Só, sob o arco que une céu e chão,
Sinto orvalhar em flocos o pensamento.
E com asas de sonho, na amplidão,
Sigo a aragem suave do tempo.
Solidão que em mim se torna vaso
Onde o mar pousa a sua voz profunda,
E anjos, sem rumor, num doce caso ,
Minha tristeza com meus amigos embalam.
Na amizade que é filha do bem-querer,
Sinto o lugar quieto onde Deus habita.
Porta aberta para se ser e ter,
Onde a felicidade, livre, palpita.
– Corações de portas escancaradas,
Cultivai a amizade, a partilha pura,
Cuja ternura, por estradas delicadas,
Vem da estima, do afeto, da doçura!
Ela é o abanador na lareira da vida
Que aviva a brasa da existência,
Para que cada qual, na chama acendida,
Respeite e sinta a própria essência.
Vencerá o mal-querer, embora ele
Se empoleire nos altos do poder.
É energia que em nós se revela,
Asa que salva e sustém no querer.
No teu sorrir, o sol aquece e alumia
O caminho que trilho, claro ou obscuro.
No teu sorrir, a alegria que é minha
Encontra um lago puro, num colo seguro.
Amizade é amor, que fica depois
Da dor, no rotineiro da existência (1).
Refúgio das intempéries e dos bojos
Que o destino traz na sua inclemência.
Há a calorosa, que desce connosco
À adega escura e forte da jornada.
Há a do “vá com Deus”, leve e veloz,
Na despedida ligeira e apressada.
E há momentos em que o peso, mais denso,
Faz brotar no peito uma saudade:
E sinto-me, então, no regaço imenso,
Da vivência silenciosa da Amizade.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) Aqui recordo o dia em que as alianças caíram dos dedos.
E o vazio que fica no dedo
é a memória do abraço que ali cabia:
um aro de promessa, afrouxado,
até que a pele esqueceu seu nome.
Assim recordo: não a queda, mas o instante
em que o dedo reconheceu, por fim,
que era apenas dedo e não altar,
nem jura, nem ponte para outro corpo.