NO PRINCÍPIO DOS PRINCÍPIOS

(Céu e Terra, masculino e feminino são parábolas e eu o enredo delas)

 

Sou a miniatura do universo criado,

um segredo que se dobra em si mesmo —

matéria e verbo entrelaçados,

terra que gera e relâmpago que queima,

silêncio húmido da terra virgem,

semente que espera o grito do rebento.

 

Sou Adão que traz na carne a memória do primeiro sopro,

nas veias, o rumor do rio antigo

que nunca cessa de procurar o mar,

no peito, o incêndio da fronteira,

o fogo que delimita, que fere, que protege,

mas também o ardor que deseja dissolver-se,

ser nuvem, ser fonte, ser mar.

 

Dentro de mim, o masculino e o feminino

não são rótulos, não são géneros, mas chaves,

idiomas secretos de um mesmo abismo —

o fogo que cerra e contém,

o rio que abre e acolhe.

Sou ambos, sou ponte,

sou aquilo que a Criação continua a revelar.

 

Minha carne é gramática do Mistério,

verbo que se faz limite e, inquieto,

Nome na procura do que o transcende.

Habito na fresta onde os opostos se beijam:

sou o barro que sonha ser estrela,

a palavra que, encarnada,

se descobre inacabada,

anseia ser mais que som,

mais que corpo,

ser o eco inteiro da Trindade,

onde o Um se desfaz no Três,

e o Três se resolve no Um.

 

E é no abraço — mais que de corpos, de contrários

que reencontro a pegada do Início,

a linguagem secreta da Origem,

onde ser limite é apenas o princípio

de aprender a ser infinito.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

2 comentários em “NO PRINCÍPIO DOS PRINCÍPIOS”

  1. “Minha carne é gramática do mistério”.
    Parabéns pelo belíssimo texto, meu nobre amigo.

  2. Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva, quero agradecer e expressar minha imensa satisfação por você ter reagido ao meu texto, citando justamente aquela frase que considero essencial: ‘Minha carne é gramática do mistério’ e que ressoou profundamente em você na qualidade também de artista pintor e escultor, que admiro especialmente pela naturalidade que expressa na sua arte. A sua sensibilidade em capturar a profundidade dessas palavras só enriquece ainda mais o diálogo entre arte e pensamento. Parabéns e um abraço!

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