ANUNCIAÇÃO

 

Entre o ventre da terra e o da mulher,

canta-se a vida —

soprada à sombra do pólen errante,

que, guiado por cardeais do desejo,

pousa onde o amor ainda é promessa.

 

As mulheres —

obreiras do invisível —

acendem o sol em silêncio noturno

e ao amanhecer

despem-se da lua

para dar rosto ao mundo

e corpo a vidas sem rima.

 

Bailarinos, guerreiros e ninguéns —

sustentam o frágil respirar da sociedade,

como relva sob palcos em festim,

como o vazio que molda o real.

Cada um,

mapa de carvão na pele do tempo,

guia o que a luz não revela.

 

No elo entre o feminino e o masculino

vive o Eros primordial —

fogo que move o humano,

gérmen de gesto e sentido,

a centelha que acende

o teatro secreto da existência.

 

A Anunciação (1) não é instante,

mas condição primordial:

o ser aberto em chaga viva,

ferido de eternidade.

 

Maria ainda caminha,

e em seu ventre—

o húmus da terra e o verbo do céu

fundem-se num só ritmo:

sopro de lama e fogo,

gestação do humano no divino.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Nota: António da Cunha Duarte Justo é poeta, ensaísta e observador atento da condição humana, cujos textos conjugam densidade simbólica, enraizamento espiritual e lucidez social. Em Anunciação, parte da imagem arquetípica do anúncio angélico a Maria — momento de revelação, de fecundação divina e humana — para transpor essa experiência simbólica ao ventre da terra e da mulher, fundindo num mesmo sopro o sagrado e o terreno. A poesia surge assim como anúncio e como parto: uma travessia entre o invisível e o vivido. O simbólico e o existencial dialogam, não como categorias opostas, mas como dimensões convergentes do real. Assim a escrita de António Justo convida a uma escuta interior e não a análises ideológicas: nela, o espiritual não é fuga do mundo, mas revelação da sua profundidade. Entre o sensível e o transcendente, entre a carne e o logos, o autor delineia com traços líricos uma antropologia poética da comunhão.

O Espelho Rachado da Liberdade

(Alegoria da Cidadania Usurpada)

 

Nas praças do tempo ressoam tambores,

mas dançam os mesmos — herdeiros do trono

que de mão em mão passam o cetro mudo,

enquanto o povo, de olhos vendados, aplaude o luto.

 

A política, velha atriz de mil máscaras,

oferece-nos sonhos envernizados,

liberdades com correntes invisíveis,

e um céu onde voar… só com asas emprestadas.

 

Dizem-nos: “És livre! Escolhe!” —

mas entre sombras, quem vê o caminho?

Prometem mundos e fundos

desde que não se deseje o mais simples:

uma vida de pão e alegria,

de riso e responsabilidade partilhada.

 

Vendemo-nos por moedas de direitos vazios,

e em troca tiram-nos a alma do dia.

Chamam a isso progresso —

mas é só o velho truque de sempre:

dar à pedra o nome de pão,

à mordaça o nome de voz.

 

Os plutocratas, senhores da fala,

altifalantes do engano bem vestido,

ensurdecem-nos com promessas,

enquanto a dignidade escorre pelas frestas da história.

 

E nós, filhos da esperança,

tateamos no escuro por um gesto,

um sinal de que viver ainda pode ser mais

do que obedecer sorrindo.

 

Oh, democracia, irmã ferida da justiça,

onde é que te escondes?

Em que canto te recolheste

enquanto te desfiguram com trapos de ideologia e medo?

 

Mas ainda há quem sonhe —

e quem se erga.

Na poeira do esquecimento

nascem vozes que recusam a servidão disfarçada.

 

Que a liberdade não seja licença para a indiferença,

mas sim o fogo que ilumina o rosto de cada um,

na alegria de sermos diferentes

e iguais no direito de existir com dignidade.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

NO PRINCÍPIO DOS PRINCÍPIOS

(Céu e Terra, masculino e feminino são parábolas e eu o enredo delas)

 

Sou a miniatura do universo criado,

um segredo que se dobra em si mesmo —

matéria e verbo entrelaçados,

terra que gera e relâmpago que queima,

silêncio húmido da terra virgem,

semente que espera o grito do rebento.

 

Sou Adão que traz na carne a memória do primeiro sopro,

nas veias, o rumor do rio antigo

que nunca cessa de procurar o mar,

no peito, o incêndio da fronteira,

o fogo que delimita, que fere, que protege,

mas também o ardor que deseja dissolver-se,

ser nuvem, ser fonte, ser mar.

 

Dentro de mim, o masculino e o feminino

não são rótulos, não são géneros, mas chaves,

idiomas secretos de um mesmo abismo —

o fogo que cerra e contém,

o rio que abre e acolhe.

Sou ambos, sou ponte,

sou aquilo que a Criação continua a revelar.

 

Minha carne é gramática do Mistério,

verbo que se faz limite e, inquieto,

Nome na procura do que o transcende.

Habito na fresta onde os opostos se beijam:

sou o barro que sonha ser estrela,

a palavra que, encarnada,

se descobre inacabada,

anseia ser mais que som,

mais que corpo,

ser o eco inteiro da Trindade,

onde o Um se desfaz no Três,

e o Três se resolve no Um.

 

E é no abraço — mais que de corpos, de contrários

que reencontro a pegada do Início,

a linguagem secreta da Origem,

onde ser limite é apenas o princípio

de aprender a ser infinito.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A Onda Guerreira Ameaça Dominar os Diferentes Setores da Sociedade: Um Apelo à Consciência

Kassel: Do Passado Destruído ao Presente Belicista

Durante a Segunda Guerra Mundial, dois terços da cidade de Kassel, na Alemanha, foram reduzidos a escombros devido à sua importância estratégica na indústria de armamentos. Ironia da história, hoje, Kassel volta a ser um dos maiores centros da produção bélica germânica. O ciclo parece repetir-se, mas desta vez com um agravante: a normalização da guerra como política de Estado.

O Requerimento que Simboliza uma Tendência Perigosa

Recentemente, em Niestetal-Kassel, o partido CDU apresentou no parlamento um pedido para a construção de uma pista de testes de tanques, com uma extensão de 100 hectares — o equivalente a 140 campos de futebol. Este projeto não é um caso isolado. Em toda a Alemanha, os partidos do arco do poder têm abraçado um discurso belicista, pressionando por mudanças legais que facilitem o armamento e a militarização. Manifestação em Niestetal. Há 8 horas — Manifestação em frente ao conselho distrital

Contra essa corrente, manifestantes tomaram posição (4/6/2025) em frente ao conselho distrital com palavras de ordem que ecoam como um grito de alerta: “Carteiras escolares em vez de carreiras de tiro”, “Capacidade de paz em vez de capacidade de guerra”, “Mais ativistas da paz e menos belicistas”. No entanto, a resposta da imprensa mainstream tem sido uma “artilharia pesada” contra os pacifistas, enquanto o governo alemão justifica o investimento militar como motor de recuperação económica.

A Militarização da Educação e a Lavagem Cerebral das Novas Gerações

O cenário torna-se ainda mais sombrio quando empresas de armamento buscam infiltrar-se nas escolas, participando em feiras de orientação profissional para recrutar jovens. Com financiamento estatal, ambicionam também influenciar a investigação universitária, direcionando-a para o desenvolvimento de tecnologias bélicas.

Onde estão os espaços que promovam a cultura da paz? As escolas preparam os alunos para a competição, mas não para a cooperação. Quem defende a presença da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) nas salas de aula não fala do futuro — fala da guerra. E, pior ainda, está a servir um “modelo de negócio de morte”.

A Hipocrisia dos Partidos “Cristãos” e a Manipulação da Opinião Pública

Os partidos com a letra “C” (de cristão) no nome abandonaram qualquer princípio pacifista, alinhando-se com a indústria da guerra. Sob o pretexto de “todos queremos a paz”, promovem as “oficinas da guerra” com um fervor inédito. Enquanto isso, a opinião pública é manipulada por uma narrativa que esconde os verdadeiros problemas sociais, transformando a população em marionetas de um jogo geopolítico perigoso.

O Papa Leão XIV já alertou: “A aprendizagem do respeito e da amizade é condição prévia para a paz.” Mas a Alemanha, aspirante a líder da União Europeia, parece empenhada em transformar o continente no “segundo grande polo armamentista”, logo atrás dos EUA.

A Esperança Resiste: Os Jovens e a Resistência Pacifista

Apesar da propaganda, um estudo recente — “Jovem Europa 2025” — revela que 55% dos alemães entre 16 e 26 anos rejeitam o serviço militar obrigatório. Apenas 38% apoiam a medida. Os Verdes, por sua vez, tentam trazer transparência, prometendo tirar a Bundeswehr e as empresas de armamento “da sombra”.

A Cultura como Último Bastião da Paz

É urgente que a arte — o teatro, a música, a literatura — assuma o seu papel como “mensageira da paz”, recusando-se a ser instrumentalizada como “música de fundo” da política belicista. A sociedade não pode permitir que a guerra seja normalizada.

Chegamos a um ponto de viragem. Ou escolhemos o caminho da diplomacia e do humanismo, ou seremos arrastados por uma onda de militarismo que só trará mais destruição. A pergunta que fica é: Onde é que chegámos? E, mais importante ainda: Para onde queremos ir?

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

O Eros e a Busca da Integridade: Entre o Mito e o Sagrado

Em Diálogo com Platão, Jung e a Trindade no Contexto do Sexo como Ritual sagrado

A humanidade é um rio que corre entre duas margens: a espiritualidade, que busca resposta para o sentido da existência, e o desejo sexual, que obedece ao impulso primordial da perpetuação. Mas será que essas duas correntes são verdadeiramente distintas? Ou serão antes expressões de uma mesma sede — a ânsia de perfeição, o retorno a um estado perdido de harmonia primordial (ou a necessidade de envolvimento no processo “mítico” de encarnação e ressurreição)?

Na origem de tudo, está o Eros — não como mero instinto, mas como energia cósmico-divina que move o homem e a mulher em direção à sua metade ausente. Platão, no Banquete, narra o mito do Andrógino, essa criatura esférica, duplamente sexuada, que outrora caminhava em plenitude até que a inveja dos deuses a dividiu em duas partes, condenando-nos à eterna busca um do outro (e ou do Outro). Desde então, o amor terreal não é senão a sombra desse paraíso perdido, um eco da unidade original. Cada abraço, cada entrega carnal, é uma tentativa desesperada de reencontrar a esfera perfeita, de fundir-se outra vez no Todo.

Mas o Eros é mais do que a simples junção de corpos. Ele é um ritual sagrado, uma liturgia em que homem e mulher, ao se unirem, repetem simbolicamente o gesto divino da Criação. Nele, o masculino — voltado para o exterior, para a ação, para o domínio — dissolve-se no feminino, que é receptividade, interioridade, mistério. E a mulher, por sua vez, encontra no homem o seu ânimus, a força que a projeta para além de si mesma. Ambos buscam, no outro, aquilo que lhes falta, não para aniquilar-se, mas para transcender-se, não extinguindo-se na dualidade, mas complementando-se de forma exuberante num processo de relação trinitária ou do eu-tu-nós.

No entanto, a sociedade, moldada por séculos de patriarcado, distorceu esse diálogo intersubjetivo criativo. (Não compreendeu o mistério da relação expresso na fórmula trinitária. Em vez de afirmar a relação vital complementar dividiu-a em relações funcionais de necessidade e de interesse – manietando homem e mulher a seres objectivados). Reduziu a mulher a objeto, enfeite do desejo masculino, e aprisionou o homem numa máscara de domínio, negando-lhe a própria feminilidade interior. O ato sexual, em vez de celebração, tornou-se funcionalidade; em vez de rito tornou-se folclore. A repressão do sagrado no Eros é sintoma de uma cultura que exalta a conquista, a violência, a cisão — esquece que a verdadeira vocação humana é a complementaridade.

Que aconteceria se, libertas dos tabus, as mulheres reivindicassem plenamente a sua dupla natureza — tanto a força do ânimus como a profundidade do feminino? E se os homens, por sua vez, não temessem acolher a ânima, essa interioridade tantas vezes negada? Talvez então vislumbrássemos uma cultura não da competição, mas uma cultura da paz, da comparticipação; não da guerra, mas do encontro.

(Quando chegará o momento em que a política reconhecerá que masculinidade e feminilidade são princípios vitais e complementares em cada ser humano – e deixará de impor a todos a mesma matriz arcaica (esmagando todos no mesmo molde masculino), reduzindo até as mulheres a meras peças funcionais de uma máquina social desumanizada, ao serviço de uma norma masculina exacerbada? Até quando se continuará deste modo a destruir a alma da sociedade – e a reduzir o feminino a engrenagem de um sistema sem rosto? (1)

O sexo é, na sua essência, um limiar. Realiza-se no adro do templo, na fronteira entre o humano e o divino. Nele, homem e mulher não são apenas amantes, mas celebrantes de um mistério maior: a reconciliação das metades, o reencontro com o círculo perfeito e a unidade do três no um, como bem manifesta a dinâmica relacional do mistério da Trindade. E assim, no êxtase que os une, eles tocam, ainda que por um instante, o Paraíso.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

(1) Encontramo-nos num processo de homogeneização moderna que leva à perda do dualismo vital!