A VILA E O OCEANO: UM BRAMIDO NOS AREAIS (Conto filosófico)

Numa pequena vila de pescadores, três amigos discutiam à beira-mar.

Pedro, o Poeta, olhando o horizonte:

– Para mim, o mar é tudo. O mar é os peixes, as ondas e até a areia molhada. Se tudo é mar, então tudo é divino. Isso é o panteísmo: não há fora, só há mar.

Joana, a Céptica, balançou a cabeça:

– Mas se o mar é tudo, até o peixe podre seria divino. Isso não pode ser certo.

António, o Velho Pescador, sorriu e respondeu:

– Eu penso diferente. O peixe vive no mar, mas não é o mar. O mar é maior que ele. O peixe está no mar, o mar está no peixe, mas o mar não se reduz ao peixe. Isso é o panenteísmo: tudo está em Deus, mas Deus é mais que tudo.

Joana arregalou os olhos:

– Então o mar envolve e sustenta, mas não se confunde com os peixes?

Pedro repensou:

– E nós, onde ficamos?

O silêncio dos três era uma concha que ampliava o rugir do mar, e naquele som das vagas mergulharam numa epifania muda de que Deus é o mar, mas é também o além-mar; um oceano sem margens onde todos os significados se dissolvem e renascem. A noite, encimada por uma lua solene, tecia claros e escuros não apenas na paisagem, mas nos recônditos dos três corações, ainda assombrados pelo bramido que confundia a criação com o Criador, deixando-os a balancear os seus espíritos entre o divino no mundo e o mundo no divino. E, ainda que o diálogo lhes houvesse trazido alguma claridade, Pedro sentiu naquela noite uma maré de ideias em redemoinho, que arrebatou consigo o seu sono.

No dia seguinte, à tardinha, os amigos voltaram a conversar.

Pedro, insistiu:

– Mas se o mar é Deus, eu sou só uma gota sem importância.

António, sorriu e respondeu:

– Não, Pedro. Para nós cristãos o mar verdadeiro é trinitário. Ele não é solidão sem forma, mas comunhão viva. O Pai é como a fonte que gera as correntes, o Filho é o rio que mergulha no mar e nos leva de volta, e o Espírito é a água que circula em todos os peixes e ondas.

Joana, refletiu:

– Então cada um de nós é peixe vivo nesse mar, único, mas ligado aos outros. O mar envolve-nos, mas não apaga a nossa forma. Não somos gotas perdidas, mas pessoas chamadas pelo nome.

António concluiu:

– Exato. Se a Joana fosse apenas gota dissolvida, não haveria amor, nem responsabilidade. Mas porque é pessoa em inter-relação, tem valor e dever. O oceano trinitário não apaga quem és, faz de ti parte de uma dança maior, sem perderes a tua voz.

Os três calaram- se diante das ondas.

Já não era apenas um mar (1).

Era um mistério de amor que os chamava pelo nome e os envolvia, sem jamais os apagar.

António da Cunha Duarte Justo

 

Pegadas do Tempo

(1) Assim, o panenteísmo cristão mostra-se como uma visão do mundo em que Deus está em tudo, mas tudo é chamado a viver em comunhão pessoal com Ele. Diferente do panteísmo, que apaga a pessoa na totalidade, o panenteísmo trinitário preserva a liberdade, a dignidade e a responsabilidade humana diante do cosmos. O mistério trinitário pode ser visto como a chave de leitura da existência: uma “fórmula da realidade” que sustenta o mundo, valoriza a pessoa e orienta a história para a plenitude em Cristo. Para os cristãos, Cristo é como a ponte: Ele mergulha no mar connosco e leva-nos para o coração do oceano infinito. E o Espírito é como a água que circula em cada peixe, mantendo-o vivo.

Ver artigo sobre o assunto: O OCEANO EM NÓS em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10306

HINO À CONCEIÇÃO FERIDA, MAS LIBERTA

(Em Honra das “Conceições” que rompem o Silêncio)

Não do granito ou do bronze se faz este monumento,
Mas da matéria frágil e eterna da memória,
Da coragem que arranca, com o próprio sofrimento,
A erva daninha do segredo e da falsa glória.

Falas de uma criança que a inocência lhe foi roubada,
Em um tempo de véus, de silêncios cúmplices e pesados,
Onde a culpa, à rédea solta, andava disfarçada
Em temores rezados, em dogmas mal-usados.

Mas da semente podre, enterrada na escuridão,
Brota, por fim, um caule de luz, tortuoso e santo,
É a voz que se liberta da própria perdição,
É a lança que transpassa o mais espesso manto.

Aos catorze anos, a consciência, ferida bruta,
Um desgosto de morte, um abismo por dentro.
A alma, uma paisagem absoluta e dissoluta,
Onde até Deus parece ter-se ausentado no centro.

Mas eis o acto sagrado, o milagre mais puro:
Não a revolta estéril que consome e queixa,
Mas a paz que se tece sobre o antigo muro,
O perdão que não absolve, mas que liberta e deixa.

A dor não parte, faz-se cicatriz, geografia,
Mapa de um naufrágio que a alma sobreviveu.
Já não é ferida aberta, é sabedoria,
É o preço que se pagou por ser Luz que nasceu.

E assim, Conceição, tua voz, suave e forte,
É o hino das almas que quebraram a algema.
Não cantas a dor, cantas a sorte
De teres encontrado, em ti, o supremo sistema.

 

Cada testemunho é um raio a rasgar a noite,
É um “não” que ecoa nos porões da humanidade.
É a recusa da corrente, o fim do aperto,
É a verdadeira: na própria dignidade.

Por isso, esta poesia é uma vela acesa,
Em honra da criança ferida, da adulta sábia.
A tua libertação é uma nobre empresa
Um canto de guerra contra a mais torpe mentira.

Hoje, não és a que calou. És a que fala.
E ao falares, quebras os ferrolhos do medo preso.
A tua luz, sobre a podridão, se aviva e se iguala
À coragem dos santos, dos justos, dos verdadeiros íntegros.

E nada, jamais, apagará esta chama.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

UM NOVO TRATADO DE TORDESILHAS?

A Geopolítica da Mentira e a Guerra como Negócio

Vivemos num mundo de cortinas de fumo, onde a verdade é refém de interesses obscuros. Enquanto as populações são formatadas por uma informação pós-factual e manipulada, as elites jogam xadrez com vidas humanas. O recente encontro entre Putin e Trump não é um mero acaso diplomático: é mais um movimento num tabuleiro geopolítico onde a guerra, o consumismo e a pressão social servem para distrair as massas do essencial que é o poder e o controle.

A Traição como Estratégia

Os dois blocos – Rússia de um lado e os EUA  e a NATO do outro – alimentam-se da mentira:

A Rússia, que em 1991, nos Memorandos de Budapeste, prometeu respeitar a soberania ucraniana em troca das suas armas nucleares, (documento confirmado por arquivos desclassificados e estudiosos como John J. Mearsheimer), hoje justifica a invasão com o fantasma da “desnazificação”.

Por seu lado os EUA e a NATO, que, segundo registos diplomáticos revelados (cable de 1998 do embaixador dos EUA em Moscovo, Thomas R. Pickering), asseguraram verbalmente não se expandir para Leste, de facto engoliram metade da Europa Oriental, provocando Moscovo, violando o que o ex-embaixador norte-americano na URSS, Jack F. Matlock Jr., chamou de “promessa não escrita, mas real”.

A Ucrânia é o campo de batalha onde se joga muito mais do que território, ela é a luta pela hegemonia global. Em maio de 2022, um acordo de paz estava em cima da mesa, mas como confirmou o então mediador israelita Naftali Bennett, a NATO convenceu Kiev a rejeitá-lo.

E porquê? Porque, como analisa o professor Jeffrey Sachs (Columbia University), a guerra serve aos interesses estratégicos do Ocidente, mesmo que signifique o sacrifício de um povo inteiro.

A nova Partilha do Mundo

Estamos perante um novo Tratado de Tordesilhas, onde as potências redesenham o planeta conforme a sua conveniência. Tal como Espanha e Portugal dividiram o mundo no século XV, hoje EUA, China, Rússia e Europa disputam esferas de influência. Tal como o historiador Timothy Snyder descreve em “The Road to Unfreedom”, a Rússia e o Ocidente travam uma guerra de narrativas, onde a soberania dos Estados é secundária perante os interesses dos grandes blocos. Ao contrário do passado, a guerra não é apenas territorial é também económica, tecnológica e ideológica.

A Filosofia da Guerra Perpétua

Enquanto o filósofo Immanuel Kant sonhava com uma paz perpétua, o pensamento de Leo Strauss (e dos seus discípulos neoconservadores como Paul Wolfowitz e Robert Kagan) domina a política actual, segundo a qual a paz leva à decadência, a guerra mantém a ordem. Paul Wolfowitz, após a queda da URSS, defendeu que os EUA deveriam manter a supremacia militar e impedir a ascensão de qualquer rival, inclusive a Europa. Daí as revoluções coloridas, os golpes suaves, as guerras por procuração.

O cientista político John Mearsheimer (“The Tragedy of Great Power Politics”) diz que a expansão da NATO em direcção à Rússia foi um erro estratégico que inevitavelmente provocaria a Rússia. Esse erro estamos todos nós agora a pagá-lo e a justificar a militarização da indústria. Por seu lado, Noam Chomsky denuncia que as revoluções coloridas (como a Laranja na Ucrânia, 2004) foram operações de mudança de regime apoiadas pelo Ocidente.

Os fins justificam os meios (neste aspecto Leo Strauss opinava que Maquiavel “parecia ser um professor da maldade”. A lei moral é vista como instrumento de controle, não de ética. E, segundo esta lógica darwinista, os fortes devem dominar os fracos.

A Manipulação das Massas

Os media europeus e norte-americanos, seguindo a lógica da “Manufacturing Consent” (como definido por Edward S. Herman e Noam Chomsky), transformaram Putin no novo Hitler, porque uma população assustada aceita melhor a guerra. A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo, como escreve Michael Hudson em “Super Imperialism”, é manter o dólar como moeda global e o complexo militar-industrial no poder.

A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo é enfraquecer a Rússia, conter a China e garantir que o dólar e o complexo militar-industrial continuem a dominar o mundo.

Ao mesmo tempo, as pessoas discutem futebol, reality shows e inflação, ignorando que estão a ser usadas como peças num jogo muito maior.

Perante a situação real só resta acordar

Torna-se muito difícil não se deixar enganar. Por trás das bandeiras, dos discursos moralistas e das “causas justas”, há sempre interesses obscuros. A guerra na Ucrânia não é sobre liberdade é sobre poder, como demonstra Christopher Layne (“The Peace of Illusions”). O encontro Putin-Trump não é sobre diplomacia é sobre realinhamentos estratégicos e negócios.

O mundo está a ser repartido de novo. E, se não abrirmos os olhos, seremos apenas espectadores da nossa própria servidão. Os líderes da União Europeia não só perderam o rumo da Europa, traíram-na. Submissos, ajoelham-se perante os interesses bélicos e financeiros de Washington, esvaziando o continente não apenas geograficamente, mas também cultural e espiritualmente. Enquanto enterram o legado humanista europeu, transformam-nos em vassalos do projeto imperial americano, condenando a Europa a ser mero apêndice na nova ordem multipolar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Exposição de Carola Justo

DETALHES SOBRE A EXPOSIÇÃO
Três vídeos sobre a exposição de Carola Justo em Hann. Münden (de 22 de Junho a 24 de Agosto diariamente das 11 às 17 horas).

Imagens em FB: https://www.facebook.com/antonio.justo.180/
Para melhor ajudar a apreender a pintura de Carola Justo, coloco aqui o discurso que ela fez no acto de abertura da exposição.
Nos jardins da fantasia
Exposição de Carola Justo na Igreja S. Blasius
em HannoverschMünden
“Um jardim é um símbolo de paz e harmonia, é um oásis no meio de um mundo desarmonioso e transmite um toque de paraíso. No fundo, nós, seres humanos, nutrimos no coração – consciente ou inconscientemente – um desejo pelo paraíso, mesmo sabendo que só vivemos momentos paradisíacos por breves instantes e que somos constantemente expulsos do paraíso. Os jardins lembram-nos que um mundo melhor e mais harmonioso pode ser possível, mas apenas se trabalharmos para isso.
Como pintora, procedo como uma jardineira que também deseja criar um mundo mais bonito, tratando as cores e as formas como se fossem plantas. Outros artistas procedem como arquitetos: planeiam uma imagem e fazem um esboço. Durante a execução, há poucas surpresas. Mas quem, como eu, é um pintor ou pintora do tipo jardineiro, orienta-se pelo que já existe, deixa crescer, deixa-se surpreender e, ao mesmo tempo, poda o que não pertence à imagem. Como é isso concretamente?
Primeiro, há a superfície branca da tela, como uma camada de terra sem sementes. Van Gogh tinha medo da tela branca, dizia que ela lhe olhava fixamente e gritava: «Tu não vais conseguir pintar nada.» Eu sinto o mesmo, por isso cubro-a o mais rápido possível, batendo com um pincel grosso e sem distinção várias tonalidades de tinta acrílica na superfície de pintura. Isso corresponde à preparação do solo. Depois, toco com papel na tinta molhada, o que corresponde a semear. No início, surge algo feio. Isso não me preocupa, porque o meu princípio é transformar o feio em algo bonito. Depois, vejo vagamente formas abstratas ou concretas sugeridas nas manchas de tinta, como um rosto, um animal, uma árvore ou uma casa. Vocês conhecem algo semelhante: quando olham para as nuvens, às vezes também veem alguma forma: uma ovelha, um rosto, uma pessoa em posição curvada. Às vezes sigo essas sugestões, às vezes não. Para decidir isso, ouço a minha voz interior.
Enquanto estou a pintar, deixo algo crescer, ou seja, oriento-me pelo que está lá e trabalho nisso, mas nem tudo serve para a imagem, e algumas coisas precisam ser removidas, assim como o jardineiro não pode deixar tudo crescer descontroladamente. Ele precisa podar e colocar ordem no jardim, e eu, como pintora, também faço isso, porque nem tudo o que surge espontaneamente tem valor artístico: cubro algumas figuras completamente (arrancadas) e substituo-as por novas formas e outras cores, outras são refinadas e alteradas em termos de cor.
Tento sentir o que precisa ser alterado e de que maneira isso pode ser feito. Quando olho para a imagem final, quero ser surpreendida pelo que surgiu na tela. Enquanto pinto e observo a imagem final, quero entrar num estado de harmonia. O meu objetivo é transmitir harmonia e beleza. As minhas imagens devem ser como jardins perfumados que alegram o coração com as suas cores e formas.
Vocês conhecem a frase: «Ele (ou ela) tem uma imaginação fluorescente.» Sim, a imaginação também pode florescer como um jardim. Podemos menosprezar a imaginação como uma negação da realidade, mas sem imaginação não podemos viver. Ela abre-nos horizontes, liberta-nos do apego ao banal, pode ligar-nos ao divino. E não só isso: porque temos imaginação, podemos planear o futuro, podemos sentir empatia por outros seres vivos e podemos compreender a nós mesmos e a nossa história de vida, porque podemos reconhecer conexões. Sem imaginação, seríamos seres apáticos. Mesmo a crença em Deus e num mundo sobrenatural só é possível através do dom da imaginação. Vejo no ateísmo, em primeiro lugar, uma falta de imaginação, o que não significa que o mundo sobrenatural seja apenas imaginação. Não, por trás de uma imaginação pode estar uma realidade inacessível à razão, e a imaginação ajuda-nos a ultrapassar os limites da razão.
Quando estive em Portugal, vi pintada em letras gigantes na parede de uma casa a frase: «O que imaginas é real.» Tenho a experiência que pessoas que fazem meditações guiadas, ou seja, viagens de fantasia, passam por processos internos profundos e são transformadas — pelo poder da imaginação. Elas transportam-se mentalmente, por exemplo, para a sua infância e transformam o sofrimento que lá viveram em novas imagens imaginárias, e isso resulta numa cura que é muito real. Pois o cérebro, segundo nos dizem os cientistas, não consegue distinguir entre fantasia e realidade.
Em todas as áreas da arte, torna-se sempre evidente que a imaginação pode criar realidade, porque algo que originalmente era apenas imaginado torna-se visível. Na pintura, o céu pode ser verde e o prado azul, os pássaros podem ser maiores do que as casas; sobre a paisagem, novos lugares podem brilhar entre as nuvens. Isso transmite uma sensação de liberdade. E assim, convido-vos a passear pelos jardins da imaginação e a respirar um sopro de liberdade”. Carola Justo
Coloco também links de artigos detalhados em jornais:

ESCOLA PÚBLICA

Hoje é o dia do inventor da escola pública e gratuita! Ele foi perseguido…, abriu escolas em toda a Europa para crianças pobres e abandonas.
Não, ele não viveu no século XX, mas no século XVI/XVII.
Não, ele não era comunista, mas padre. São José de Calasanz, nasceu em 1557 na Espanha.
Foi o fundador da primeira escola pública cristã e da Ordem Religiosa das Escolas Pias mais conhecida por Escolápios (por se dedicar à educação da juventude). Em 1948, o papa Pio XII declarou José de Calasanz patrono das escolas cristãs. Várias ordens religiosas seguem a sua espiritualidade e carisma. As suas ideias educativas centravam-se no respeito pela personalidade da cada criança vendo nelas a imagem de Cristo.
Em 1717, na Prússia, que surgiu a educação estatal pública, instituída como escola obrigatória para crianças entre 5 e 12 anos, pelo rei Frederico Guilherme.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo