A CONSCIÊNCIA SOBERANA

Não nasceu do decreto
nem do voto contado ao entardecer.
Não se ergueu em parlamentos
nem aprendeu a linguagem das maiorias.
A fé, essa da consciência,
nasceu onde o poder não entra:
no silêncio em que o homem
se sabe mais do que função.

As fés seculares constroem-se em andaimes:
supraestruturas de sentido calculado,
máquinas de consenso,
pedagogias da obediência feliz.
Prometem liberdade administrada,
direitos garantidos por sistemas
que pedem, em troca,
a rendição íntima do olhar.

Mas a consciência não se assina.
Não obedece à geometria dos regimes
nem ao tempo curto das ideologias.
Atravessa impérios,
sobrevive a constituições,
assiste, paciente,
à queda sucessiva das formas
que juraram ser eternas.

Por isso a fé pessoal incomoda.
Porque não depende do Estado,
nem da técnica,
nem do aplauso moral do tempo.
Ela subsiste como brasa
sob a cinza das épocas,
esperando apenas
que o tempo mude de voz.

Até na Igreja, feita de Pedra e história,
há trono e há limite.
Há autoridade,
mas há um santuário que nem o Papa habita:
a consciência, esse espaço inviolável
onde Deus fala sem intermediários
e o homem responde sem delegar.

É aí que o cristianismo se torna constitucional
antes de o ser político:
quando afirma que nenhuma ordem,
nem mesmo sagrada,
pode substituir o juízo último
do coração iluminado.

Por isso os regimes desconfiam.
Os de ferro, como o chinês,
e os de veludo, como a nossa democracia.
Ambos toleram a fé
desde que domesticada,
desde que aceite ser cultura
e não critério,
rito e não resistência.

Mas a luz interior,
como a de Luzia,
prefere perder os olhos
a perder a visão.
E lembra ao mundo, século após século,
que a verdadeira soberania
não se governa: testemunha-se.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

AS CORES DA AMIZADE SOB O ARCO DA PRESENÇA

Só, sob o arco que une céu e chão,
Sinto orvalhar em flocos o pensamento.
E com asas de sonho, na amplidão,
Sigo a aragem suave do tempo.

Solidão que em mim se torna vaso
Onde o mar pousa a sua voz profunda,
E anjos, sem rumor, num doce caso ,
Minha tristeza com meus amigos embalam.

Na amizade que é filha do bem-querer,
Sinto o lugar quieto onde Deus habita.
Porta aberta para se ser e ter,
Onde a felicidade, livre, palpita.

– Corações de portas escancaradas,
Cultivai a amizade, a partilha pura,
Cuja ternura, por estradas delicadas,
Vem da estima, do afeto, da doçura!

Ela é o abanador na lareira da vida
Que aviva a brasa da existência,
Para que cada qual, na chama acendida,
Respeite e sinta a própria essência.

Vencerá o mal-querer, embora ele
Se empoleire nos altos do poder.
É energia que em nós se revela,
Asa que salva e sustém no querer.

No teu sorrir, o sol aquece e alumia
O caminho que trilho, claro ou obscuro.
No teu sorrir, a alegria que é minha
Encontra um lago puro, num colo seguro.

Amizade é amor, que fica depois
Da dor, no rotineiro da existência (1).
Refúgio das intempéries e dos bojos
Que o destino traz na sua inclemência.

Há a calorosa, que desce connosco
À adega escura e forte da jornada.
Há a do “vá com Deus”, leve e veloz,
Na despedida ligeira e apressada.

E há momentos em que o peso, mais denso,
Faz brotar no peito uma saudade:
E sinto-me, então, no regaço imenso,
Da vivência silenciosa da Amizade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Aqui recordo o dia em que as alianças caíram dos dedos.

E o vazio que fica no dedo
é a memória do abraço que ali cabia:
um aro de promessa, afrouxado,
até que a pele esqueceu seu nome.

Assim recordo: não a queda, mas o instante
em que o dedo reconheceu, por fim,
que era apenas dedo e não altar,
nem jura, nem ponte para outro corpo.

A CASA QUE A DOR CONSTRÓI

Não me peças canções de alva harmonia
nem versos que adormeçam como a névoa branda.
Trago na voz um grito de ironia,
ferrugem de esperança já roída e borrifada.

Sofro ao ver o rebanho, denso e crente,
gritar convicções alheias, em uníssono aberto,
defendendo, com ardor de inconsciente,
o jugo que lhe pesa, o mesmo laço certo.
São ecos, não são vozes. Sombras de uma ideia
que o sistema, tal ourives, forjou no seu segredo.
E cada qual repete, na arena que rodeia,
o dogma que o domina, pensando-o seu credo.

Oh, leve opinião de sofá e ecrã,
feita de vento e de espasmo passageiro!
És galo a desafiar outro galo, vã
disputa onde o tom sobe, irreal e altaneiro.
A casa da ipseidade não se ergue
com tijolos alheios, nessa areia movediça.
É grão a grão, na solidão que insurge,
que a rocha própria à mente edifica e talha.

Levo comigo o peso dos meus séculos,
a desconfiança antiga, herdada e visceral:
o Estado, a oficina, os jornais, os oráculos
a moldar o consenso, a tecer o cabresto geral.
Minha alma chora, ao ver a multidão dominada
gritar, ufana, as ordens do seu dono,
numa paixão pós-fática, deslumbrada,
que serve, sem o saber, o seu próprio abandono.

Não sigo a maré do consenso raso,
essa corrente que tudo anula e amontoa.
Busco a falha, a pedra áspera e diferente,
a ruptura com quem forja o molde e o caso.
Somos feitos de pele e de persuasão,
mas o nós perde-se no dilúvio dos canais.
Toda a mensagem é estratagema e arma,
e só acende, se a temos, a nossa própria brasa.

Por isso levanto, lenta, a minha casa,
pedra sobre pedra, com as mãos gretadas.
É trabalho áspero que nunca sossega,
esta construção de ideias, estas paredes erigidas.
Suporto o incómodo da opinião ligeira,
do já se sabe fácil, da certeza rápida.
A minha pedra custa, fere e alteia,
mas a casa é só minha, conquistada mas íntima.

É melhor o cansaço de pensar,
a fadiga da pedra mal cortada,
do que a leveza letal de me deixar
pensar por outrem na minha própria estada.
A opinião alheia é jugo e frio.
A própria, só conquistada em luta, é libertação.
Mesmo que reste apenas o desvio,
e um humor seco como minha última oração.

Assim construo, entre o grito e o sorriso,
numa resignação ativa e irónica.
Não mudo o mundo, mas defino o piso
do meu próprio quintal, nesta era frénica.
E talvez, se muitos levantarem a sua pedra,
se cansarem de ser voz e buscarem ser verbo,
a cultura da paz, que a guerra impede,
desabroche não por decreto, mas do nosso próprio corpo.

O trabalho é longo e a noite é densa.
Mas a casa cresce. Ela é minha e é imensa,                                                                    Contra a maré alheia, pedra sobre pedra.

Pois o ego, alheio a si, perde-se nas roupagens
que a sociedade veste sobre o seu esqueleto nu.
Ao não pensar por si, segue nas multidões,
e acaba por odiar o mundo que em si meteu.
Leva-o a engodo de ideias fabricadas,
tão longe da raiz, da seiva natural,
que constrói, à sombra de vontades alheias,
uma consciência à venda, corrompida e formal.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(Escrito no auge do Regime COVID-19)

MARIA E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA VISAO DO REAL

Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo

A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.

O símbolo como acesso ao real

A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.

Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).

Conhecimento, consciência e limites da objetividade

Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.

Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.

Virgindade e novo paradigma ontológico

A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.

Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.

Encarnação e superação da dualidade

A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.

Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.

Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade

Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.

A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.

Uma verdade em processo

A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.

Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.

“A verdade não é algo que possuímos, mas uma realidade que nos envolve e transforma.” (K. Rahner)

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

MARIA DEUSA ENCOERTA DO CRISTIANISMO

Reflexões para o Dia da Imaculada Conceição

No dia 8 de dezembro, a Igreja Católica celebra a Imaculada Conceição de Maria. Além da recordação de um acontecimento do passado, trata-se de uma experiência simbólica e espiritual que aponta para uma realidade que ultrapassa o meramente histórico, factual ou biológico. Os símbolos religiosos, como afirma a fenomenologia da religião, não se esgotam no que representam: remetem sempre para além de si próprios, para uma dimensão do real que não se deixa reduzir à materialidade nem ao pensamento lógico-linear.

O símbolo e a verdade

Em filosofia costuma-se distinguir entre três tipos de verdade:

– a verdade em si mesma,

– a verdade para nós,

– e a nossa verdade.

O ser em si não coincide com o modo como o apreendemos. Por isso, no acto do conhecimento, não é legítimo identificar a realidade com a sua aparência. O conhecimento implica sempre uma dualidade: há algo que é percebido e alguém que percebe. Como recordava Immanuel Kant, “o conhecimento começa com a experiência, mas não se esgota nela”. A facticidade oferece apenas o campo onde se manifestam condições mais profundas do conhecer.

Aplicado à fé cristã, isto significa que as verdades religiosas não podem ser tratadas apenas como factos históricos nem como proposições científicas. Elas pertencem a uma ordem experiencial e relacional, intemporal, que a tradição bíblica chama kairos: um tempo que não passa, mas acontece sempre.

Maria, Mãe de Deus e Mãe da Humanidade

Maria recebeu o título de Theotókos (Mãe de Deus) no Concílio de Éfeso, em 431, não por exaltação pessoal, mas por aquilo que o título afirma sobre Jesus: o Verbo feito carne. Ao confessar Maria como Mãe de Deus, a Igreja confessa simultaneamente que Deus entrou plenamente na história humana.

O dogma da Imaculada Conceição, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX, afirma que Maria foi preservada do pecado original para ser morada do Filho de Deus. Este dogma não pretende oferecer uma explicação biológica, mas expressar simbolicamente um novo começo da humanidade, uma criação recriada pela graça. Maria é a nova Eva, aquela que diz “sim” à vida como dom, unindo céu e terra.

Virgindade: sinal de transcendência, não negação da vida

Num mundo de matriz materialista e utilitarista, a virgindade é frequentemente reduzida a tabu, repressão ou mito. No entanto, biblicamente e teologicamente, a virgindade aponta para o Reino de Deus, para uma realidade não esgotável no imediato nem no instinto. Leonard Boff afirma:

“A virgindade cristã é maternal: gera filhos para o Reino.”

A virgindade de Maria não nega o valor da sexualidade, mas relativiza a sua absolutização. Liberta o feminino de ser mero apêndice do masculino e revela, em Maria, os traços maternais do próprio Deus. Neste sentido simbólico profundo, pode falar-se de Maria como a “deusa encoberta do cristianismo”: não uma deusa concorrente, mas o rosto materno do divino revelado na história.

Encarnação e superação da dualidade

No nascimento de Jesus reconhece-se a superação da grande polaridade que marca o pensamento humano: espírito e matéria. Em Jesus Cristo, o divino e o humano tornam-se compatíveis de modo pleno. Karl Rahner lembrava que a virgindade ocupa um lugar secundário na hierarquia das verdades, mas exprime de forma intensa que a salvação é dom gratuito, não produção humana.

Também a ciência contemporânea, particularmente a física quântica, aponta para uma realidade menos mecânica e mais relacional do que o paradigma clássico permitia supor. Matéria e energia, observador e observado, encontram-se em interação. Tal aproxima-se surpreendentemente da visão cristã da realidade como processo relacional, expressa simbolicamente na fórmula trinitária: unidade na diferença, comunhão sem fusão.

A linguagem do mito e da poesia

Para falar de Deus, do amor e da vida, a linguagem puramente racional revela-se insuficiente. A linguagem poética e simbólica é mais adequada, porque não pretende esgotar o real, mas abri-lo. Uma sociedade excessivamente colada ao texto literal tende a petrificar a realidade, confundindo símbolo com facto e mito com mentira.

Também a ciência recorre a símbolos: quando fala de “Lucy” como mãe da humanidade, não faz história factual, mas usa uma imagem para facilitar a compreensão. Do mesmo modo, os dogmas não são fórmulas matemáticas, mas janelas para o mistério.

Maria como apelo ético e espiritual

A Imaculada Conceição recorda-nos o princípio da criação, quando tudo era original e bom, mas também a responsabilidade de continuar essa criação. O nascimento do novo Adão aponta para um Jesus que deve renascer em cada ser humano, tornando cada pessoa presépio vivo, laboratório divino onde o céu continua a tocar a terra.

Num tempo marcado por dualismos, culpa instrumentalizada e manipulação do pecado ao serviço do poder, Maria permanece como figura de esperança, liberdade interior e fidelidade ao essencial. A consciência, como recordava Newman, é o primeiro vigário de Cristo.

Conclusão

Reduzir a realidade ao que é mensurável equivale a reduzir o universo ao sistema solar. O sentido da vida não se esgota no caminho, porque o caminhante e a caminhada transcendem o próprio caminho. A fé e a esperança permanecem como raios de sol que nos levantam a cabeça para vermos mais além.

Na Imaculada Conceição, céu e terra unem-se uma vez mais para afirmar que a última palavra não é da matéria nem da morte, mas da Vida como dom.

Parabéns a todas as mães.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo