológico. O destino político da Europa será semelhante ao dos Estados Unidos que passou de socialista para conservador republicano. Para isso a EU terá de deixar de ser uma mera extensão dos interesses anglo-saxónicos e abraçar uma visão mais latina, que valorize o diálogo, a síntese e a integração de diferentes perspetivas. Só assim poderá encontrar um caminho próprio e contribuir para a resolução ética e equilibrada dos conflitos geopolíticos. Ou será que queremos continuar a marcar passo na luta cultural “protestantismo” – “catolicismo” e na pura dialética marxista de caracter maniqueu quando são precisas sínteses.

O encontro malogrado entre Zelensky e Trump deveria servir como um alerta. A UE não pode continuar a apostar numa estratégia belicista e maniqueísta. Em vez disso, deve promover conversações e encontrar soluções negociadas, baseadas numa consciência ética e numa visão abrangente do conflito. O exagerado compromisso entre EU e Ucrânia fecha as portas a conversações amigáveis que seriam proveitosas para todos, a longo prazo. Esperemos que a UE aprenda a lição e encontre, finalmente, o caminho da paz e da estabilidade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

“COMPLEXO DE DEUS”: A ILUSÃO DA OMNIPOTÊNCIA E A DECADÊNCIA DA SOCIEDADE MODERNA

A sociedade contemporânea vive sob a ilusão de que o ser humano pode tudo e da crença no progresso. Essa crença na omnipotência, que o psicanalista Horst-Eberhard Richter chamou de “Complexo de Deus”, não é apenas uma perturbação psicossocial, mas um factor central da decadência moral e cultural que vivemos hoje. No seu livro “Complexo de Deus”, Richter descreve a civilização ocidental moderna como marcada por uma reivindicação de uma omnipotência egocêntrica e quase divina, que ignora os limites da condição humana. Essa ilusão de grandeza, no entanto, é uma fuga frágil diante das crises que nos assolam. Donald Trump expressa de maneira extrema o narcisismo que se tem mantido encoberto nas nossas elites políticas, dado o processo partidário para se conseguir furar no partido, em geral   pressuporem predisposições narcisistas e um mínimo de cumplicidade.

Os sentimentos de impotência, baixa autoestima ou problemas não resolvidos da infância podem resultar na superestimação das próprias capacidades, criando assim a distorção psicológica do chamado “complexo de Deus“. Este fenómeno leva ao dogmatismo das opiniões e à ilusão de infalibilidade, como se a próprio ponto de vista fosse o único correto. Essa postura impede o desenvolvimento do autoconhecimento e da autocompreensão. Uma convivência equilibrada com os outros promove uma avaliação realista de nossas capacidades e limites, em contraste com uma identidade baseada em projeções idealizadas de si mesmo. No entanto, a sociedade contemporânea frequentemente demonstra um absolutismo categórico, especialmente nos meios de comunicação, onde falta autorreflexão. Vivemos numa “democracia mediática” que não fomenta o pensamento crítico, mas apenas a busca por seguidores e a adesão ao mainstream.

Na política e nos media, esse fenómeno manifesta-se como um absolutismo categórico. Vivemos numa “democracia mediática” que não fomenta o pensamento crítico, mas apenas a busca por seguidores e a adesão ao mainstream. Em tempos de guerra, esse complexo intensifica-se, fomentando uma mentalidade maniqueísta e dicotómica, em que tudo é reduzido a “bem” ou “mal”. A política da União Europeia, por sua vez, parece cair na tentação de um “imperialismo mental” ao querer com base nos valores europeus justificar até acções de violência (como se pode ver nas orientações da NATO de Madrid.) possivelmente por medo de não sobreviver à crise actual.

Esse mesmo complexo também se manifesta nas relações interpessoais. Manter distância emocional de pessoas que sofrem dessa ilusão de grandeza é essencial para evitar ser arrastado para a mesma inquestionabilidade que pode criar-se em ambientes tóxicos. No dia a dia, muitas pessoas vivem como se fossem permanecer para sempre na meia-idade, ignorando a inevitabilidade da doença e da morte. A segurança e o conforto na Europa conduziram muitos, especialmente governantes, a um narcisismo que se torna um sacrilégio frente ao resto do mundo.

A ideia do “super-homem” de Nietzsche, embora fascinante, é unilateral e conduz ao sofrimento, pois desconsidera a dimensão humana da existência. Bento XVI, ao alertar sobre esse perigo, afirmou: “Onde a ação humana já não corresponde à existência humana, a verdade transforma-se em mentira”. Como meios para combater esse problema, torna-se necessário revalorizar as raízes da civilização ocidental e cultivar, a nível pessoal, valores como compaixão, humildade e paciência.

A Europa, saturada por ideologias que priorizam o materialismo e o niilismo, precisa questionar-se sobre o seu próprio sentido e direcção. Embora não seja adequado comparar a cólera com a peste, cabe perguntar: qual o maior mal? O conservadorismo de Trump ou o socialismo materialista que nos colocou num labirinto sem aparente saída?

No passado, a sociedade contava com intelectuais que forneciam orientação e autoridade moral, muitas vezes em oposição aos governantes. Durante séculos, a Igreja desempenhou esse papel. Atualmente, no entanto, os meios de comunicação substituíram esses intelectuais e alinharam-se aos interesses dos governantes, limitando-se a promover discussões superficiais entre opositores rivais.

A grande tragédia da Europa é sua submissão ao marxismo cultural da Escola de Frankfurt e ao “wokismo” que o acompanha, com governos carentes de políticos honestos. Faltam-nos líderes conscientes das colunas que formaram a identidade europeia: Roma, Jerusalém e Atenas.

O extremismo narcísico apoiado pelo grande capital leva as grandes potências a lutar pela hegemonia e dificulta uma política de bem comum. Assim o que restará para o povo é o que fica dos militares e da luta das corporações económicas entre si.

Vivemos uma época dominada por fantasias de omnipotência, tanto no plano político como no individual. Diante desse cenário, a construção de um modo de vida significativo exige uma consciência coletiva e solidária. O desafio é substituir a ilusão de grandeza pela humildade de reconhecer os nossos limites e agir em harmonia com os outros. A resposta à crise não está na subordinação de todas as ações à economia, como defende Trump, mas no resgate de uma cultura baseada no “nós”, que valorize a compaixão, a reflexão crítica e o respeito pela condição humana (“amor ao próximo”).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

“ROMA” E “BRUXELAS” DIALOGANDO

Era uma noite fria e silenciosa em Bruxelas. As estrelas pareciam distantes, como se também elas tivessem perdido a fé na Europa. No coração da cidade, onde as instituições da União Europeia se erguiam imponentes, duas figuras marcantes se encontravam frente a frente: Roma e Bruxelas. Não eram meros lugares ou cidades, mas entidades personificadas, símbolos de duas forças em tensão constante: Roma, personificação da tradição, da história e das raízes da civilização ocidental, e Bruxelas, símbolo da modernidade, da burocracia e da busca por uma unidade frágil.

Roma, de vestes douradas e olhar sério, trazia em si o peso da história e da tradição. Falava em latim puro, reminiscente das colunas que sustentaram impérios e doutrinas de sustentabilidade. Bruxelas, vestida de vidro e aço, emanava pragmatismo e progresso, discursando numa multiplicidade de línguas, sempre diplomática, mas esgotada na busca de consenso. “Vejo que continuas a tentar construir um império sem alicerces”, disse Roma, com uma voz que ecoava séculos de sabedoria. “A tua torre de Babel desmorona-se, e ainda assim insistes em subir mais alto.”

Bruxelas respondeu, com um tom defensivo: “Não entendes, Roma. O mundo mudou. Precisamos de unidade, de progresso, de superar as divisões que nos enfraquecem. A Europa já não pode viver de mitos e tradições. ”

Roma sorriu, mas havia tristeza no seu olhar. Suspirou e observou as multidões que passavam. Cada rosto era uma expressão do caos ordenado que Bruxelas tentava manter. No entanto, por baixo das fachadas modernas, percebia-se uma fragilidade crescente, uma sociedade cada vez mais desconectada de suas raízes. “Unidade? Progresso? Diz-me, Bruxelas, o que é progresso sem sabedoria? O que é unidade sem identidade? Vejo em ti o mesmo complexo que afligiu tantos impérios antes de mim: a crença na omnipotência, na infalibilidade. Vocês acham que podem governar sem olhar para trás, sem aprender com os erros do passado.”

Bruxelas cruzou os braços, revelando incomodação. “Não somos como tu, Roma. Não cairemos na arrogância dos deuses. Temos instituições, leis, um sistema que nos protege dos excessos.”

Roma riu, numa gargalhada que ecoou como um trovão. “Protege-vos? Ou aprisiona-vos? Vejo em vossos líderes a mesma vaidade que outrora condenou os meus. Eles acreditam que podem controlar tudo, desde a economia até à natureza humana. Mas o que fazem quando a crise chega? Culpam-se uns aos outros, fecham-se em dogmas, e recusam-se a ver a realidade.”

Bruxelas olhou para o chão, hesitante. Sabia do que Roma falava. A Europa, outrora ciente de suas limitações, agora vangloriava-se de uma falsa omnipotência. Os seus líderes, convencidos de sua infalibilidade, impunham dogmas sociais e políticos sem espaço para debate ou reflexão crítica. Nos corredores do poder, qualquer oposição era reduzida a um maniqueísmo simplista: ou se estava com o progresso, ou se estava contra ele. “Talvez tenhas razão em parte. Mas o que sugeres? Voltar ao passado? Abandonar tudo o que construímos?”

Roma aproximou-se, colocando uma mão no ombro de Bruxelas. “Não se trata de abandonar, mas de recordar. A Europa foi construída sobre três pilares: a razão de Atenas, a fé de Jerusalém e o direito de Roma. Vocês esqueceram-se disso; na ânsia de criarem uma ordem perfeita, negligenciaram a humanidade do próprio povo. Em vez de humildade, escolheram a arrogância. Em vez de compaixão, escolheram o cálculo. Em vez de união verdadeira, criaram uma ilusão de uniformidade.”

Bruxelas suspirou, e pela primeira vez, sua voz pareceu frágil. “E agora? Como saímos deste labirinto?”

Roma olhou para o horizonte, onde o sol começava a despontar. “Reconhecei as vossas limitações. Aceitai que não sois deuses, mas humanos. Reencontrai as vossas raízes, não para repetir o passado, mas para entender quem sois. E acima de tudo, cultivai a humildade. Como disse um dos vossos pensadores, ‘onde a ação humana já não corresponde à existência humana, a verdade transforma-se em mentira’.(1)”

Bruxelas ficou em silêncio por um momento, refletindo. Bruxelas sentiu um calafrio. Sabia que Roma tinha razão. Na sua sede por uma sociedade perfeita, os líderes europeus haviam criado bolhas ideológicas, alimentadas por um ciclo mediático que apenas reforçava o pensamento dominante. Não havia mais intelectuais independentes, apenas burocratas e comentadores que repetiam o que era conveniente. “E se falharmos?”

Roma sorriu novamente, desta vez com uma centelha de esperança. “Então a Europa, como tantos impérios antes dela, será apenas mais uma lição para o futuro. Mas ainda há tempo. A escolha é vossa. Precisamos de líderes que saibam ouvir, que compreendam que governar não é impor, mas servir. Que aceitem que nem tudo pode ser controlado e que a sociedade precisa de raízes para florescer ”

Bruxelas olhou para Roma e, por um instante, sentiu o peso da sua responsabilidade. A crise que se espalhava pelo continente não era apenas económica ou política — era espiritual. A Europa havia perdido a sua identidade na ilusão da omnipotência.

E assim, os dois espíritos se despediram, enquanto o sol iluminava as ruas de Bruxelas e o vento soprava entre as estátuas antigas e os edifícios modernos. A cidade continuava a mesma, mas algo havia mudado. Talvez, pensou Bruxelas, fosse hora de olhar para trás, não com nostalgia, mas com humildade, e encontrar um caminho que unisse o melhor do passado com as possibilidades do futuro.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Papa Bento XVI

CONSERVADORES CANSADOS DE ATURAR OS DESVIOS PROGRESSISTAS

União Europeia: Urge fazer um Inventário do Seu Sentido e Papel no Mundo

Num momento de profunda transformação global, a questão central não é apenas a análise de figuras políticas individuais, mas sobretudo tentar compreender as mudanças geoestratégicas e de mentalidades que estão a redefinir o mundo e que tornam urgente uma autoanálise e redefinição da Europa.

A Europa encontra-se num estado de fragilidade, resultado de décadas de uma política externa ambígua e de uma subserviência oportunista aos interesses dos EUA. Neste tempo a EU preocupou-se demasiado com lutas ideológicas e repartição de influências partidárias. A hegemonia cultural e política da esquerda, que moldou o pensamento dominante europeu após as duas grandes guerras, está agora a ser desafiada por forças conservadoras que procuram restaurar valores tradicionais e fortalecer a soberania das nações. A ascensão de movimentos conservadores nos Estados Unidos e em algumas partes da Europa reflete esta reorientação e a necessidade de um novo posicionamento estratégico do Ocidente face aos desafios globais. Esta luta envolve um embate entre filosofias marxistas e maoistas, disfarçadas de socialismo moderado progressista e uma filosofia tradicional de reminiscências cristãs.

A ideia de que Trump e Putin partilham uma visão comum não pode ser reduzida a uma mera admiração entre governantes autoritários. Ambos representam uma reação contra uma globalização desenfreada e contra um progressismo radical que tem desestruturado sociedades. Trump, apesar do seu estilo frequentemente controverso, trouxe à discussão a necessidade de reforçar a identidade cultural e económica dos países ocidentais, enquanto Putin aposta na restauração da grandeza russa, dentro de uma lógica de poder tradicional.

O Novo Cenário Geopolítico

A geopolítica atual deve ser compreendida dentro de um quadro amplo. Os Estados Unidos, sob diferentes administrações, têm seguido estratégias variadas para manter a sua posição hegemónica, mas esta está a tornar-se insustentável devido à transição de um mundo monopolar para um mundo tripolar. A abordagem de Trump, embora brusca e populista, visava reconfigurar alianças e impor uma lógica de negociação mais assertiva, em contraste com a diplomacia ambígua e frequentemente ineficaz das elites globalistas.

A crise na Ucrânia não pode ser analisada apenas na perspetiva de uma agressão unilateral russa. O contexto envolve anos de tensão entre a NATO e a Rússia, a instrumentalização política do conflito e os interesses energéticos e estratégicos das grandes potências. A Europa, ao invés de adotar um papel autónomo e estratégico, escolheu uma posição subserviente, alinhando-se com interesses externos. Já em 2014, no meu artigo Rússia e China – O Eixo da Política do Séc. XXI? alertei para as consequências da ausência de um modelo federado na Ucrânia, atendendo aos novos imperialismos surgentes (1).

A Crise Identitária Europeia

A política de imigração descontrolada na Europa tem exacerbado tensões culturais e sociais e criado problemas irresolvíveis no futuro. A incapacidade de integrar estas populações levou à fragmentação social e ao aumento da instabilidade política. O islamismo, juntamente com o materialismo socialista, emerge como um dos maiores desafios à cultura europeia e os tecnocratas de Bruxelas teimam em ignorar a realidade. Enquanto a esquerda promove estas transformações de forma estratégica, a direita muitas vezes age por indiferença, oportunismo ou ignorância intelectual, contribuindo para a decadência da identidade ocidental.

Desde o movimento de 1968, o Ocidente tem sido alvo de um “marxismo wokista” que assume características ultra-estalinistas e social-fascistas. O islamismo, por sua vez, representa uma ideologia expansionista e combativa, mascarada sob a forma de religião, como pude observar através da observação no cargo de responsável pelas relações públicas no Conselho de Estrangeiros de Kassel e pela análise do Corão, Ahadith (ditos do profeta) e sharia (preceitos). Infelizmente, muitos líderes religiosos, por ingenuidade ou conveniência, têm pactuado com essas forças que corroem os fundamentos da civilização ocidental. Abertura e amor ao próximo sim, mas sem ingenuidades ou ignorância. Os muçulmanos têm afirmado na Europa o seu negócio depois da II guerra mundial com sucesso revelando esperteza, habilidade e convicção sustentável.

No meio de tudo isto, até mesmo os não crentes deveriam reconhecer a importância de preservar os valores ocidentais e apoiar a resistência ao politicamente correto e à expansão islamista favorecendo a imigração de culturas mais compatíveis com a europeia. Não se trata apenas de uma questão de fé, mas da sobrevivência de um modelo civilizacional baseado no humanismo cristão.

O Debate Sobre os Valores Ocidentais

A definição de “valores ocidentais” merece um debate aprofundado. Estes são frequentemente associados a princípios como democracia, liberdade individual, Estado de direito e direitos humanos. Contudo, tais valores têm sido reinterpretados à luz de uma doutrina marxista-maoista e materialista. Nos Estados Unidos, por exemplo, democratas socialistas e conservadores têm visões divergentes sobre o papel do Estado, a justiça social e a liberdade económica. Assim, os “valores ocidentais” não são monolíticos, mas sim um campo de disputa ideológica.

A preocupação com a presidência de Trump e o seu impacto sobre estes valores é compreensível sob uma óptica progressista, mas não sob uma ótica política cultural ocidental. No entanto, as democracias ocidentais são resilientes e possuem mecanismos institucionais para preservar os seus princípios fundamentais, mesmo em momentos de tensão.

Tanto progressistas como conservadores correm o risco de “imperialismo mental” ao justificar intervenções políticas ou militares em nome dos “valores ocidentais”. O uso destes valores para legitimar intervenções pode levar a contradições e hipocrisias. O discurso promovido pela NATO e pela UE muitas vezes esconde interesses geopolíticos que não servem verdadeiramente o humanismo cristão europeu.

Conclusão

Vivemos tempos perigosos e desafiadores, mas também de grande oportunidade. A Europa tem a chance de despertar para a sua identidade e papel no mundo. O destino dos povos é moldado pelas escolhas feitas nos momentos decisivos da história, e estamos precisamente num desses momentos.

A reflexão sobre os valores ocidentais, as ameaças externas e internas, e a forma como devemos enfrentar o futuro é fundamental. O Ocidente precisa urgentemente de um debate sério sobre o seu posicionamento global, sobre a sua autoconsciência civilizacional e seu sentido como povo na eminência de enfrentar os desafios que se avizinham.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) entre outros: Rússia e China – O Eixo da Política do Séc. XXI? – UCRÂNIA ENTRE IMPERIALISMO RUSSO E OCIDENTAL: https://antonio-justo.eu/?m=201405      https://antonio-justo.eu/?p=2791 Ponto de viragem na Europa: na Cimeira da Nato em Madrid Venceu a Posição anglo-saxónica: https://antonio-justo.eu/?p=7672

A CIMEIRA DE MADRID E O NOVO CONCEITO ESTRATÉGICO DA NATO: https://www.idn.gov.pt/pt/publicacoes/idnbrief/Documents/2022/IDN%20brief%20julho_2022_2_TextoIntegral.pdf