AVÓS CONTRA A DIREITA

“AVÓS CONTRA A DIREITA”

 

A Esquerda carrega em si a margem extrema,

enquanto a Direita renega o seu abismo.

Na dança europeia, é quem conhece sua essência

que pisa firme, enquanto os que a negam tropeçam.

 

Urge que caminhemos com ambos os pés,

sem coxear nem à esquerda, nem à direita,

trilhando uma estrada onde a guerra se apague

e a paz floresça como a única bandeira.

 

Mas, enquanto o horizonte é sonho distante,

assistimos, perplexos, às “Avós contra a Direita”(1),

gritos cerrados em terras germânicas,

reforçando o desequilíbrio que persiste.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Na Alemanha o movimento “Avós contra a Direita” tem sido activado por organizações de esquerda e apoiado pelos actuais governantes. A acção coordenada baseada em slogans sem argumentação tem movimentado centenas de milhares de pessoas a favor dos governos/partidos que fomentam a guerra. Noutros tempos menos aguerridos assistia-se a movimentos semelhantes contra a guerra. Os Verdes que antes fomentavam uma política de paz são aqueles que hoje em postos do governo anunciam a guerra.

A Esquerda tem nela a esquerda da esquerda enquanto a Direita não tem nela a direita da direita. A sociedade europeia tem confirmado que quem estiver consciente do seu ser tem vantagem perante os que se envergonham dele! Importante seria chegarmos a caminhar com os dois pés sem mancar à esquerda nem à direita. Este objectivo só seria adquirido quando deixarmos a cultura da guerra para adoptarmos a cultura da paz! Até lá teremos de assistir às manifestações das “Avós contra a Direita” (como se observa na Alemanha)!

Seremos uma sociedade tanto mais culta e humana quanto mais grupos e pessoas de diferentes perfis forem integrados nela sem termos de nos definirmos na adversidade desumanizante de uns contra os outros.

ELON MUSK DESAFIA E INOVA A TRADICIONAL CULTURA DO DISCURSO POLÍTICO

Resumo dos principais Temas do Diálogo transmitido no X Spaces

A Iniciativa do bilionário Elon Musk convidar a política alemã Alice Weidel para um debate público de caracter global manifesta não só o seu decisivo empenhado em inovações tecnológicas, como também na mudança básica da cultura política.  O acesso à informação através das redes sociais incomoda principalmente aquela elite que, distanciada das populações, tinha a correspondente rede na mão e agora sente concorrência e toma medidas de censura antes nunca sonhadas em democracia. Quem poderia imaginar que um capitalista de topo pudesse contribuir para a democratização da informação! A condução do discurso público, até agora baseada em táticas e reservada às centrais dos partidos políticos e às empresas jornalísticas envolventes, passa, deste modo, a ter um cunho pessoal de efeito mais democrático através de plataformas globais, por muito contraditório que pareça. Será de desejar que uma sociedade com menos crivos de informação se torne mais transparente e mais próxima do cidadão. Um próximo passo poderá facilitar um estilo político de votação eletrónica directa, por temas e menos por partidos, nos assuntos que toquem com a vida do cidadão.

O filósofo R.D. Precht constata: “Vivemos hoje numa ditadura da tática sobre a estratégia”. De facto, uma política selecionada de palavras contra palavras conduz o público a um caminho errado que pouco tem a ver com a realidade política e os interesses que esta encobre.

O contexto político na Alemanha é sombrio e em desafio, atendendo a uma sociedade, que se começa a definir mais pelo âmbito político-militar e estava habituada a viver em segurança económica e na bonança de certezas ideológicas.  A sociedade alemã vê-se cada vez mais confrontada com a instabilidade marcada por políticas ideológicas impulsionadas pelos Verdes na coligação do governo em Berlim, pela imigração caótica que frequentemente se manifesta agressiva perturbadora da ordem pública e pelos reflexos da guerra na Ucrânia e em Gaza e se encontra ainda no rescaldo das medidas relacionadas à pandemia de COVID-19.

Em tempos pré-eleitorais (23 de fevereiro, depois do voto de desconfiança no “governo semáforo”) surge na Alemanha uma nova controvérsia após a entrevista de Alice Weidel (AfD) e Elon Musk no X Spaces (9.01.2025), onde Musk declarou que o partido AfD é “o partido do senso comum” e “a única salvação da Alemanha”. Isto provocou um terremoto na arena política alemã com ecos em toda a Europa.

Os principais temas discutidos na transmissão em direto no X Spaces (1) podem ser embaraçosos, por tocarem pontos fulcrais e incómodos aos governantes mas que são muito importantes para o futuro da Alemanha e da Europa.

Weidel designou Merkel de chanceler “verde” por permitir a imigração descontrolada e desligar as centrais nucleares, o que teria prejudicado a política energética alemã.

Musk apoiou a política energética proposta pela AfD e criticou a burocracia alemã, destacando desafios enfrentados por sua fábrica Tesla em Berlim.

Weigel tem como ponto comum com Musk o controlo da imigração, a redução da regulamentação estatal, uma estratégia energética equilibrada com ênfase na energia nuclear.

A líder da AfD, Alice Weidel, não está contente com a política de impostos alemã. Ela parte da realidade estatística que “o empregado alemão médio trabalha metade ou mais de metade do ano para o Estado”. A Associação de Contribuintes alemã calculou que, em 2024, uma família média trabalhadora terá pago 52,6% do seu rendimento ao estado. De cada euro de rendimento auferido, restam 47,4 cêntimos, 31,7 cêntimos são para contribuições para a segurança social e o restante é para vários impostos e taxas.

Musk apoiou a posição de Weidel no que respeita a política energética e de reformas económicas e referindo-se à sua fábrica Tesla em Berlim criticou a burocracia alemã que impede desenvolvimento económico. Disse também que nos EUA o governo dá dinheiro para os refugiados sem documentos.

Em questões de polarização Weidel rejeitou a caracterização do AfD, por parte da esquerda, como extrema-direita, alegando ser um partido conservador-libertário.

 Em defesa referiu-se a Hitler como “socialista-comunista” e criticou ideologias socialistas de género. De facto, a acusação de a AfD ser racista torna-se abstrata quando Weidel co-presidente da AfD vive numa relação com uma mulher estrangeira.

Musk mencionou a influência do bilionário George Soros na política e Weidel referiu também as influências políticas de fundações como a de Bill Gates, apontando um viés em favor de partidos de esquerda.

A esquerda que se sentia tão bem embalada pelas agências de informação europeias e pelos governos da EU encontra-se em turbulência e especialmente agora que um “mostrengo” Musk oferece à direita o palco internacional X Spaces para dar visibilidade global.

O que está em questão não são os valores porque estes se entrecruzam na esquerda e na direita, mas sim mundivisões e a rivalidade pela detenção do poder e não se olha a meios para o manter ou adquirir. Além disso está a preocupação de a informação cada vez escapar mais a quem tradicionalmente a possuía na mão.

A função dos governantes é governar e não substituir a tarefa dos jornalistas como ainda fazem e evidenciaram no apoio directo às manifestações das “Avós contra a Direita”. No meio de tudo isto sente-se um misto de rebeldia e de idealismo, condimentos necessários num mundo por um lado demasiadamente regulamentado e por outro que não conhece regras.

Foi unânime e manifesta a preocupação perante os censores da liberdade de expressão porque não somos um Estado cliente, temos pessoas com as suas próprias opiniões. Também Hitler começou por abolir a liberdade de expressão.

Musk critica o excesso de regras e de burocracia e referiu que na Califórnia, apenas 3% de infratores são apanhados e os roubos inferiores a 1000 dólares não são punidos… por isso, o roubo é propriamente considerado legal. Existem leis, mas falta a vontade da sua aplicação.

No que respeita a questões internacionais Weidel desejou o fim da guerra e conversações entre a Rússia e a Ucrânia (NATO) e defendeu Israel, mas admitiu não ter soluções para o Oriente Médio.

Musk destacou a importância da paz no Oriente Médio, mencionando Trump como figura central para alcançar tal objetivo.

Nos últimos 15 minutos Musk fala sobre a sua visão de uma espécie multiplanetária onde se nota o efeito do filósofo Douglas Adam que o influenciou na sua infância.

Musk falou sobre o seu projecto de colonização de Marte como uma estratégia de sobrevivência da humanidade frente a ameaças como guerras nucleares. A proposta de Musk para uma humanidade multiplanetária reflete o desejo de transcender os problemas terrenos.

Sobre a questão do sentido da vida, respondeu que “a vida é mais fácil do que a pergunta”.

À pergunta de Weidel se Musk acredita em Deus, ele responde: “Estou aberto a todos os sistemas. A minha opinião depende do que aprendo.  Weidel, por sua vez, disse que era curiosa, que era agnóstica.

Constata-se que Muk está a ajudar o partido da AfD mas outros partidos e comentadores não entram no âmago dos problemas buscando desviar a atenção do público para consolidar o próprio poder. O discurso de Weidel e Musk provocou acusações de que a entrevista seria uma forma de donativo ilegal ao AfD.

A esquerda europeia, acostumada ao apoio de grandes media e governos, sente-se desafiada pela plataforma internacional oferecida por Musk à direita.

Governantes e jornalismo em geral desviam-se do debate central para criticar a forma e a linguagem, reforçando a dicotomia “nós somos bons, eles são maus”.

Na disputa pelo Poder, os partidos rivais recorrem a estratégias que buscam desviar a atenção do público para consolidar ou conquistar poder.

O importante é que as coisas mudem para melhor num intercalado de influências e interesses quer dos partidos do arco do poder (governo e oposição que se alternam no poder) quer dos que olham para o arco.

Afirmações de Weidel de que Hitler era socialista é talvez exagerada no tom, mas a verdade é que o nacional-socialismo e o comunismo têm muito em comum, mesmo que o próprio nacionalismo seja de direita; certamente o fascismo de Mussolini era mais de direita do que o do nazismo.

A acusação de imiscuição de Musk na política interna alemã é hipócrita; de facto políticos alemães manifestaram-se na Europa e nos USA a favor de Harris e contra Trump. Merz, provavelmente futuro chanceler alemão, fez campanha por Lasconi na Roménia por ela ser candidata amiga da UE.  Governantes desviam-se de suas funções, focando-se na manutenção de poder em vez de servir ao interesse público e respeitar a liberdade democrática de outros povos.

A entrevista sugere uma nova dinâmica política na Alemanha e na Europa, com a direita ganhando visibilidade internacional.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) https://twitter.com/i/status/1877445582576562374

 

 

NA PASSAGEM DA DEMOCRACIA PARTIDÁRIA PARA A OLIGARQUIA LIBERAL (DEMOCRACIA AUTORITÁRIA)

Poder económico e Poder político em Promiscuidade clara

Estamos no início de uma nova era moldada pelas tecnologias virtuais e pela Inteligência Artificial. Por um lado, essas ferramentas democratizam a informação; por outro, concentram o saber e o poder em poucas mãos. A aliança entre Donald Trump e Elon Musk simboliza essa transição, sinalizando uma mudança radical no sistema político e social. Economia e novas tecnologias – representadas por nomes como Musk, Zuckerberg, Bezos, Altman e Thiel – ousam caminhar agora de forma ostensiva junto ao poder político. Antes faziam-no de maneira escondida porque ainda tinham respeito pelo poder político que, em democracia, ao perder o seu respeito pelo povo colhe agora o desrespeito dos dois.

Talvez isso seja uma reação exacerbada do eixo americano frente à China e aos BRICS, num último esforço dos EUA por manterem o controle da exploração e do destino dos povos. Trata-se de um perigoso jogo com o fogo, especialmente quando se esperava que Trump trouxesse uma abordagem mais conciliadora num mundo em crescente tensão.

As declarações controversas de Trump disparam em todas as direções, deixando uma Europa cativa em estado de alerta. Suas ideias de intervir no Canadá, na Groenlândia e no Canal do Panamá revelam intenções imperialistas claras. Além disso, ele propõe que os países da OTAN invistam 5% de seus PIBs em despesas militares – enquanto os EUA gastam atualmente 3,38%. Para a Alemanha, por exemplo, isso significaria um gasto anual de 200 bilhões de euros em armamentos à custa do budget social e da qualidade de vida do cidadão. A satisfação dessa exigência obrigaria a Europa a concentrar seus esforços políticos e económicos no setor militar, liberando os EUA para se dedicarem ao controle dos oceanos Índico, Pacífico e Atlântico. Nem mesmo os Açores estariam seguros nesse cenário.

A Dinamarca, por exemplo, preocupada com a presença russa, agora enfrenta a sombra do imperialismo americano. Imagine-se um membro da OTAN, como a Noruega, pedindo proteção contra os próprios EUA, que têm utilizado a organização como ferramenta de avanço territorial e político. O imperialismo americano concentra-se agora no domínio dos oceanos não apenas por suas riquezas, mas por sua importância geoestratégica no controle mundial. “Ser inimigo dos EUA é perigoso, mas ser amigo é fatal”, dizia já Kissinger!

Da colonização ideológica à colonização oligárquica

Tudo indica que estamos presenciando uma transição de uma colonização ideológica para uma colonização oligárquica. Enquanto isso, os partidos tradicionais da União Europeia perdem-se em debates superficiais e carecem de credibilidade. Como aponta o sociólogo Emmanuel Todd em seu livro Apres la Démocratie (Depois da Democracia), já não vivemos num regime democrático. O exemplo francês de 2005, quando um referendo rejeitou a Constituição Europeia, mas o Tratado de Lisboa foi adotado mesmo assim, ilustra bem essa crise.

O desgaste e a desilusão com a democracia levaram à eleição de Trump, num cenário em que as narrativas lineares se desautorizaram umas às outras sendo substituídas pela concorrência desenfreada nas redes sociais e nas redes oficiais do sistema político. As antigas convicções religiosas foram substituídas pelas convicções burguesas, que, ao buscarem globalizar-se, acabaram desautorizando-se e contribuindo para o surgimento da tirania da opinião.

O papel de Musk e a crise europeia

Elon Musk revolucionou áreas como a banca, a mobilidade, as viagens espaciais e o meio ambiente. Ele apoiou a Ucrânia com a Starlink em sua defesa contra Putin e agora parece querer transformar a política. Musk, com acesso privilegiado aos grandes decisores globais, reconhece a falta de liderança tanto na política como na sociedade. Contudo, enfrenta resistência dos detentores do poder europeu, especialmente no campo progressista e nos partidos do arco do poder.

Estamos diante de um novo sistema. Musk estende a mão à direita, provocando preocupação entre os progressistas que ainda controlam os governos. Muitos continuam enredados nas aparências do poder e na retórica oficial, sem reconhecer as transformações em curso.

A Europa e a busca pela autonomia

A Europa, um dia, conquistará a sua autonomia. Contudo, isso só ocorrerá após romper o laço umbilical com os EUA. Para traçar um novo caminho, a Europa deve se aproximar de seu parceiro natural, a Rússia, com quem compartilha um berço geográfico e uma base cultural comum. Após a Primeira Guerra Mundial, os EUA determinaram o destino europeu, mas em um mundo que busca maior justiça social, é essencial que a Europa invista em colaboração com a Rússia, em nome de interesses próprios e autênticos, mas que respeitem a paz e a justiça entre os povos.

A União Europeia que temos estará mais interessada em seguir a onda de promiscuidade política do que questões relacionadas com a promoção da liberdade de expressão, inovação ou desmantelamento da burocracia e deste modo poder seguir nas velhas pegadas dos Estados Unidos da América. As castas que temos embora já velhas ainda permitem ao povo ir vivendo do rebusco da vindima.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Na cimeira da NATO na Lituânia, em 2023, os membros concordaram em gastar anualmente pelo menos 2% do seu produto interno bruto com as forças armadas.

(2) Musk apontou o Presidente Steinmeier como tirano antidemocrático, talvez por ele ter nomeado de “ratazanas„ eleitores de quem talvez não se considerasse presidente.

SITUAÇÃO DA EUROPA EM 2025

Iniciamos o ano 2025 com as esperanças murchas porque na qualidade de cidadãos e de povos nos encontramos envolvidos num dilema político-económico que se pode ver equacionado na constatação da realidade que Henry Kissinger “inocentemente” outrora revelava: “Ser inimigo dos EUA é perigoso, mas ser amigo é fatal”!

Bruxelas encontra-se alheia a uma estratégia de pensamento próprio que pudesse iniciar uma saída deste dilema que os ajudasse a libertar de uma história europeia impura no que toca às suas tendências de cunho imperialista; agora Bruxelas encontra-se recrudescida na estratégia político-militar fatal da NATO de caracter determinante para o agir dos estados membros. Em questões de aprendizagem de interesses europeus, von der Leyen e a EU precisariam de frequentar um pouco da escola turca de Erdogan que usa e abusa da NATO e da Federação russa na defesa dos interesses turcos! 

Talvez no decorrer deste ano os EUA optem mais por uma estratégia económica e isso crie espaço para a Europa poder pensar em realizar-se, libertando-se, pouco a pouco, das peias do ponderante pensamento anglo-saxónico. As guerras económicas deveriam acabar para dar lugar a uma concorrência justa e as guerras militares deveriam ser penalizadas por quem não investe o seu futuro na indústria militar.  A nossa fatalidade vem do facto de nada disto estar na mente dos nossos chefes guerreiros na EU, chamem-se eles Pistorius, Rutte ou von der Leyen.

O chefe da NATO (Rutte) quer ver propagada na União Europeia uma “mentalidade de guerra” (discurso em Bruxelas 12.12.2024) e que a força económica seja canalizada para a indústria da guerra, apelando também à redução dos direitos sociais dos cidadãos, exigindo para isso cortes nas pensões, etc. Pistorius já tinha lançado na Alemanha o lema criar “forças armadas belicosas” e logo surgiram vozes relevantes da política exigindo “aulas de defesa civil” nas escolas para preparar o país para a guerra. O que acontece na Alemanha é seguido na EU encenando-se, para isso, campanhas de possíveis ataques à EU para motivar e sintonizar as pessoas nesta marcha.

Humano seria acabar-se mundialmente com as sanções económicas pois quem mais sofre com elas são as populações; um outro impulso seria fomentar-se o incremento das indústrias nos países sem o nível económico da Europa. Este poderia ser o início de uma economia mundialmente mais justa e de uma política mais séria que não precisaria de ser sustentada por guerras.

Num mundo conduzido pelos interesses das elites há que elaborar um discurso que não se limite à defesa dos interesses destas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

O RIO E A ALMA PERDIDA

Havia um tempo em que o rio corria livre, serpenteando vales e montanhas com a graça de um dançarino ao som de uma música suave e delicada imbuída da ternura de Bach. Nesse tempo, a sua água clara refletia o azul do céu, as copas das árvores e era lar de libelinhas, peixes e passarinhos que enchiam o meio envolvente com cantos e cores. As pessoas vinham até ele, deixavam as roupas nas margens, mergulhavam nas suas águas, colecionavam pedrinhas e pescavam trutas que se escondiam sob rochas cintilantes. O rio era mais que um caudal de água; era um confidente, um retrato da natureza e, em muitos aspectos, um espelho da alma humana.

Mas o tempo foi passando, e as mãos humanas interferiram no curso do rio. O que antes era uma dança despreocupada transformou-se em algo contido, forçado. Barragens ergueram-se como muralhas, prendendo a correnteza, apagando curvas e lagos que, um dia, haviam sido refúgio de vida. Várzeas inteiras desapareceram sob as águas turvas, junto com os telhados de casas e memórias que antes respiravam esperança. O rio, agora engolido pela represa, não se reconhecia mais a si mesmo. Suas águas estagnadas refletiam tristeza, e o seu murmúrio tornou-se num lamento que se fazia sentir no subir da bruma cinzenta.

Uma noite, sentado à beira do rio transformado, ouvi seu desabafo. Ele falou-me de sua dor, de como sentia saudades de ser livre, de carregar folhas, galhos e sonhos em seu percurso até ao mar. Compartilhei da sua tristeza, pois em sua transformação eu via um reflexo do que acontecia à humanidade. Assim como o rio, as pessoas também haviam perdido a sua essência, a sua alma.

Convidei o rio para dividirmos o mesmo travesseiro de memórias. Fechamos os olhos juntos, tentando reviver um tempo em que sonhos individuais tinham espaço para florescer, livres das imposições de uma sociedade massificada e sob o controlo de forças estranhas. O rio contou-me que seu destino não foi escolha sua, assim como a alma humana não escolhe ser moldada por forças que a afastam de sua natureza autêntica. Ele lamentava como a sua água havia sido canalizada para um propósito impessoal, reduzida a uma fórmula de H2O que sustentava uma civilização sem alma.

“E os humanos?”, perguntou-me o rio, depois de uma pausa de silêncio. “Vocês também estão presos em barragens invisíveis, perdendo a identidade ao serem agrupados em massas. Antes, cada um de vós era como um cristal único e brilhante; agora sois apenas parte de um fluxo amorfo. Ninguém ouve mais o murmúrio de sua própria alma, apenas ouve e segue o eco da corrente dominante.”

Eu nada respondi, pois sabia que o rio estava certo. Olhei para o céu, buscando uma resposta que não veio. As águas calmas da represa refletiam estrelas, mas era uma calmaria que escondia uma verdade inquietante. Como o rio, também me sentia preso, não mais um indivíduo, mas parte de uma massa que se movia ao sabor dos ventos anónimos.

 

Naquela noite, prometi ao rio que guardaria suas memórias e suas lágrimas. Decidi que não deixaria minha alma ser submersa pelo lago da conformidade. Talvez, como o rio, eu pudesse encontrar um caminho de volta à liberdade, mesmo que apenas em sonhos, ou numa de troca de saudade transcendente que salda a dor da humanidade no colo da natureza.

E assim adormecemos, o rio e eu, com a esperança de que, um dia, tanto as águas como as almas reencontrariam o seu curso verdadeiro.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A NATUREZA E O HOMEM SOFREM DA EROSÃO DO SEU CARACTER NA MASSA

Todos nós, natureza e humanos, caminhamos ao longo do riacho do espaço e do tempo seguindo um chamamento para nos erguermos e definirmos.

O meu amigo rio que antes se espreguiçava por meio de vales e montanhas e onde cada um podia nadar e divertir-se colecionando pedrinhas e pescando trutas escondidas debaixo das pedras e admirar os sedimentos que embelezavam o fundo do rio, ameaça perder o próprio caracter, o vigor e a vida que a natureza lhe proporcionou.  O meu rio no seu percurso espelhava as árvores e era o encanto de libelas e passarinhos e o seu rumorejar é como um duche de alma; um encanto antes de se unir a outros rios até chegar ao mar.

Há dias o meu rio queixou-se aos meus pés que se sente mal porque já  não é o mesmo porque o que  fizeram dele soa como uma insónia onde ecoam lamentações de recordações de uma realidade que não volta mais:  das suas curvas, e pequenos lagos do seu leito que foram profanados com barragens que o engoliram dissolvendo-o no grande ventre represa onde as águas se juntam para ficarem paradas encobrindo vales vivos e até telhados de casas, onde outrora a vida também fervilhava envolvida nas ondas de esperanças abertas. Como é triste e sem vida ver a vivacidade individual do rio transformada na quietude de uma barragem de águas turvas e impedidas.

Eu nesta noite chorei com o rio porque nele via em sintonia o destino da alma humana na alma do confidente rio. Então eu consolava o rio convidando-o a dormirmos com a cabeça juntos no mesmo travesseiro e assim não apagarmos os sonhos de outrora que eram próprios individuais, e ao mesmo tempo comuns e abertos quer na natureza quer no humano. Forças alheias não aceitaram a vida natural como ela é e ao domesticá-la secaram-lhe a alma. A minha alma, na alma do rio ficou estagnada murchando a sua esperança porque a essência da água foi canalizada em levadas de betão. Esta água desanimada passou a ser a artificialidade de uma fórmula H2O desencarnada ao serviço de pessoas berberescas com alma de massa sem individualidade. As pessoas, tal como a água da barragem, vegetam na generalidade da corrente principal, já não são elas passaram reduzir-se à voz do fluxo da corrente humana, sendo só eco vazio mais nada. Agora que as águas cristalinas do rio foram obrigadas a viver nas águas turvas da represa, verifico também eu que já não me entendem porque me vejo a viver já não na qualidade de indivíduo, mas como mera voz de grupo. Agora tal como o rio que não se sente como rio, mas como mera massa de águas, prevê-se o destino de um humano que deixa de ser ele próprio.

As ventanias da anonimidade funcionam como ciclones de um viver no entremeio numa tensão de alta e baixa pressão sem espaço próprio. Nos finais do século passado apressou-se o processo de despersonalização e a desculturalização. Já não temos personalidade, nem nome, nem identidade para passarmos a ser a desaparecer na anonimidade do grupo ou agrupamento ordenado em fascista, comunista, religioso, ateu. A massificação domina elites da política e até da arte e da literatura que passaram a ordenar as pessoas em grupos simbólicos. Assim passamos a ter uma sociedade massa, um rebanho anónimo com pastores anónimos que vivem da massa.

Hoje pensa-se não no indivíduo como pessoa, mas como figura dentro de um grupo. O que move o discurso e as ondas da sociedade não é a pessoa nem o seu fundamento, mas apenas o comércio a acontecer e incorporado no socialismo e no capitalismo. A resolução dos problemas humanos e sociais não se situa já no espaço do indivíduo nem da dignidade humana passando a acontecer no vácuo da anonimidade conflitual entre ideias e opiniões.

O rio da humanidade encontra-se num falso percurso dado a confiança e a esperança só se situarem nos corações humanos individuais, na alma individual. Encontramo-nos todos como o rio extinto nas águas do lago a tornar-nos a voz das correntes (mainstream) com um coração de massa. Quando chegará o tempo de acordarmos? O rio confidenciou-me dizendo, “talvez numa noite astral, em que nós lhe prometamos caminhar com ele juntando as suas memórias e as suas lágrimas às nossas”. Decidi que não deixaria minha alma ser submersa pelo lago da conformidade. Talvez, como o rio, eu pudesse encontrar um caminho de volta à liberdade, mesmo que apenas em sonhos, ou numa de troca de saudade transcendente que salda a dor da humanidade no colo da natureza.

António da Cunha Duarte Justo