Bispos tradicionalistas sentem-se desafiados pelo Papa Francisco
António Justo
A Igreja não anda com as modas e por isso tem de, ocasionalmente, dar uma corrida para não ser ultrapassada pelo tempo. É o que faz agora com o Papa Francisco, numa tentativa de dar prioridade ao passo da pastoral sobre o da dogmática! O Papa que entusiasma o mundo, desengana um certo espírito clerical dentro do Vaticano.
O ponto da discórdia, que junta os conservadores mais fundamentais, centra-se na Exortação Apostólica do Papa Francisco “A Alegria do Amor” que abre novos caminhos para a pastoral matrimonial, abre também pistas para uma abertura na regulamentação do celibato do clero secular e para a legitimação do uso de métodos anticonceptivos artificiais. A Exortação Apostólica exige a releitura de documentos anteriores da Igreja a uma nova luz mais ao sabor da teologia da libertação.
Reacção crítica a “A Alegria do Amor”: Cardeal Burke e Cardeal Müller
Nas esferas altas da jerarquia eclesiástica confrontam-se liberais e conservadores numa luta surdina entre os que querem as “circunstancias mundiais a definir as posições da Igreja” e os que esperam que a Igreja deva “liderar a agenda do mundo”.
A carta aberta de bispos aposentados e de católicos descontentes com sete acusações em defesa de um tradicionalismo duro que teme o modernismo e a revolução sexual, encontra expressão especial no cardeal Burke que se questiona se a “A Alegria do Amor” contraria a doutrina anterior. Os conservadores têm medo de uma releitura de velhos documentos à luz de “A Alegria do Amor”. A “Amoris Laetitia” procura manter duas vertentes: a da dogmática e a da pastoral, procurando dar um pouco mais de autonomia à pastoral. De facto, se a Veritatis Splendor de João Paulo II dá mais relevo à doutrina, a Amoris Laetitia dá, cautelosamente, mais relevo à pastoral (praxis): não se pode dizer que uma contradiga a outra até porque em cristianismo a consciência individual faz a ponte ao ter o estatuto de lei.
Os conservadores mais obstinados (em torno do americano cardeal Burke) não querem admitir que o desenvolvimento pressupõe o reconhecimento das duas forças que dão sustentabilidade à instituição: o progressismo e o conservadorismo, numa tensão de tolerância e respeito mútuos que (num diálogo entre teologia e pastoral) deixem espaço para a criatividade e inovação (em linguagem cristã: que deixem espaço para o atuar do Espírito Santo e para a leitura da revelação de Deus na História)! Na luta entre liberais e conservadores (Cardeal Raymond Burke, viu a sua importância tradicionalista despromovida ao ser transferido de dicastério pelo Papa), estes sentem-se do lado da razão argumentando que com a acentuação da liberalidade nos países a frequência dominical se reduz muito (outros apontam o exemplo também comum aos protestantes).
O facto de as pessoas não participarem tanto nos sacramentos tem, certamente, mais a ver com o espírito do tempo e com as necessidades e valores que ele fomenta, além da sobrecarga de padres cada vez mais estressados pelos encargos burocráticos e exclusiva administração de sacramentos num trabalho rotineiro não consciente das mudanças e da laicização que a sociedade sofreu. Em tal situação cria-se um vazio, em que pastores, sem espaço suficiente para viverem a sua fé se limitam a ser cumpridores de ritos, sempre à espera de “ordens” ou no mínimo de “instruções”.
Por outro lado, o problema maior será encontrar formas de vida e estratégias de desmotivar o indiferentismo e a procura de espiritualidade “a la carte” à margem das instituições. Uma oligarquia globalista está interessada em destruir a comunidade e as nações e nesse sentido aposta no desenraizamento da pessoa para mais facilmente reduzir os indivíduos a consumidores e clientes. Os interesses desviam-se para as necessidades de uma cidadania fundada em ideologias (estas não se preocupam com a relação da norma racional com a consciência, nem da consciência e acto moral).
Estas são, porém, as dores acompanhantes ao parto de novas percepções nos tempos novos.
O Cardeal Müller, um representante dos conservadores na Europa, num jogo à defesa, disse em entrevista: “Classificar todos os católicos segundo as categorias de “amigo” ou “inimigo” do Papa, é o dano mais grave que causam à Igreja.” E que não se deve confundir “a grande popularidade de Francisco… com uma verdadeira recuperação da fé” … “Tenho a sensação de que Francisco quer escutar e integrar todos. Mas os argumentos das decisões devem ser discutidos antes”. E avisa: E também me lembro a mim mesmo que os bispos estão em comunhão com o Papa: irmãos e não delegados do Papa, como recordou o Concílio Vaticano II “.
Há quem veja nas tomadas de posição destes dois cardeais tendências para um cisma na igreja. Müller já contradisse tal intenção. De facto, são apenas convulsões da época. Um cismático quando o é, revela-se contra a Igreja, contra a Mensagem evangélica, contra a tradição e contra o magistério! Não é uma discência teológica que irá pôr em perigo a unidade da Igreja; ela vive também da natural tensão entre a teologia e a pastoral.
Controvérsia em tempos de crise e de aggiornamento
A consciência europeia e a sua identidade encontram-se num estado doentio como é natural em épocas de mutações fundamentais; o remédio para a nossa sociedade mutante ainda está por inventar e nem uma ortodoxia dura nem um relativismo dogmático convertido em fundamentalismo ajudam a doente.
Também já no pós-Concílio o arcebispo francês Marcel Lefebvre lutava contra o aggiornamento do Vaticano II (que implementa a democracia e os direitos humanos); actualmente levantam-se os “introvertidos” (idealistas) da doutrina (João Paulo II) contra os “extrovertidos” (realistas) da pastoral (representados em Francisco). Uns e outros terão razão porque uns e outros expressam a fé de crentes empenhados. O timoneiro da barca de Pedro é JC que permanece enquanto outros O vão representando.
A teologia da libertação procura agora a sua expressão numa tentativa de mistura das posições e no reconhecimento de que a humanidade é constituída por pessoas introvertidas e extrovertidas. O Papa é claro: “A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar”. De facto, a doutrina tradicional faz parte essencial da Lei Constitucional (Papa e dogmas) da Igreja, mas não deve impedir a formação de leis e práticas que a interpretem ou amenizem, não podendo a cristandade ver o seu cristianismo reduzido a uma vida de convento nem a elites de bem-pensantes.
O argueiro no olho dos conservadores vem do facto de Francisco não acolher a pompa vaticana, não assumir o modo clerical, não condenar os homossexuais, tomar uma atitude humilde perante outras religiões, criticar o capitalismo global (1) e personalizar as questões de sexo, não condenando pura e simplesmente o divórcio consumado (2); casais divorciados passam a ter, pontualmente, acesso à comunhão (mesmo sem ter de renunciar a relações sexuais). A ala conservadora da Igreja alinha-se na crítica à “Alegria do Amor” para defender uma posição clerical dogmática da Igreja contra uma teologia pastoral onde o Papa beneficia os liberais e progressistas. Teologia dogmática e teologia pastoral encontram-se frente a frente, quando por essência são complementares.
A relativização do divórcio como afronta aos celibatários?
Penso que, também uma perspectiva mais pastoral da relação matrimonial, não implica negar o “casamento eterno e indissolúvel” tal como um divórcio não implica, por si só, a negação do princípio dogmático! O que é óbvio reconhecer é o facto de os cônjuges serem duas variáveis, duas individualidades com caracteres em desenvolvimento e, por vezes, este dá-se em sentidos contrários; a experiência pastoral sabe que, por vezes, só mais tarde é reconhecida a incompatibilidade entre parceiros, podendo esta até constituir impedimento ao desenvolvimento social e espiritual individual.
Seria irresponsável reduzir a questão relacional, mutuamente condicionante e determinante, a um mero problema de desobediência a um ideal, à lei e consequente anulação. Mesmo numa relação de fé vivida ninguém pode exigir de um parceiro matrimonial que assuma um papel como Mónica assumiu em relação a Agostinho! Não somos feitos só de céu, somos feitos de céu e terra e, como se sabe, há terra e terra! Como seres imperfeitos que somos tem de haver a argumentação não se pode limitar a uma posição binária, entre o bem e o mal, mas incluir também o elemento da imperfeição.
A acção do Paráclito na História (História é uma cadeia de mudanças e mutações incluindo intrinsecamente nelas um critério relativizador das normas) e na pessoa é uma realidade a ter em conta pois não é uma consciência social expressa num determinado tempo, seja ela liberal ou conservadora, que pode fazer parar a revelação de Deus no tempo. Não há mudanças ad hoc, a renovação é contínua, e necessita dos polos que a motivam numa tensão natural entre consciência conservadora e consciência liberal. Deus não muda, o que muda é o Homem e daí as diferentes perspectivas sobre Ele e sobre a comunidade.
A crença e as verdades realizam-se também no tempo o que pressupõe uma certa osmose entre a doxia e a praxia; é preciso dar tempo ao tempo para, no distanciamento, se poder dar conta da revelação de Deus também na História. A experiência da fé vivida e partilhada é inclusiva e leva à consciência da complementaridade da vida, doutrina-praxis. Na Igreja de Jesus Cristo há lugar para uns e outros.
Uma coisa é a letra e outra a vida, a letra tem a função de iluminar (ortodoxia e ortopraxia têm a sua dinâmica própria e não têm necessariamente de se obstarem). Também a crença não pode ser aprisionada nas leituras de um espaço-tempo ou época, nem tão-pouco na leitura de um dogma porque este ultrapassa a interpretação. Deus não muda só nós vamos mudando a nossa ideia dEle.
Todos no mesmo barco
Temos todos, Igrejas e partidos, de ultrapassar o espírito da paróquia fechada, espírito este que se encontra em representantes da Igreja e nos partidos e corporações. A paróquia deve tornar-se cada vez mais expressão da diversidade, na sequência da obra e dos dons do Espírito Santo.
Sem tensão não há vida nem desenvolvimento; por isso progressismo e conservadorismo querem-se no mesmo barco. Pensamento e acção, introversão e extroversão complementam-se como os órgãos de um só corpo, numa relação frutífera entre grupos dentro do mesmo corpo. Urge aceitar e manter uma tensão produtiva entre indivíduo e instituição, entre grupos, entre missão e realização; esta será, numa atitude humilde e tolerante, a tarefa do momento para salvaguardar a sustentabilidade e manter a Igreja como protótipo de sociedade política e religiosa.
Encontramo-nos numa fase em que é obvio “repensar-se, e ajudar a repensar o mundo e também ajudar a redefinir e atualizar práticas, linguagens, redimensionar-se, tentando ultrapassar uma lógica… demasiado clerical”, como diz o Historiador e autor de “Portugal Católico”, José Eduardo Franco (Cf. Fátima Missionária, janeiro 2018).
Quem estiver com o papa pode andar mais ou menos depressa, mas tem a certeza de se encontrar do lado da História porque segue a consciência de que a fronteira da moral acompanha o saber. No consenso católico, Ubi Petro, ibi Ecclesia. A revelação na tradição encontra-se, ao mesmo tempo, em João Pablo II em Bento XVI e em Francisco.
© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
Pegadas do Tempo
- (1) “Algumas pessoas continuam a defender teorias ‘conta-gotas’, que assumem que o crescimento económico, encorajado por um mercado livre, irá inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante e ingénua na bondade dos que exercem o poder económico e no funcionamento sacralizado do sistema económico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam à espera.” O papa responsabiliza este capitalismo feroz pela destruição das famílias que se veem obrigadas a separarem-se na busca de pão. Para Francisco o sistema económico é quem mais provoca a separação das famílias….
- (2) “A Alegria do Amor” na nota 361 do capítulo (: algumas pessoas que vivem em segundos casamentos (ou em uniões de facto) “podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”. “Em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos.” “quero lembrar aos padres que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor” …. “Quero também salientar que a eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um poderoso medicamento e alimento para os mais fracos.” “Ao vermos tudo a preto e branco, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento.”