A HISTÓRIA DAS TRÊS MORADAS

Uma Narrativa sobre a Unidade Trinitária do Ser

Havia um tempo antes do tempo, quando tudo ainda era pura possibilidade suspensa sem forma, vazio em silêncio.

Então o movimento nasceu. Não um, mas três, unidos numa dança eterna e desta dança surgiu tudo o que é: o visível e o invisível, a ordem e o caos, o peso e a leveza.

1. A Grande Respiração

No princípio da criação, o Universo começou por respirar. Nessa respiração criou três moradas como expressão de uma só morada.

A primeira morada é a Casa do Ar, com os seus sete véus transparentes. A Troposfera, mais próxima, é como a pele que sente o calor e o frio, onde as nuvens são pensamentos e as tempestades, emoções intensas. Acima, a Estratosfera guarda o escudo protetor do ozónio, assim como a consciência protege o ser das radiações destrutivas do caos exterior que nos rodeia. Mais alto ainda, a Mesosfera, a Termosfera e aí, cada camada assemelha-se a um degrau na escada entre o tangível e o infinito, entre o peso e a leveza absoluta.

A segunda morada é a Casa da Terra, com os seus três reinos concêntricos. A Crosta é a face visível, onde pisamos e plantamos, onde construímos e deixamos pegadas numa superfície de encontros e despedidas. O Manto, logo abaixo, pulsa em movimentos lentos e poderosos, correntes invisíveis que movem continentes ao longo de eras e que lembram as correntes profundas da psique que movem civilizações. E no centro secreto, situa-se o Núcleo flamejante, coração de ferro e níquel que gera o campo magnético, que é a bússola invisível que orienta tudo o que vive sobre a superfície.

A terceira morada é a Casa do Homem, reflexo e súmula da casa do Ar e da Casa da Terra. A Cabeça contempla os céus e sonha com estrelas; o Tronco abriga os órgãos vitais, câmara central onde bate o coração e os pulmões respiram o ar da primeira morada; os Membros tocam a terra, caminham, trabalham, abraçam, fazendo assim a ponte entre o espírito que ascende e a matéria que sustenta.

Mas o mistério não termina aí.

2. O Segredo Trinitário

Havia um velho sábio que vivia numa aldeia entre montanhas. Chamavam-lhe Elias das Três Fontes, pois ele costumava dizer que dentro de cada pessoa brotavam três nascentes que eram uma só água.

Um dia, uma jovem chamada Miriam veio ter com ele e perguntou-lhe:

“Mestre, sinto-me dividida. O meu corpo quer uma coisa, a minha mente outra, e algo mais profundo em mim anseia por um caminho que nem sei nomear. Sou três pessoas em conflito ou uma só em confusão?”

O velho sorriu e apontou o seu cajado para o céu:

“Vês a atmosfera? Parece vazia, mas sustenta sete camadas distintas, cada uma com a sua função. A camada mais baixa toca a terra e carrega chuva; a mais alta toca o espaço e brilha com auroras. São sete, mas é uma só atmosfera. Agora olha para baixo.”

Bateu no chão com o seu cajado:

“A terra parece sólida, mas dentro dela há três mundos: a casca onde pisamos, o manto que ferve devagar, e o núcleo de fogo. Três, mas uma só Terra. E tu, Miriam, és feita à mesma imagem.”

Miriam sentou-se a seus pés e implorou:

“Explique-me, por favor.”

3. A Tríade Humana

O Corpo”, começou Elias, “é como a crosta terrestre e a troposfera juntas. É a tua parte visível, tangível, o templo onde habitas. Ele cresce da terra, come da terra, volta à terra. Mas sem as outras dimensões, seria apenas matéria inerte, como uma pedra. O corpo é a tua palavra feita carne, a tua presença no mundo visível.”

Elias respirou fundo, levou a mão ao peito e continuou:

A Alma é como o manto da Terra e as camadas intermediárias do ar. É a sede do teu “eu” único e irrepetível, a tua personalidade, memórias, emoções, vontade e razão. É onde reside a imagem de Deus em ti: a capacidade de amar, de escolher, de criar. A alma anima o corpo, como o manto aquece a crosta, como o vento move as nuvens. Aristóteles dizia bem: a alma é a forma do corpo, aquilo que transforma matéria em vida. Sem a alma, o corpo seria um robot, mas sem o corpo, a alma não teria ferramenta para apalpar o mundo. E o luzeiro da Idade Média, Tomás de Aquino completava ao dizer que a alma é o que confere ao corpo a sua existência e as suas funções vitais, mas, por ser espiritual, possui a capacidade de subsistir por si só após a morte do corpo, o que fundamenta a sua imortalidade.”

Elias olhou para o céu, onde brilhavam as primeiras estrelas.

O Espírito” disse ele, “é como o núcleo incandescente da Terra e a ionosfera que toca o cosmos. É a tua centelha divina, o fôlego que Deus soprou em Adão, a parte de ti que reconhece o Infinito porque vem do Infinito. O espírito não é “teu” da mesma forma que a alma é, ele é a ponte, a conexão, o ponto de contato entre a tua finitude e o Mistério eterno. É por isso que podes orar, contemplar, transcender-te. Ele é, como na narrativa sagrada, o amor que nasce entre Pai e Filho.”

Miriam franziu a testa.

“Mas então somos três seres separados dentro de um só?”

4. A Dança Trinitária

“Não!” gritou o sábio com voz animada. “Essa é a armadilha do pensamento dualista, que só vê opostos: ou é um, ou são muitos. Mas a realidade é trinitária, e o três não é divisão, mas comunidade!”

Para se tornar mais compreensível, Elias desenhou três círculos entrelaçados na areia.

“Olha aqui: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas, mas um só Deus. Não três deuses, não um deus com três máscaras, mas três em relação perfeita. E nós, feitos à imagem dessa Trindade, somos também relação. O teu corpo não existe sem a tua alma para animá-lo; a tua alma não se expressa sem corpo; e o teu espírito seria palavra não pronunciada se não tivesse corpo e alma como instrumento.”

Então Elias apagou as linhas divisórias entre os círculos com a mão.

“É como a água, o gelo e o vapor. Três estados, numa só substância. É como a raiz, o tronco e os ramos. Três partes, mas uma só árvore. Tu és uma unidade tripartida, ou melhor, uma trindade unificada.”

Miriam perguntou baixinho:

“E a atmosfera e a Terra são elas as mestras?”

Elias assentiu.

“Sim, são professores sossegados!

A atmosfera não é só ar parado, formada de camadas de ar em relação constante: o calor sobe da superfície, o frio desce do espaço, e no encontro nascem os ventos, as chuvas, a vida. A Terra não é pedra morta, ela é núcleo em brasa que alimenta o manto que move a crosta que sustenta vida. Tudo é relação, Miriam, tudo é movimento trinitário.”

5. O Drama da separação

“Então qual é a razão”, perguntou Miriam com a voz trémula, “por que me sinto dividida?”

O rosto do sábio escureceu.

“Porque a humanidade esqueceu a dança. Vivemos como se fôssemos apenas corpo, buscamos só prazer material, acumulamos coisas, idolatramos a aparência. Ou vivemos como se fôssemos só alma, presos na mente, nas emoções neuróticas, nos jogos de poder do ego. Ou fugimos para um espiritualismo desencarnado, desprezando o corpo e o mundo como se fossem meras prisões.”

Elias levantou-se, abriu os braços e falou com voz séria e calorosa:

“A visão dualista divide tudo em bem versus mal, espírito contra a matéria, céu contra a terra. É a tentação maniqueísta que simplifica o mundo em preto e branco. E dela nasce a política maquiavélica: “os fins justificam os meios”, porque se a realidade é só dois lados em guerra, vale tudo para “o meu lado” vencer.”

Miriam erguendo os olhos.

“E qual é a alternativa?”, perguntou ela.

Elias inclinou-se na sua direção e sussurrou:

A visão trinitária! Reconhecer que bem e mal não são forças iguais em combate, mas que o bem é trinitário; é Verdade, Beleza e Bondade em dança, enquanto o mal é privação, ruptura da relação. A política verdadeira não é dominar o adversário, mas buscar o bem comum através do diálogo tripartido: eu, tu e o Bem que nos transcende e que nos seria dado procurar juntos.”

6. A Jornada Interior

“Como posso então viver integralmente?” – perguntou Miriam.

O velho Elias voltou a sorrir, desta vez com gentileza e calma.

“Procura aprender com a criação. A atmosfera cuida de cada camada, mas todas servem ao todo: proteger a vida. A Terra mantém cada reino em sua função, mas todos colaboram: a crosta dá suporte, o manto recicla e o núcleo fornece energia.”

Então falou enfaticamente:

“Cuida do teu corpo como quem cuida da crosta terrestre: com respeito, sem idolatria nem desprezo. Ele é templo, não ídolo nem prisão. Come, dorme, movimenta-te, celebra a matéria como dom de Deus. O mestre da galileia também amava a vida e porque ele convivia com publicanos e pecadores, a ponto dos líderes religiosos da época, O acusaram de ser “beberrão” e “comilão”.

Elias continuou, com voz calma e clara:

“Cultiva a tua alma como quem cultiva o manto terrestre: educa a mente, refina as emoções, fortalece a vontade. Lê, pensa, cria, ama, escolhe. A alma é o jardim onde floresce a tua humanidade única. Mas lembra-te: o jardim precisa de terra (corpo) e chuva do céu (espírito).”

Olhou intensivamente para Miriam e colocou a mão na cabeça dela.

“Abre-te ao Espírito como a crosta se abre para o calor do núcleo, como a troposfera se abre à luz do sol.  Reza. Contempla. Silencia.

Reconhece que não és origem de ti mesma, mas resposta a um Chamamento divino.”

Os olhos de Miriam brilharam.

“E quando as três dimensões dançam juntas?”, perguntou ela.

Elias sorriu e a sua voz soou como uma canção distante:

“Então és completamente humana!

Quando a tua cabeça vê o mistério, o teu coração bate ao ritmo do amor e as tuas mãos se estendem-se em serviço, então não és mais um indivíduo isolado, mas pessoa em relação: em paz contigo mesma, em comunidade com os outros, em diálogo com Deus, e em harmonia com a criação.”

7.  O Canto da Unidade

Naquela noite, Miriam compreendeu. Deitou-se no chão e sentiu a crosta terrestre por baixo de si, o manto invisivelmente pulsante por baixo dela e bem no fundo, o núcleo distante e ardente que alimentava o campo magnético que a protegia dos ventos solares. Respirou fundo e sentiu o ar da troposfera a fluir para os seus pulmões, subindo pelos brônquios, enchendo o seu sangue de oxigénio, enquanto bem acima a estratosfera a protegia da luz ultravioleta, e ainda mais alto a ionosfera dançava com as partículas do espaço.

E dentro de si ela sentia: o seu corpo cansado, mas vivo, enraizado na terra, a sua alma finalmente em paz, já não dividida, mas unida: mente clara, coração aberto, vontade direcionada e o seu espírito, aquela centelha terna que suspirava suavemente o “Abba” para o mistério que ela carregava.

Ela não era uma nem era três. Ela era uma em três e três em uma, como a terra, como o ar, como a própria Trindade. E, nesse momento, ela compreendeu o antigo ditado bíblico:

“Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança.”

Não “à minha imagem”, pois isso seria unidade sem relação, mas “à nossa”: a imagem trinitária, comunitária, tecida pelas relações. Pois a pessoa não é um átomo isolado, um ego, mas um nó numa teia infinita de amor.

O Chamamento

Miriam voltou à aldeia transformada. Não tinha respostas mágicas para todas as questões da vida, no entanto, transportava consigo uma chave, uma hermenêutica do coração: ver tudo – natureza, sociedade e si mesma – não com olhos dualistas (nós versus eles, corpo versus alma), mas com olhos trinitários.

Miriam ensinou às crianças:

“Vós sois como a Terra: tendes uma superfície que todos veem que é o vosso corpo, um reino interior que ferve de vida que é a vossa alma e um fogo no centro que o liga ao mistério e que é o vosso espírito. Não desprezem nenhuma destas camadas e não adorem nenhuma sozinha! Quando reconhecerem isto vivereis em paz convosco mesmos e com os outros.”

Aos adultos envolvidos nas discussões políticas, ela disse:

“Deixem de acreditar que a solução é destruir o inimigo, como fazem os adeptos da visão maniqueísta.

A verdade não surge quando dois lutam entre si, mas quando três falam em conjunto: eu, tu e a verdade que transcende ambos, na relação eu-tu-nós.

E aos místicos arrebatados, ela disse:

“Deus não criou a matéria para a odiarmos. O Verbo fez-se carne! A salvação não consiste em escapar do corpo, mas em transfigurá-lo como Cristo, o Ressuscitado: não um espírito sem corpo, mas um corpo glorificado, permeado de luz.”

E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam plantou a semente da visão integral que tem o melhor exemplo no protótipo Jesus Cristo: E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam lançou as sementes de uma visão integral do ser:

  • Atmosfera, Terra e humanidade: três mestres de uma só lição.
  • Corpo, alma e espírito: três dimensões de um único ser.
  • Pai, Filho e Espírito Santo: três pessoas de um só amor.

E aqueles que compreenderam a dança trinitária começaram a viver de forma diferente: já não como máquinas (meros corpos), nem como fantasmas (só alma ou mente), nem como egos insuflados (mera necessidade), mas como pessoas inteiras, como microcosmos que refletem o Macrocosmo, templos vivos nos quais a matéria é abençoada, a consciência é iluminada e o Espírito sopra livremente.

Pois no princípio era a Relação, o Verbo, e a relação pessoal era com Deus, e a relação era Deus. Tudo o que existe, das galáxias aos átomos, das montanhas aos pensamentos, é o eco desta dança eterna: Três em Um e Um em Três. Uma unidade que não anula a diversidade e uma diversidade que não destrói a unidade.

Um segredo que não se revela em fórmulas, mas na vida vivida!

Não há respostas prontas para as grandes questões. A única forma de as encontrar é viver a vida plenamente; pois a sabedoria, o autoconhecimento, nasce da ação e da contemplação silenciosa do próprio caminho. O divino, a origem e o propósito, a essência da existência, revela-se na experiência humana concreta: no amor, no sofrimento, na superação; isto é, na forma como vivemos e como nos relacionamos com o mundo.

Reflexão Final

Caro/a Leitor/a,

esta narrativa tenta tecer a realidade de que fazemos parte e que simultaneamente nos questiona. As camadas da atmosfera e da geosfera são aqui apresentadas como análogas às dimensões humanas numa história que procura transcender o reducionismo dualista e celebrar a complexidade trinitária da realidade.

A estrutura da narrativa reflecte o seu conteúdo: começa com a cosmologia (atmosfera e terra), continua com a antropologia (corpo, alma, espírito) e culmina na teologia (a imagem trinitária), regressando finalmente e repetidamente, à existência, à questão: Como devemos viver tudo isto?

Ao criar esta narrativa, que entende a realidade como uma metáfora para algo que a transcende, foi importante para mim não confundir visões  do mundo nem o método de conhecimento para acesso à realidade.

A integração de uma visão monista da realidade, em que tudo emerge de uma única fonte, com um método dualista-analítico que distingue sujeito e objecto na investigação encontra a sua síntese numa perspectiva relacional-pessoal. Isto permite abraçar a concepção trinitária da realidade divina (como a “fórmula” de toda a existência e de toda a realidade): uma unidade essencial expressa numa multiplicidade de pessoas em relação mútua, transcendendo assim tanto o monismo rígido como o dualismo irreconciliável.

Que esta narrativa sirva como ferramenta de autorreflexão e como forma de transmitir uma visão integral do ser e da maneira de estaa, sem perder a essência da relação, o jogo vivo do pessoal. Que seja uma semente que brote em muitos corações.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

©  Pegadas do Tempo

O Tecelão de Névoas

Diziam os antigos, entre um gole de vinho e outro de memória, que, lá para os lados de Bruxelas,  em tempo de brumas e esquecimento, havia um homem que sabia tecer o ar.
Chamavam-lhe o Tecelão de Névoas, porque das palavras fazia véus, e dos silêncios, correntes. O povo jurava que o céu lhe obedecia, pois onde ele passava, o horizonte encolhia-se, como se o mundo tivesse medo de ver-se inteiro.
Com a sua voz de abrigo e olhar de promessa, o tecedor tinha o dom de transformar o invisível em prisão, e o povo, fatigado de ver e de pensar, acolheu-o como a um líder de cidadãos cansados.

Falava com voz mansa, que parecia vir do alto como um murmúrio de rio ondulado em várzea plana.
Dizia que pensar demais era ferida, que duvidar era doença de quem não sabia agradecer e que a verdade pesava mais do que o que o coração podia suportar.
E o povo, sedento de certezas, acreditava.
Acreditava porque o cansaço e o peso do dia a dia, quando se torna costume, é parente da confiança e da obediência.

Com o tempo, o Tecelão já não se bastava a si próprio.
Chamou a si alguns discípulos, jovens de olhar vazio e mãos leves, e entregou-lhes flautas de névoa, instrumentos finos, forjados com sopros de engano.
A cada toque, essas flautas derramavam melodias brandas que se infiltravam no pensamento como chuva em terra seca.

E quem as ouvia, esquecia.
Esquecia o sabor da dúvida, o brilho do discernimento, a alegria de criar o próprio som.
A melodia parecia arte, mas era feitiço: adormecia o espírito e paralisava os areais do pensamento.
As mentes tornavam-se dóceis, como rebanhos embalados por música alheia.
E cada nota, em vez de libertar, amarrava.

O povo passou a seguir o som das flautas como quem segue uma estrela.
Não sabia que caminhava em círculos, que dançavam dentro de uma gaiola de bruma.
As suas vozes, antes cheias de vida, calaram-se.
Os poetas deixaram de cantar, os pintores esqueceram as cores, e até os sinos soavam mais lentos, como se o ar tivesse ficado pesado.

Mas havia uma criança, de olhar aberto e passo curioso, que ainda não aprendera a obedecer ao som e ainda tinha a alma por domar.
Gostava de correr pela manhã, quando o frio ainda mordia o chão, e de tentar adivinhar as formas escondidas na névoa. Para ela, o mundo era um jogo: o nevoeiro, um lençol de sonho onde tudo podia morar: um castelo, um rio, um gigante adormecido.
Certo dia, aproximou-se do Tecelão e perguntou:

– Senhor, porque é que o sol nunca toca o chão do nosso vale?

O homem sorriu, com ternura estudada.
– O sol, pequena, é um fardo. Eu guardo-vos da sua luz. É melhor assim, mais suave, mais seguro.

A menina quis acreditar. Mas o vento, que dormia há muito, acordou ao ouvir aquelas palavras.
Soprou primeiro devagar, apenas para ver se ainda podia. Depois, com saudade de ser brisa livre, soprou com força.

E então, as flautas desafinaram.
A música, outrora doce, quebrou-se em sons dissonantes, e o povo estremeceu.
A névoa começou a desfazer-se, fio a fio, como mentira diante da claridade.

O Tecelão tentou refazer o tear, mas os seus dedos, habituados ao engano, já não encontravam os fios.
O povo olhou em redor e viu-se: sujo, pálido, atordoado, mas ainda vivo.
Todos ouviram, pela primeira vez em muito tempo, um som diferente: o riso da criança, cristalino e novo, como nascente em pedra seca.

Alguns choraram, outros ficaram em silêncio.
A menina correu para o alto da colina e gritou:
– O sol afinal não dormia! Só esperava que abríssemos os olhos!

E o vento, satisfeito, levou consigo o último fio de engano para além das colinas, onde as névoas já não ousavam voltar.

Dizem que, desde esse dia, ninguém mais tocou as flautas do Tecelão.
Mas de vez em quando, quando a alma se distrai e o cansaço parece doer demais, ouve-se ao longe um sopro que vem de cima, tentando adormecer o mundo.
É então que se deve lembrar: a música que salva nasce de dentro e a névoa só domina quem esquece o próprio som. Mas há sempre uma criança, em algum lugar, pronta a perguntar pelo sol.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A FRÁGIL CHAMA DA OPINIAO E O ABISMO DA IPSEIDADE

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução  

Vivemos um tempo de indecisões históricas e de retórica pública cuidadosamente premeditada, em que a discórdia entre pontos de vista parece crescer em cada dia. É como se tivéssemos entrado numa espécie de guerra civil mental, reflexo de falta de sentido e das tensões geopolíticas que se desenrolam no mundo e que nos empurram a tomar partido com base em estratégias de informação que frequentemente nos afastam do essencial que é a convivência, o entendimento e a busca comum por um verdadeiro “PIB de felicidade”.

Numa era em que a opinião se tornou arma e a controvérsia um hábito, corremos o risco de perder de vista o propósito maior da vida em sociedade: o bem-estar partilhado, o gozo justo que compensa a dor inevitável de existir. A discórdia, quando deixa de ser diálogo e se converte em desgaste, mina o que de mais humano temos, a capacidade de criar felicidade para todos e com todos.

  1. O choque das opiniões e o clarão efémero do sentido

Quando opiniões se chocam, com pretensão de certeza, o que verdadeiramente se salva é apenas a centelha do atrito, um lampejo que, por um instante, ilumina as margens do pensamento antes de se apagar na poeira dos argumentos.
Quando os imperialismos, sejam eles políticos, culturais ou ideológicos, se confrontam, nada resta ao povo senão recolher os estilhaços e comentar, impotentemente, as ruínas de um lado ou do outro.

A alternativa possível não seria o conformismo, mas o recolhimento interior, um gesto de lucidez que impede o ser humano de se deixar arrastar pelo torvelinho das circunstâncias ou de refugiar-se na apatia estéril de um relativismo sem norte que tudo dissolve.

  1. A ilusão de pertencer aos “bons”

Na ânsia de determinar-se, o ser humano constrói para si a ilusão de possuir razão, isto é, de estar entre os bons e de ver o mundo com clareza.
Mas o que normalmente defendemos não é a verdade, mas sim a nossa narrativa, aquela versão íntima e inegociável da realidade que nos confere identidade e nos protege do vazio.
A busca da verdade é substituída pela fidelidade a um enredo que se quer verdadeiro.

  1. A cegueira dos entremeios

A realidade raramente é pura. Quase tudo o que é humano vive nos entremeios, na zona cinzenta onde as certezas se desfazem e o sentido se mistura.
Contudo, falta-nos muitas vezes a coragem de habitar essas intersecções.
Preferimos as muletas das opiniões alheias, as frases feitas, os dogmas disfarçados de pensamento.
A preguiça espiritual leva-nos a viver de reflexos, a repetir em vez de pensar.

  1. A linguagem como chama e como ferida

É na linguagem que a nossa frágil chama encontra abrigo.
A palavra é a ferramenta e o espelho da consciência: por meio dela, o ser humano tenta dizer o indizível, ordenar o caos, dar forma ao invisível.
Falamos porque precisamos de compreender e, ao compreender, prolongamos a nossa existência no tecido simbólico do mundo.
Mas a linguagem é também uma ferida: nela reside tanto a possibilidade de revelar quanto o perigo de repetir o já dito.
Quando a palavra se transforma em eco, mera reprodução do que os outros dizem ou pensam, a chama interior começa a enfraquecer.

  1. Romper o círculo: mergulhar nas camadas do ser

Pensar exige um gesto de mergulho e descida.
É preciso atravessar as camadas da tradição, da herança biológica e social, para chegar ao âmago da ipseidade, o ponto onde o eu se desnuda do que herdou e se interroga sobre o que é: o núcleo do encontro recolhido do divino com o humano que preenche e sustenta a forma do que somos ou revelamos ser.
Esse mergulho não é confortável: é um exercício de despossessão, no sentido de se valorizar o ser sobre  ter.
No fundo de nós, da nossa alma, há um silêncio denso, um “buraco negro” de identidade que tudo engole e é precisamente aí que se gera a possibilidade de um novo começo.
O que é tragado pela profundidade do ser ressurge transformado. Como resposta a esta realidade surgiu o fenómeno da vida comunitária de monges em conventos e no mundo secular os diferentes tempos litúrgicos com ocorrências anuais de retiro e meditação (recorde-se o período de Quaresma no mundo cristão e o Ramadão na esfera muçulmana.)

  1. A fragilidade como potência

A luz humana é frágil, mas é nessa fragilidade que reside a sua força.
A chama vacila porque está viva, tremula porque respira.
Ela não domina as trevas, apenas as desafia com o seu pequeno clarão.
E é nesse gesto, aparentemente inútil, que o humano se afirma: sustentando, no meio do abismo, o breve fulgor do pensamento que não se rende.

  1. Conclusão: O pequeno lume da consciência e o sopro do Criador

No fim, talvez o destino do homem não seja apenas o de manter acesa a chama da palavra e do pensamento, pois, se assim fosse, o seu existir seria tão efémero como o pavio que se consome no próprio fogo.
O ser humano não é mero oxigénio a alimentar uma chama precária: ele contém em si a origem desse mesmo sopro.
Como lembrava Teilhard de Chardin, o homem é a síntese viva do cosmos em evolução, a consciência do universo voltando-se sobre si mesma, o átomo que começa a pensar, o espírito que procura compreender a própria centelha que o acendeu.

Ser humano é, pois, participar da criação em acto, e reconhecermos a nossa soberania individual com humildade.
A nossa consciência não é apenas um subproduto da natureza, mas a sua expressão qualitativa, a linguagem pela qual o universo se reconhece e se recria. A linguagem, por mais limitada que seja, é um modo de salvar o mundo da mudez e de salvar-nos, na dimensão espaço e tempo, das sombras que nos habitam.
A fragilidade da chama humana é apenas aparente: nela pulsa o mesmo fôlego que deu origem às estrelas.

Por isso, a procura de sentido que habita o homem não deve ser relegada a uma função de demiurgo menor, nem a um exercício solitário de pensamento.
É a própria vida da criação a continuar o seu movimento, o espírito em busca de si, emergindo do tempo, a tentar pronunciar, por meio de nós, a Palavra original que tudo sustenta.

Assim, cada ser humano é uma faísca consciente do grande fogo Criador, uma chama individual e irrepetível, centelha do Espírito em evolução, que ao iluminar-se participa da Luz total que a origina e sustenta. Em Jesus Cristo, protótipo do humano (em quem o humano se revela como morada do divino e o divino se faz caminho de humanidade) e ponto de convergência da criação, o universo encontra a sua própria consciência de Deus e o homem reconhece em si o rosto divino, de que é imagem, na caminhada para a plenitude. Assim, o ser humano não é mero reflexo, mas participação viva no próprio mistério criador.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

PARA ALÉM DA MATRIZ MASCULINA

Uma análise crítica da dominância masculina nas estruturas sociopolíticas e a necessidade de reequilibrar os princípios feminino e masculino

Por António da Cunha Duarte Justo

 

Introdução: O Colonialismo Mental da Matriz Masculina

Neste ensaio procuro elaborar uma proposta de um modelo antropológico equilibrado com base no princípio da complementaridade.                                          A sociedade contemporânea encontra-se enredada num paradoxo fundamental: enquanto se proclama a igualdade de género e se celebram conquistas no campo dos direitos das mulheres, a estrutura profunda que organiza o pensamento, o poder e a economia permanece fundamentalmente masculina na sua essência. Este “colonialismo mental”, como aqui o designamo, não poupa homens nem mulheres, condicionando o desenvolvimento humano e social a padrões aparentemente arbitrários, determinados pelo zeitgeist de cada época, mas invariavelmente ancorados numa lógica de afirmação, competição e domínio.

O presente artigo propõe uma análise teórica, analítica e crítica da nossa matriz antropológica e sociopolítica, procurando não apenas diagnosticar o problema, mas apresentar um modelo alternativo que honre genuinamente tanto o princípio da feminilidade como o da masculinidade, não como categorias biológicas fixas, mas como dimensões complementares presentes em cada ser humano e necessárias ao equilíbrio social.

  1. Arqueologia da Diferenciação: Das Origens à Divisão do Trabalho

1.1. As Raízes Evolutivas da Especialização

Nos primórdios da humanidade, a divisão de tarefas entre caça e recolha estabeleceu padrões de especialização cognitiva e social que reverberam até hoje. O homem caçador desenvolveu capacidades de visão ao longe, pensamento abstrato e estratégico, capacidade de risco calculado e ação decisiva, características que designo como “masculinas”. A mulher recolectora especializou-se na atenção ao próximo e ao concreto, na gestão do espaço doméstico, na nutrição e no cuidado, as pressupostas características “femininas”.

Esta diferenciação inicial, produto de necessidades adaptativas, não era hierárquica, mas complementar. Duas leis evolutivas operavam em equilíbrio: a lei da afirmação seletiva (seleção natural, competição, domínio do mais forte) e a lei da colaboração (cooperação, inclusão, interdependência). Ambas eram necessárias à sobrevivência do grupo.

1.2. Da Deusa-Mãe ao Patriarcado: A Viragem Neolítica

No período neolítico, com o surgimento da agricultura e da pecuária, o culto da deusa-mãe testemunhava o reconhecimento da mulher como princípio de continuidade da vida, associada à terra fértil e à natureza. Esta fase representa talvez o último momento histórico de equilíbrio real entre os princípios feminino e masculino nas estruturas simbólicas e de poder.

Com o desenvolvimento da metalurgia, da guerra organizada e das primeiras estruturas estatais complexas, inicia-se a progressiva masculinização das estruturas de poder. O princípio masculino expresso em  afirmação, conquista, hierarquia e domínio, passa a colonizar todas as esferas do social.

  1. A Economia como Motor da Masculinização Social

2.1. Da Revolução Industrial à Era Digital

A Revolução Industrial marca um ponto de viragem crucial. A transição dos modelos agrícola e artesanal para a produção industrial em larga escala exigia cada vez mais mão-de-obra. As mulheres constituíam uma reserva estratégica, mas para serem integradas no mundo industrial, tinham de se adaptar à lógica masculina da produção: competição, eficiência, hierarquia rígida, separação entre trabalho e vida.

A pílula anticoncepcional, significativamente criada para as mulheres, não para os homens, simboliza esta instrumentalização: permitia às mulheres entrarem no mercado de trabalho nos termos masculinos, controlando a reprodução para não interromper a produção. A maternidade, princípio feminino por excelência, tornava-se um “problema” a gerir sob o princípio da masculinidade.

O pragmatismo e o utilitarismo substituíram progressivamente a filosofia, a religião e a ética social como fundamentos do pensamento coletivo. A sociologia tornou-se a pilar da democracia, mas uma democracia crescentemente reduzida à gestão pragmática e cosmética, orientada para resultados mensuráveis a curto prazo, numa lógica essencialmente masculina expressa também na funcionalidade e logaritmos.

2.2. O Marketing e a Instrumentalização da Feminilidade

Paradoxalmente, enquanto as estruturas se masculinizavam, o marketing descobria na sensibilidade feminina um filão a explorar. As mulheres, mais orientadas para o sentimento e para a dimensão relacional e do consumo (versus o foco masculino no propósito), tornaram-se alvos privilegiados da indústria e dos serviços. Mas esta “valorização” da feminilidade era, na verdade, mais uma forma da sua instrumentalização ao serviço do princípio masculino: o lucro, a expansão, o progressos ou seja, o crescimento pelo crescimento.

  1. O Princípio “Divide et Impera” Aplicado ao Género

3.1. A Falsa Dialética da Luta de Géneros

O antigo princípio político e militar “divide para reinar” (divide et impera) encontra na questão do género uma aplicação particularmente insidiosa. Tal como na luta entre ricos e pobres, a dialética entre homens e mulheres é frequentemente enquadrada em termos de conflito, competição e conquista de poder, numa palavra, em termos masculinos de carácter meramente sociológico.

Grande parte do ativismo feminista contemporâneo, embora animado por legítimas reivindicações de justiça, adota estratégias de luta de carácter extremamente masculino: afirmação agressiva, confrontação, conquista de territórios de poder. Esta contradição performativa, lutar pela feminilidade com armas masculinas, revela até que ponto a matriz masculina colonizou até os movimentos que pretensamente a contestam.

3.2. A Naturalização do Paradigma Militar

A naturalidade com que se discute hoje a introdução do serviço militar obrigatório também para mulheres constitui um sintoma revelador. O modelo militar, hierarquia rígida, obediência, violência organizada, sacrifício individual ao coletivo abstrato, representa a quintessência do princípio masculino. Que a “igualdade de género” se afirme através da integração das mulheres neste modelo, em vez de questionar o próprio modelo, demonstra o grau de internalização da matriz masculina. Também a mulher reduzida a mera funcionalidade.

  1. Mutilações Contemporâneas: Homens Efeminados e Mulheres Masculinizadas

4.1. O Mito da Feminização Social

Observamos hoje homens aparentemente mais “efeminados”, o que é frequentemente interpretado como sinal de feminização da sociedade. Esta leitura é duplamente equivocada. Primeiro, porque confunde efeminação (caricatura da feminilidade) com feminilidade genuína (princípio de integração, cuidado, relação). Segundo, porque estes homens não são agentes de uma mudança estrutural, mas sintomas e vítimas do zeitgeist, manifestações de uma crise de identidade masculina que não altera a dominância da matriz masculina nas estruturas de poder.

4.2. O Drama das Mulheres em Posições de Poder

Sintomaticamente, mulheres em cargos de liderança tendem frequentemente a ser mais agressivas, mais “masculinas” na sua gestão do que muitos homens. Este fenómeno não é acidental: numa estrutura masculina, as mulheres sentem necessidade de “provar” o seu valor adotando e exacerbando os códigos masculinos. É uma forma de compensação que, tragicamente, perpetua o sistema que as limita.

A verdadeira igualdade não virá de mulheres que se tornam “homens honorários”, mas da transformação das estruturas para que possam acolher genuinamente o princípio feminino.

  1. A Era Digital e a Intensificação da Masculinização

5.1. Hiperconexão e Individualização

A revolução digital, com a Inteligência Artificial, a automação, os Big Data e a biotecnologia, promete (ou ameaça) uma transformação sem precedentes. Paradoxalmente, num mundo hiperconectado, observamos uma intensificação da individualização (acentuação do ego), mais uma manifestação do princípio masculino (autonomia, separação, competição) em detrimento do feminino (interdependência, comunidade, cuidado).

A lógica algorítmica que domina a era digital é essencialmente masculina: análise, divisão, classificação, otimização, eficiência. Os próprios algoritmos reforçam soslaios de género existentes, perpetuando a matriz masculina em código.

5.2. A Crise da Visão a Longo Prazo

O modelo masculino dominante, focado na afirmação imediata e na conquista de objetivos a curto prazo, mostra-se crescentemente inadequado face aos desafios contemporâneos. As crises ecológica, climática e de sustentabilidade exigem precisamente as qualidades do princípio feminino: cuidado com o longo prazo, atenção aos efeitos sobre o todo, responsabilidade relacional, prudência.

A incapacidade das nossas estruturas políticas e económicas de responderem adequadamente a estes desafios não é acidental, é estrutural, produto da dominância da matriz masculina.

  1. Proposta de um Modelo Antropológico Equilibrado

6.1. Reconhecer a Bivalência de Cada Pessoa

O primeiro passo é reconhecer que cada pessoa, independentemente do sexo biológico, é portadora de características masculinas e femininas. A masculinidade (afirmação, análise, abstração, competição) e a feminilidade (integração, síntese, materialidade, tangibilidade: colaboração) não são propriedades de homens e mulheres, mas dimensões da psique humana (Aninus e Anima) e princípios organizadores da sociedade.

6.2. Reequilibrar as Estruturas de Poder

Em vez de procurar a “igualdade” através da adaptação das mulheres à matriz masculina, é necessário transformar as próprias estruturas para que valorizem genuinamente:

– Decisões a longo prazo (versus resultados imediatos)

– Cuidado e sustentabilidade (versus crescimento e conquista)

– Colaboração e interdependência (versus competição e autonomia)

– Concreto e local (versus abstrato e global)

– Processos e relações (versus objetivos e hierarquias)

6.3. Reformular a Educação e a Cultura

A educação deve cultivar conscientemente ambos os princípios em todas as pessoas:

– Capacidade de afirmação e de integração

– Pensamento analítico e sintético

– Competição saudável e colaboração

– Autonomia e interdependência

– Corpo e alma em diálogo de complementaridade

  1. Para Além do Zeitgeist: Liberdade de Pensar

7.1. “Conhece-te a Ti Mesmo”

O princípio socrático “conhece-te a ti mesmo” é aqui fundamental. Enquanto não reconhecermos conscientemente a colonização das nossas mentes pela matriz masculina, permaneceremos seus prisioneiros. O autoconhecimento individual e coletivo é a precondição da liberdade.

7.2. Criatividade e Inovação Genuínas

A verdadeira criatividade e inovação exigem liberdade de pensar para além dos padrões estabelecidos. Um modelo antropológico equilibrado, que honre ambos os princípios, seria genuinamente inovador; não no sentido do “progressismo globalista” (que é frequentemente mais uma forma de imperialismo da matriz masculina), mas no sentido de abrir possibilidades realmente novas de organização social.

  1. Conclusão: Rumo a uma Nova Complementaridade

A sociedade contemporânea encontra-se numa encruzilhada. A intensificação da matriz masculina, longe de nos conduzir a um futuro sustentável e humanamente satisfatório, está certamente a produzir uma era de “desumanização do humano”, um novo nomadismo desenraizado, uma crise ética de proporções sem precedentes.

A solução não passa por inverter simplesmente a polaridade, substituir a tirania do masculino pela do feminino, mas por reconhecer a necessidade de ambos os princípios numa relação de complementaridade genuína, não hierárquica.

Homens e mulheres, cada um com a sua particular combinação de características masculinas e femininas, precisam de estruturas sociais, políticas e económicas que valorizem essa riqueza em vez de a mutilarem. Apenas assim será possível um desenvolvimento verdadeiramente humano, nem exclusivamente masculino nem exclusivamente feminino, mas integralmente humano.

O desafio não é técnico, mas civilizacional: trata-se de re-imaginar a própria estrutura do poder, da economia e da organização social para além do paradigma da dominação. Trata-se, afinal, de realizar a promessa não cumprida da modernidade: uma sociedade de pessoas livres e iguais em dignidade, capazes de afirmação e de integração, de autonomia e de interdependência, de conquistar e de cuidar.

Este é o horizonte de uma verdadeira inovação antropológica, não a adaptação das mulheres ao mundo masculino, mas a criação de um mundo verdadeiramente humano.

O progresso verdadeiro não é apenas técnico, mas humano; não é apenas crescimento, mas desenvolvimento; não é apenas afirmação, mas também integração.

Considero urgente que os temas de que a ciência, a economia e a política se deveriam ocupar prioritária e criticamente seriam os seguintes: Matriz masculina, princípios feminino e masculino, complementaridade de género, antropologia social, crítica da modernidade, economia do cuidado, colonialismo mental, desenvolvimento humano integral.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O PREÇO DA SEGURANÇA NUMA DEMOCRACIA QUE VESTE PELES DE AUTORITARISMO

Ensaio sobre as Feridas Sociais e Políticas da Era Pandémica

Por António da Cunha Duarte Justo

A Metamorfose Silenciosa

Há momentos na História em que as sociedades atravessam limiares invisíveis, transformando-se de modo tão subtil como irreversível e hoje encontramo-nos num deles. A pandemia de COVID-19 não foi apenas um episódio sanitário, foi um laboratório social de proporções civilizacionais, onde se testaram os limites da obediência, da dignidade e da resistência humanas às medidas ordenadas pelas cúpulas. O que emergiu desse cadinho não foi uma sociedade mais forte ou mais solidária, mas um corpo social fraturado, psiquicamente ferido e politicamente desiludido devido a uma hostilidade silenciosa.

A grande tragédia desta época não reside, talvez, na doença em si, mas nas feridas, algumas potencialmente irreversíveis, que as medidas políticas impuseram ao tecido da sociedade e à alma dos cidadãos. Trocámos a liberdade pela promessa da segurança, e o preço dessa transação revela-se agora incomensurável. As elites de ideologia globalista, empenhadas em remodelar a sociedade para adequá-la a uma estratégia de governança global baseada apenas na funcionalidade, deparavam-se com um obstáculo: a visão do cidadão soberano, fruto da expressão da imagem cristã do ser humano, que resiste a esse dirigismo despersonalizante. O projeto globalista, voltado para uma sociedade mecanizada e eficiente, colide com a conceção de uma comunidade fundada na dignidade pessoal e nas relações humanas autênticas, que transcendem qualquer lógica meramente utilitária ou pragmática.

Para superar essa resistência, tais elites procuraram “desalmar” o ser humano, reduzindo-o a mero cliente ou súbdito dentro de uma máquina social puramente administrativa, em oposição a uma sociedade de caráter orgânico e verdadeiramente humano.

A Doutrina do Choque Reconsiderada

Naomi Klein, na sua obra fecundante “A Doutrina do Choque, demonstrou como elites políticas e económicas exploram sistematicamente as crises, reais ou ampliadas, para impor políticas que, em circunstâncias normais, seriam rejeitadas pelas populações. A pandemia funcionou precisamente como esse “choque” estratégico, permitindo uma reengenharia social acelerada e uma centralização de poder sem precedentes na história democrática recente.

O que testemunhámos na União Europeia e especialmente na Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos não foi mera gestão sanitária, mas uma arrogância política que feriu e fere mortalmente a honra e a dignidade de qualquer cidadão com consciência democrática ou cristã. Os mecanismos de controlo típicos de estados totalitários foram descaradamente empregues pelos autoproclamados guardiões da liberdade ocidental e da saúde do cidadão. O cidadão transformou-se em objeto de uma vigilância absoluta que articula conhecimento técnico, científico, mediático e político numa teia de dominação social.

Subsequentemente, a guerra na Ucrânia prolongou este estado de excepção, mantendo as populações em permanente ansiedade, divididas e mais suscetíveis à manipulação. A crise tornou-se o estado normal de governação. Sob o pretexto de um permanente estado de excepção, toda a medida autoritária parece encontrar legitimação, sustentada pelo medo e pela insegurança deliberadamente instaurados na sociedade.

A Mutilação do Ser-no-Mundo

A neurociência e a filosofia da mente contemporâneas convergem numa verdade fundamental: o nosso “eu” não está confinado ao cérebro, mas constrói-se através da interação corpórea com o mundo e com os outros. Somos seres radicalmente relacionais (fórmula Trinitária), cuja identidade se tece no encontro, no toque, no olhar partilhado, no riso que ressoa entre corpos presentes.

As medidas governamentais não foram meras inconveniências, foram uma mutilação ontológica do nosso ser e do nosso estar-no-mundo. Aprisionaram-nos em casas transformadas em celas domésticas. Roubaram-nos os contactos que nutriam a nossa humanidade. Instalaram entre nós a desconfiança, esse veneno lento que corrói os laços sociais. Habituaram-nos a perder o riso espontâneo, a desabituar-nos da cordialidade que torna a vida em sociedade algo mais que mera coexistência funcional.

Não podíamos ver os amigos senão através de máscaras que ocultavam metade da expressão humana. Fomos proibidos de viver plenamente. Não nos podíamos amar da forma que merecíamos; não podíamos visitar pessoas nos hospitais; mesmo nos enterros, a nossa liberdade de luto foi cercada, regulamentada, diminuída. Da parte oficial, não podíamos ser nem ter aquilo que poderia trazer sossego à alma.

A pressão prolongada foi tanta que, entretanto, nos esquecemos de fazer tudo o que era de vital importância para a psique individual, para a alma, para a vida social e para o próprio tecido da sociedade.

A Capitulação das Instituições

O conluio das autoridades políticas com os media atingiu proporções grotescas. Ainda mais chocante foi a submissão eclesiástica: a Igreja, que deveria defender a pessoa humana como soberana, segundo a própria doutrina cristã, vergou-se às ordens da OMS, de Bruxelas e dos governos nacionais. Como em regimes autoritários de outrora, esqueceu a sua função profética e pastoral.

Os sistemas uniram-se contra a vontade individual e humana, chegando à conclusão confortável de que tinham carta branca para determinar o que bem lhes aprouvesse. Verificaram, com satisfação, que as populações não tinham espinha dorsal e facilmente se vergavam às autoridades, por mais arbitrárias que fossem.

O Método do Medo e do Dividir para Imperar

As estratégias de controlo social foram aplicadas com maestria maquiavélica. Utilizaram o método ancestral do medo como instrumento de domesticação. Dividiram a população entre “responsáveis” e “negacionistas”, transformando parte do povo em vigilante do próximo, em denunciante do cumprimento ou não das medidas regulamentadas.

A autoridade, em vez de se colocar ao lado do povo, limitou-se a seguir ordens ditadas por agendas de poderes anónimos, ou seja, o complexo político-farmacêutico industrial. Governantes na Alemanha e em Bruxelas aproveitaram-se para negociatas obscenas com encomendas de máscaras e vacinas, enriquecendo enquanto pregavam sacrifício coletivo.

As Vozes Dissidentes Silenciadas

Ao lado do cidadão conformado do mainstream, houve cidadãos conscientes e cientistas que se insurgiram contra o desrespeito governamental. Foram sistematicamente difamados, excluídos dos debates televisivos, onde só eram admitidos os defensores acríticos da vacinação obrigatória. O debate científico, fundamento da ciência autêntica, foi substituído por dogma sanitário inquestionável.

O caso emblemático da jovem meditadora numa cidade alemã ilustra a brutalidade deste regime: organizou manifestações pacíficas de meditação com música, defendendo a consciência individual. Os manifestantes ofereciam flores aos polícias, gesto que inicialmente era bem recebido. Numa ocasião posterior, ao baixar brevemente a máscara para ser mais bem compreendida durante o discurso, foi escoltada pela polícia e multada em dois mil euros, punição exemplar para quem ousava questionar.

Foi ainda obrigada a abdicar da sua função como orientadora de meditação num centro budista. A mensagem era clara: a dissidência, mesmo pacífica e meditativa, seria esmagada.

A Transformação da Democracia em Autoritarismo Sanitário

A imposição de medidas, muitas delas cientificamente dúbias, levou todas as instituições a alinharem-se com a classe política dirigente, contra os interesses e a saúde física e psíquica do povo. Tudo em nome da defesa da saúde do povo, paradoxo orwelliano que não passou despercebido aos mais atentos.

O comportamento da classe política e jornalística transformou a democracia, nominalmente em nome da saúde pública, num regime autoritário de facto. Desde então, o sistema democrático sofreu uma deslegitimação profunda. Uma parte crescente da população chegou à conclusão perturbadora de que poder democrático e poder autoritário, afinal, não se distinguem embora a retórica oficial proclame o contrário.

O Regresso da Sociedade de Denúncia e Incriminação

Surgiu entre os cidadãos uma desconfiança que evoca os dias sombrios da denúncia na antiga Alemanha Oriental. Com as medidas COVID, as autoridades fizeram a experiência, bem-sucedida, de que as populações são facilmente manipuláveis e podem ser colocadas umas contra as outras. Deste modo, as intenções governamentais tornam-se mais fáceis de implementar, sem necessidade de persuasão racional ou consenso democrático.

Do Estado de Excepção Sanitário ao Estado de Excepção Militar

Hoje, com a defesa de intenções beligerantes na Ucrânia e a transformação da União Europeia e do Reino Unido numa fortaleza militar, o povo cada vez mais desespera e se divide. Os governos, em vez de falarem com texto claro perante os cidadãos, atingem os seus objetivos mantendo-se na opacidade, prolongando a agressividade no confronto emocional que se estende até às famílias.

A política causa danos físicos e psicológicos imensuráveis à sociedade sem necessidade de assumir responsabilidade própria. A crise perpetua-se porque é funcional aos interesses de poder e lucro.

A Crise da Responsabilidade Política

Vivemos um momento histórico em que a crise civilizacional que atravessamos se deve, em larga medida, à atitude irresponsável de governantes e instituições voltadas exclusivamente para o poder e para o dinheiro. Esqueceram, ou desprezam, que governar é servir, não dominar. Que as instituições existem para proteger a dignidade humana, não para a instrumentalizar.

A classe política contemporânea, na sua maioria, perdeu o contacto com a realidade vivida pelos cidadãos comuns. Governa a partir de bolhas privilegiadas, rodeada de consultores tecnocráticos e lobbies empresariais, indiferente ao sofrimento que as suas decisões causam.

Quem Pode Ficar Calado?

Só quem não se conhece a si mesmo, nem compreende os meandros da política e da sociedade, pode permanecer calado e aceitar passivamente a nova maneira de estar político da União Europeia e dos estados-membros. A submissão silenciosa não é virtude; é cumplicidade.

A nossa época exige coragem cívica, a coragem de dizer “não” quando a autoridade excede os seus limites legítimos, a coragem de defender a dignidade humana mesmo quando isso implica custos pessoais, a coragem de recordar aos poderosos que o poder democrático é delegado, revogável e limitado.

Um Alerta à Consciência Coletiva

Este texto é um alerta, para políticos, instituições e sociedade civil. As escolhas que fizemos durante a pandemia não foram técnicas ou neutras; foram políticas e morais. Revelaram quem somos e que sociedade estamos a construir.

Se não recuperarmos a capacidade de pensar criticamente, de questionar autoridade, de defender os espaços de liberdade conquistados ao longo de séculos, corremos o risco de entregar, definitivamente, a nossa autonomia a elites que não merecem a nossa confiança.

A democracia não é um estado permanente; é uma conquista frágil que exige vigilância constante. Quando o medo se torna instrumento de governação, quando a obediência substitui o juízo crítico, quando o estado de exceção se normaliza, então a democracia já morreu, mesmo que as suas instituições formais ainda funcionem.

É tempo de acordar. É tempo de recordar. É tempo de resistir.

© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

Pegadas do tempo