A NOVA BARREIRA ALFANDEGÁRIA DA UE

Protecionismo, Receita fiscal ou uma Medida contra a China?

Num movimento que marca uma viragem significativa na política comercial europeia, os Estados-Membros da União Europeia aprovaram a imposição de taxas alfandegárias sobre todas as importações, incluindo pequenas encomendas com valor inferior a 150€. A partir de julho de 2026, estas encomendas, até agora isentas, estarão sujeitas a uma taxa fixa de 3€. A medida, justificada pela Comissão Europeia como uma forma de nivelar o campo de jogo perante a avalanche de importações baratas, gera um intenso debate. Para muitos, é um passo necessário para proteger a economia europeia; para outros, representa mais uma forma de o Estado “encher os seus próprios bolsos” sob o pretexto de medidas contra a China.

O Fim de uma Era: A Isenção dos 150€
Desde há décadas, o limiar dos 150€ funcionou como um estímulo ao comércio internacional de baixo valor, permitindo aos consumidores europeus com menos recursos adquirir bens de todo o mundo sem burocracia ou custos adicionais. Esta isenção foi, no entanto, corroída pela explosão do e-commerce transcontinental, particularmente com a ascensão de gigantes baseados na China como Shein, Temu e AliExpress. Estas plataformas, com seus modelos de negócio baseados em volumes astronómicos de pequenas encomendas diretas ao consumidor, dominam agora o fluxo de bens de baixo custo para a UE. A Comissão Europeia estima que, só em 2024, 12 milhões de encomendas cheguem diariamente ao espaço comunitário, um número que pressiona os sistemas logísticos e alfandegários e que, argumenta Bruxelas, distorce a concorrência com os retalhistas europeus.

Objetivos Declarados e Críticas
Os proponentes da medida defendem-na com três argumentos principais:

– Equidade no Mercado: Acabar com a vantagem competitiva “injusta” de retalhistas não-europeus que não cumprem as mesmas regras fiscais, ambientais ou laborais.

– Nivelamento Fiscal: Combater a evasão do IVA, garantindo que todas as encomendas contribuem para as receitas dos Estados-Membros.

– Financiamento da Maquinaria Aduaneira: A taxa fixa de 3€ ajudará a financiar os custos operacionais crescentes do controlo aduaneiro desta miríade de pequenas encomendas.

No entanto, a medida é alvo de veemente crítica. Os governos usam o pretexto geopolítico e de “proteção do mercado único” para aumentar a receita fiscal à custa do consumidor comum. A taxa de 3€ sobre uma encomenda de 5€ ou 10€ representa um acréscimo percentual brutal, funcionando efetivamente como um imposto regressivo que pesa mais sobre as famílias com menos recursos.

Impacto em Cadeia: Consumidores, Plataformas e a Logística
As consequências serão vastas:

– Para o Consumidor: O fim da “pechincha” verdadeiramente global. O preço final dos artigos baratos aumentará substancialmente, podendo reduzir o poder de compra e a variedade de escolha.

– Para as Plataformas Online (Shein, Temu, AliExpress): O seu modelo de negócio, assente em margens baixíssimas e volume extremo, enfrenta um desafio existencial. Terão de absorver o custo, repassá-lo ao cliente, ou reinventar as suas cadeias logísticas, possivelmente através de armazéns dentro da UE.

– Para os Serviços Aduaneiros e Correios: Pressupõe uma complexidade logística monumental. Processar milhões de micro-taxas diárias exigirá uma automação e eficiência sem precedentes, sob o risco de criar enormes gargalos e atrasos na entrega.

Uma Medida Antichinesa?
Embora a medida seja tecnicamente “neutra” e se aplique a encomendas de qualquer origem, o alvo político e mediático é claro: a China e as suas plataformas de e-commerce. A medida insere-se num contexto mais amplo de reavaliação das relações económicas UE-China, que inclui investigações por subsídios, preocupações com direitos humanos e dependências estratégicas. A taxação das pequenas encomendas é, assim, a frente mais visível e diária desta nova postura comercial defensiva.

Um Novo Paradigma com Custos
A aprovação desta taxa alfandegária simboliza o fim da era de um comércio global sem atritos para o cidadão comum. A UE, ao desmantelar a isenção dos 150€, escolhe prioritariamente proteger a sua base industrial e arrecadar receitas, aceitando o custo político de um consumo mais caro. A medida pode, de facto, forçar uma maior internalização das cadeias de abastecimento e oferecer um fôlego aos retalhistas europeus. No entanto, como bem aponta a crítica, o risco de ser percebida como mais um imposto disfarçado, que beneficia o Estado sob o manto de uma narrativa geopolítica, é real. A partir de julho de 2026, o preço da globalização, até para a mais pequena encomenda, terá um custo mais visível: 3 euros.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A DECISÃO DE EMERGÊNCIA DA UE SOBRE ATIVOS RUSSOS EXIGE VIGILÂNCIA DO CIDADÃO

Introdução: Um Precedente Perigoso
A recente decisão da União Europeia de manter imobilizados os ativos do Banco Central da Rússia, baseada numa cláusula de “emergência económica”, consolida um padrão preocupante porque arbitrário. Este mecanismo, justificado como excecional, permite contornar a regra da unanimidade entre Estados-Membros, princípio fundador que garante equilíbrio e soberania dentro do bloco. A prática, já testada durante a pandemia de COVID-19, revela como a classificação de uma situação como “emergência” serve frequentemente de pretexto para decisões políticas rápidas, pouco escrutinadas e potencialmente arbitrárias.

O Equilíbrio Perdido: Segurança contra Soberania
Este caso vai além do juízo sobre a Rússia e coloca uma questão fundamental: qual é o equilíbrio adequado entre medidas de segurança económica ou estratégica e os princípios de propriedade privada e soberania financeira? E, sobretudo, quem decide esse equilíbrio, e com que mandato? O que hoje se aplica a ativos russos pode, amanhã, justificar o bloqueio de contas de qualquer cidadão ou Estado sob nova “emergência”. A arrogância do poder, a pretexto do COVID e da Guerra, está a corroer as garantias legais e a tornar-se insuportável para cidadãos conscientes.

Geopolítica na UE: A Lei do Mais Forte
A guerra na Ucrânia evidenciou, de forma crua, as divisões geopolíticas na Europa. Em vez de uma resposta verdadeiramente coletiva, assistiu-se ao oportunismo de uma Europa dividida, onde os interesses das grandes potências, notadamente o núcleo da E-3 (Alemanha, França e, outrora, o Reino Unido), frequentemente se sobrepõem aos dos demais Estados-membros. Para impor os seus interesses, estas potências recorreram ao estratagema da “emergência”, suspendendo o compromisso da unanimidade e, com ele, o principal mecanismo de proteção das soberanias nacionais mais pequenas.

Os Pequenos Estados: Campo de Batalha das Potências
Esta dinâmica segue a lógica da “lei do mais forte”, que só é contida por um poder equivalente. Na sua ausência, os países menores tornam-se o campo de batalha onde as potências disputam influência, vendo-se obrigados a “pôr-se em bicos de pés” para se alinharem com os grandes. Essa posição é instável e leva à abdicação dos seus próprios interesses nacionais, como se observa no isolamento imposto a países como a Hungria quando ousam divergir. O fraco é instrumentalizado, e a solidariedade europeia revela-se seletiva.

Consequências: Erosão da Confiança e Danos Colaterais
O congelamento prolongado de ativos soberanos, agora normalizado como procedimento automático, fragiliza a confiança no sistema financeiro internacional e levanta sérias dúvidas sobre a proporcionalidade e a transparência das instituições da UE. Além disso, o recurso crescente a sanções económicas como instrumento político raramente atinge apenas as elites; os danos espalham-se maleficamente por sociedades inteiras, afetando cidadãos comuns tanto do lado sancionado como do lado sancionador. A história mostra que os conflitos são muitas vezes alimentados por elites, mas os custos são invariavelmente distribuídos pelos povos.

Conclusão: O Imperativo da Vigilância Cívica
Num momento em que decisões cruciais são tomadas em nome da Europa, é fundamental que os cidadãos mantenham um espírito crítico aguçado e exijam transparência absoluta. É urgente recordar aos representantes que a democracia não pode degenerar num governo tecnocrático, autoritário e opaco, desligado do bem comum. A vigilância cívica é o último garante contra a corrosão da democracia, das liberdades e o abuso de poder. Não podemos permitir que “emergência” se torne sinónimo de arbitrariedade institucionalizada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo:

 

EDUCAR PARA UMA PAZ DESARMADA E DESARMANTE

Voz da Igreja Católica Italiana: Uma voz no Deserto?

 Na recente “Nota Pastoral” da Conferência Episcopal Italiana (CEI), publicada em 5 de dezembro de 2025 sob o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, os bispos italianos tornam-se na consciência crítica à onda de armamento na Europa apresentando um contraponto moral e cultural  à espiral de rearmamento. Já no Jubileu do Mundo Educativo o Papa Leão XIV afirmado que “uma educação desarmante e desarmada cria igualdade e crescimento para todos”.

O objetivo central da nota dos bispos reunidos em Assisi é “redescobrir a centralidade de Cristo como fundamento da paz „ e chamar comunidades, fiéis e sociedade a adotarem uma “cultura de paz” e “não de violência”.

Diagnósticos que fundamentam a exigência de um apelo à paz

A Escalada de conflitos e risco nuclear

– O documento da CEI assinala um crescimento do “nível de conflitualidade entre as grandes potências”, com a possibilidade, por vezes real, de “escalação nuclear”, o que gera angústia e “erosão da esperança”, especialmente nas novas gerações.

– A guerra, com suas “inúteis carnificinas”, muitas vezes de civis e crianças e a lógica da “dissuasão armada” são vistas como moral e socialmente insustentáveis.

Crescente investimento militar e mercado de armas

A nota denuncia o crescimento acelerado dos gastos militares: segundo o documento, o gasto militar mundial em 2024 ultrapassou 2,7 trilhões de dólares. Esse montante, observa a CEI, desvia recursos necessários para construir um mundo habitável: combater fome, pobreza, crises ambientais e promover um desenvolvimento humano.

A CEI chama atenção para quem lucra com o comércio e a produção de armas, inclusive bancos e investidores e convida para o desinvestimento (objeção financeira) dessas indústrias.

Desconfiança da lógica do “rearmar para defender”

A argumentação central é que a necessidade de defesa não pode ser usada como pretexto para uma corrida aos armamentos. A CEI considera “contraditórias” as políticas de pesados investimentos bélicos adotadas desde a invasão da Ucrânia pela Rússia.

A nota convoca a União Europeia a retomar o caminho da paz, construído no pós-Segunda Guerra Mundial, ao invés de transformar a segurança num negócio de armas e poder militar.

Propostas e orientações da CEI

A CEI não se fica só pelo diagnóstico, ela sugere uma série de caminhos práticos e culturais para enfrentar a crise da paz:

– Educar consciências: as comunidades cristãs (paróquias, dioceses), famílias, escolas — todos devem promover “a cultura da paz, do diálogo, da misericórdia, da fraternidade e do respeito mútuo”.

– Serviço civil obrigatório em vez de serviço militar obrigatório: como alternativa à militarização, a nota propõe a instituição de um serviço civil obrigatório para os jovens, como  forma de investir em paz, solidariedade e cuidado social.

– Rever a presença religiosa nas forças armadas: a CEI questiona o papel dos “cappellani militari” integrados ao aparato militar, sugerindo formas de assistência espiritual não vinculadas diretamente às forças armadas.

– Objeção financeira: incentivar indivíduos e instituições a desinvestirem de empresas e indústrias armamentistas.

– Construção de “casas de paz”: cada comunidade cristã é convidada a tornar-se “uma casa de paz e de não-violência”, cultivando justiça, perdão, diálogo, acolhimento e solidariedade.

– Aposta na justiça restaurativa e cuidado da Criação: a paz — para a CEI — não é apenas ausência de guerra, mas justiça social, reconciliação, cuidado com o meio ambiente e com o humano.

Tom teológico e ético: paz como chamamento existencial e comunitário

– A CEI reafirma que a paz não é uma abstração ou opção política neutra, mas um compromisso radical inspirado no Evangelho. A “regra da paz” exige um “exercício global e cotidiano” de misericórdia, fraternidade, cuidado pelo outro em oposição à lógica da força.

-A nota retoma o ensinamento de Papa Francisco (e de Fratelli tutti) de que a paz exige conversão cultural e ética: não basta evitar guerras, é preciso construir comunidades que pratiquem justiça, reconciliação e solidariedade.

– Para a CEI a paz não é passiva: é um esforço ativo, “desarmado e desarmante”, que rejeita a lógica da detenção do poder militar como condição de segurança.

Relevância para o contexto atual da Europa e implicações para a Alemanha

Considerando a crescente militarização e os debates sobre defesa na Europa (incluindo países como a Alemanha), a nota da CEI destaca-se como um contraponto moral e cultural à espiral de rearmamento. Algumas implicações que podem fomentar uma atitude crítica:

– Crítica à “segurança pela arma”: ao questionar investimentos massivos em armamento e afirmar que a defesa não justifica o rearmamento global, a CEI sugere que a lógica da segurança militar permanente é autodestrutiva, especialmente num continente com tensões históricas e memória de guerras.

– Alternativas concretas de paz e segurança: propostas como serviço civil obrigatório, desinvestimento da indústria bélica, justiça restaurativa, acolhimento, solidariedade, oferecem alternativas à militarização, valorizando coesão social, bem-estar, dignidade humana e ecologia.

– Apelo à Europa como agente de paz e de integração: a CEI entende que a União Europeia não deve tornar-se um bloco de “poder militar”, mas um espaço de cooperação, diálogo e convivência, visão esta que desafia nacionalismos e retóricas securitárias.

– Dimensão ética e espiritual: num momento de crise de valores, desemprego, polarização social, crises de refugiados e xenofobia, a nota oferece um referencial ético profundo de reconciliação, acolhimento, cuidado com a fragilidade humana como alternativa à escalada armamentista.

– Prevenção de lógicas de guerra como cultura dominante: a CEI adverte que o apego à “ameaça” e à produção/negócio de armas pode normalizar a guerra como meio de resolução de conflitos, é algo perigoso para a paz duradoura e para a promoção dos direitos humanos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A PROFUNDIDADE DO ADVENTO

Espera que arde e Esperança que encarna

A Arte de esperar acordado

O Advento não é simplesmente um tempo de preparação para o Natal. É, antes de tudo, uma escola da existência, um ritmo espiritual que nos confronta com a condição humana mais fundamental: a de seres em espera. Como escreveu Simone Weil, “a espera é a mais alta forma de atenção” e o Advento é justamente o exercício dessa atenção radical. O mundo, na sua brutalidade e beleza, escapa ao nosso controlo. De facto, não podemos salvar o mundo, nem proteger as pessoas do mal e do erro.

Esta impotência, porém, nunca pode justificar uma resignação bovina, uma vida reduzida à erva rasteira ao nível do chão. Tal atitude seria uma traição à nossa própria natureza. A vida, com toda a sua majestade e mistério, é muito maior e mais expansiva do que os estreitos limites da nossa compreensão. Santo Agostinho recorda-nos: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.”

É precisamente esta consciência da nossa finitude e falibilidade que nos torna dependentes da graça e da misericórdia. Contudo, paradoxalmente, essa dependência não anula a vontade; pelo contrário, ilumina-a. Não apaga a vontade de sermos esperançosos buscadores. Pelo contrário, é a partir deste reconhecimento humilde que a busca verdadeiramente pode começar. O Advento é o apelo solene a essa busca esperançosa a esta inquietação luminosa que nos empurra para o alto.

Deus dispõe… através das nossas Mãos

Já Séneca dizia: “Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que elas são difíceis.”

O homem propõe e Deus dispõe. Este antigo adágio não nos condena à passividade, mas revela a colaboração sagrada da história. Deus dispõe, mas fá-lo através das mãos humanas que aceitam realizar a Sua mensagem. Nós somos, de facto, as mãos de Deus. Como escreveu Teresa de Ávila: “Cristo não tem agora outro corpo senão o teu.” O Advento ou se realiza em nós ou não se realiza.

Este é o cerne da responsabilidade espiritual: mesmo quando o mundo parece destinado à decadência, à ruína ou à repetição horrível de ciclos de violência, a nós é deixada a iniciativa de, no nosso pequeno espaço, germinar o novo. O Verbo fez-se carne, mas continua a precisar de corpos que O encarnem no tempo. O nosso “devir” é este contínuo processo de gestação, que só termina com o último suspiro.

E nesse respirar há uma saudade da paz que é o sopro divino dentro de nós. Contudo, essa paz não é fuga; não pode esconder-se em recantos interiores, recusando-se a encarar a fealdade que a ameaça de fora e de dentro. “A paz não é a ausência de conflito, mas a presença de justiça,” recordava Martin Luther King Jr.

A fealdade é vasta e a vida aponta muitas vezes para os infernos da impotência, da insegurança e da barbárie que tantos são forçados a habitar. Aponta para o purgatório da indiferença sarcástica que nos permite viver ao lado desses sofrimentos, anestesiados pela enxurrada de notícias que nos informam sem nos transformar.

O Incenso e o Fogo interior

Como manter a esperança diante deste abismo?

A esperança é como o incenso da nossa vida. Procuramos nele resiliência, coragem e paz. Mas esquecemo-nos: para respirarmos o seu aroma, algo tem de arder. A verdadeira esperança adventícia não é um sentimento confortável; é um fogo que purifica. Exige que algo em nós seja consumido: a indiferença, o comodismo, as ilusões de autossuficiência.

Vivemos no entremeio, no território tenso entre a contemplação e a ação, entre a paz interior e a luta contra a fealdade exterior. Só nesse entremeio nasce o discernimento. Para isto aponta Bonhoeffer quando dizia: “A ação nasce do pensamento responsável; mas só quem espera pode realmente agir.”

A Luz que já veio e ainda espera por nós

É nesta tensão que o paradoxo central do Advento resplandece: esperar pelo que já chegou e se encontra soterrado nas cinzas de cada um de nós. A Luz já veio ao mundo; o Reino já irrompeu em Cristo. Mas, como uma semente ou uma brasa sob cinzas, aguarda a nossa cooperação para se reacender e crescer.

A esperança, portanto, não é a expectativa vaga de um futuro melhor. É a expectativa de que algo aconteça em nós. É a força ativa de quem, sabendo que a vitória final é certa, luta no presente para que ela se manifeste. É a força da onda que avança contra a que a envolve e faz retroceder.

Neste caminho surgem aqueles que mantêm uma atenção especial: os profetas do nosso tempo. São os que percebem a inquietação antes dos outros, os que expressam a perturbação silenciosa que nos sacode do torpor. Neles, algo da orientação divina pode revelar-se. Eles são os arautos do Advento, lembrando-nos que a espera não é vazia, mas grávida de Deus.

O Advento convida-nos a uma espera ativa. É um tempo para deixar arder, como o incenso, os nossos medos e egoísmos. Um tempo para escavar as cinzas do nosso cansaço e cinismo e reencontrar a brasa da promessa divina. Um tempo para, com as mãos de Deus que somos, trabalhar para aliviar os infernos e purgatórios à nossa volta, por pequena que seja a nossa ação.

E é, sobretudo, um tempo para reafirmar, com uma fé que é confiança radical no que virá, que enquanto houver um coração humano em espera, a Luz não se apagou. A onda do Espírito continuará a avançar, até que a espera se dissolva no encontro e a esperança dê lugar à visão preanunciada no presépio.

A Título de Conclusão

Conta-se que, numa aldeia perdida entre montanhas, havia uma sentinela que todas as noites subia ao alto da colina para vigiar. Muitos riam dela, pois o horizonte estava sempre escuro e nada acontecia.
Uma noite de inverno, um jovem da aldeia perguntou-lhe: “Porque sobes tu, se nunca vês nada?”
A sentinela respondeu: “Eu não subo para ver. Subo para que, quando a luz vier, não a encontre sozinho a dormir.

O jovem ficou silencioso, e a sentinela acrescentou: “E quando o frio me vence, faço o que posso: sopro a minha pequena brasa. Se ela se apagar, como aquecerei quem vier pedir-me calor?”

Na primavera seguinte, uma tempestade devastou a aldeia. Muitos procuraram abrigo na colina. Lá encontraram a sentinela, e ao seu lado, humilde, mas viva, a pequena brasa que aquecia as mãos de todos.

E foi então que compreenderam: a sentinela não esperava porque via a luz, esperava para que a luz tivesse quem a visse.
E a brasa, pequena como era, não salvou o mundo; mas salvou aqueles que lhe ficaram próximos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo