Contestação académica a documentos e declarações da União Europeia sobre migração, populismo e democracia
Objeto e método da réplica
A presente réplica académica dirige-se a um conjunto consistente de documentos, resoluções e declarações oficiais da União Europeia que, nos últimos anos, têm enquadrado criticamente e frequentemente deslegitimado posições divergentes relativamente à política migratória europeia, qualificando-as como manifestações de “populismo”, “ameaça ao Estado de direito” ou “desinformação”.
Entre esses instrumentos destacam-se, designadamente: Comunicações da Comissão Europeia sobre o Estado de Direito; resoluções do Parlamento Europeu relativas à ameaça populista e extremista; declarações institucionais no âmbito do Pacto sobre Migração e Asilo e documentos estratégicos sobre desinformação e democracia.
Na presente análise não assumo uma posição partidária, mas procedo a uma avaliação constitucional, democrática e metodológica dessas posições institucionais, questionando a sua compatibilidade com os próprios princípios fundadores da União.
A qualificação institucional da crítica como “populismo”
Diversos documentos da UE utilizam o conceito de “populismo” como categoria explicativa e normativa para enquadrar críticas às políticas migratórias e à integração europeia. Todavia, do ponto de vista académico: o conceito não é definido juridicamente; não possui critérios operativos claros e é utilizado de forma seletiva e politicamente assimétrica.
Esta prática viola princípios elementares do constitucionalismo democrático, segundo os quais: o dissenso político é legítimo; a crítica a políticas públicas não constitui, per se, ameaça ao Estado de direito e conceitos indeterminados não podem servir de base a juízos normativos sancionatórios.
A UE incorre, assim, num uso ideológico de um conceito académico controverso, convertendo-o num instrumento de exclusão discursiva.
O Pacto sobre Migração e Asilo e o défice de legitimidade democrática
O Pacto sobre Migração e Asilo constitui um exemplo paradigmático da tensão entre governação europeia e soberania popular. Trata-se de um conjunto normativo com impacto direto sobre: controlo de fronteiras; composição demográfica; sistemas de acolhimento e coesão social interna dos Estados-Membros.
Não contempla o impacto cultura negativo e: não foi precedido por mandatos eleitorais claros; não envolveu referendos nacionais e foi apresentado como tecnicamente inevitável, e não politicamente discutível.
A crítica a este modelo não é antidemocrática, é, pelo contrário, uma exigência de legitimidade constitucional, coerente com o princípio da soberania popular consagrado tanto nos tratados europeus como nas constituições nacionais.
Relatórios sobre o Estado de Direito e a inversão normativa
Nos relatórios anuais sobre o Estado de Direito, a Comissão Europeia tem frequentemente associado posições críticas em matéria migratória a riscos de erosão democrática.
Esta associação revela uma inversão conceptual problemática: a defesa da soberania constitucional nacional é tratada como risco; a contestação democrática é confundida com autoritarismo e a divergência política é moralizada.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, esta lógica é insustentável. O Estado de direito pressupõe: pluralismo político real; possibilidade de contestação de políticas públicas e liberdade de expressão sem estigmatização institucional.
Quando a crítica passa a ser enquadrada como suspeita, o próprio conceito de Estado de direito é instrumentalizado.
A deslegitimação das críticas provenientes dos Estados Unidos
Documentos e declarações de responsáveis europeus têm frequentemente desqualificado críticas oriundas dos Estados Unidos relativamente à política migratória europeia e à evolução democrática da UE, classificando-as como: ingerência externa; ideologicamente enviesadas; culturalmente inadequadas.
Esta atitude ignora três elementos fundamentais: os EUA possuem experiência histórica longa com imigração em massa; o constitucionalismo norte-americano assenta numa proteção robusta do dissenso político e muitas críticas incidem sobre processos, não sobre identidades culturais.
A rejeição automática dessas advertências revela fragilidade institucional, não maturidade democrática.
Democracia deliberativa e o problema da difamação institucional
A estratégia recorrente da UE de associar crítica a populismo produz efeitos estruturalmente negativos: empobrecimento do debate público; radicalização por exclusão; erosão da confiança institucional; afastamento entre elites e cidadãos.
Do ponto de vista da teoria democrática, trata-se de uma deriva para uma democracia tecnocrática, onde decisões são apresentadas como moralmente necessárias e politicamente incontestáveis.
Compatibilidade com os Tratados da União Europeia
A prática descrita entra em tensão direta com: o artigo 2.º do TUE (pluralismo, democracia); o princípio da subsidiariedade; a igualdade entre Estados-Membros e a soberania constitucional nacional.
Não existe, nos tratados, base jurídica para a patologização do dissenso político nem para a imposição de uma ortodoxia migratória.
Necessidade de autocorreção institucional
A presente réplica aponta para o facto que: a acusação de populismo tem sido usada de forma abusiva; a política migratória europeia carece de legitimidade democrática reforçada e a difamação das críticas, internas e externas, enfraquece a UE.
Uma União Europeia fiel aos seus fundamentos deve: substituir estigmatização por argumentação; integrar dados empíricos e críticas comparadas; restaurar o primado da soberania popular e aceitar o dissenso como elemento constitutivo da democracia.
Sem essa autocorreção, o verdadeiro risco não é o populismo, mas a normalização de um défice democrático estrutural sob linguagem moralizante motivada por interesses que defendem apenas o arco do poder.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo