1.º DE MAIO: O DIA EM QUE AS MÁQUINAS CHORAM POR NÓS

Era uma vez um mundo que trocou as mãos calejadas por dedos de aço, os suspiros dos cansados pelo zumbido infalível das máquinas. Hoje, no primeiro dia de maio, os sinos dobram, mas não celebram—lamentam. Soam por aqueles que ainda se chamam trabalhadores, embora o trabalho já não os reconheça como seus.

Os homens outrora conquistaram este dia como um refúgio no calendário do suor, um instante de respiro entre a servidão dos séculos. Mas que ironia: ganharam um dia e perderam os outros. Os salários, mínimos como esmolas, compram pão, mas não compram horizonte. Sustentam o corpo, mas deixam a alma em jejum. E enquanto os relógios de ponto viram algoritmos, os direitos desmancham-se no ar, como fumo de chaminés abandonadas.

A automação chegou sem piedade, vestida de progresso, e onde pisou, deixou pegadas de desalento. O operário, antes explorado, agora é ignorado. Suas mãos, que moviam o mundo, são peças sobressalentes num mecanismo que se autorepara. O capital desalmado, esfinge insaciável, devora até seus próprios filhos—e os que sobram, assistem, esfaimados de futuro, à decomposição da própria dignidade.

Onde estão os sindicatos? Onde estão os gritos que furaram o céu como fachos? Mudos, encurralados pela engrenagem que não tem ouvidos, apenas rodas dentadas. Resta aos homens uma escolha: render-se como peças soltas ou erguer-se como brasa. Pois a precarização não é só do ofício—é da alma. O trabalho sem rosto cria homens sem nome.

Os governantes, feiticeiros de números, falam em produtividade, em flexibilidade, em revoluções digitais—palavras vazias que rolam como moedas falsas. Suas leis são escritas em código binário, sem espaço para lágrimas ou suor. Enquanto isso, a vida torna-se líquida, escorre por entre os dedos como areia de horas extras não pagas. O Ocidente, outrora farol, agora é um navio à deriva, com velas rasgadas pelo mesmo vento que soprou sobre os colonizados. A roda da história gira, e os de baixo começam a exigir o que lhes foi negado—enquanto os de cima já nem sabem o que é humanidade.

Na sombra deste dia, São José Operário estende suas mãos marcadas pela plaina. Carpinteiro, pai, homem—não algoritmo, não função nem estatística. Se queremos resistir ao dilúvio de cifras, não basta lembrar Chicago; é preciso invocar o milagre do trabalho que não humilha, que não reduz, que não descarta.

E Portugal, pequeno barco neste oceano de ferrugem e silício? Entre o centralismo que esmaga e o globalismo que desfigura, só nos resta a rebeldia das raízes. A Europa será federal ou não será—pois só um mundo feito de pátrias humanas, não de impérios digitais, merece ser chamado de civilização.

A tarefa que nos cabe é antiga como Caim e Abel: lutar contra a exploração que mata o corpo e a alienação que aniquila a alma. Enquanto houver um só homem que levante a cabeça e pergunte “por quê?”, a chama não se apagará. Não por um mundo de máquinas perfeitas, mas por um mundo de homens imperfeitos—livres, iguais em dignidade, donos de seu suor e de seu sonho.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

1.º DE MAIO: UM GRITO POR HUMANIDADE NUM MUNDO EM RUÍNAS

Um momento de reflexão

Hoje, quando as máquinas substituem mãos humanas e a dignidade do homem se reduz à sua utilidade produtiva, o Dia Internacional dos Trabalhadores não é apenas uma data no calendário—é um espelho que reflete a nossa decadência. Celebramos, sim, mas a quem rendemos homenagem? Aos que labutam sob o jugo de um sistema que os esmaga enquanto os glorifica com palavras vazias? Os trabalhadores conquistaram um dia para si, mas os outros 364 permanecem nas garras de grandes senhores que transformam vidas em números, corpos em engrenagens, sonhos em peças descartáveis.

Os direitos arrancados a duras penas—horas justas, salários mínimos, o direito a respirar fora da fábrica—são agora devorados pela sanha de um capitalismo disfarçado de progresso porque aliado do socialismo materialista. A automação, que prometia libertação, tornou-se a nova algema: o homem já não é explorado por sua força, mas descartado por sua suposta irrelevância. O salário mínimo sustenta o estómago, mas não alimenta a alma; garante a sobrevivência, mas nega a existência digna. E enquanto a tecnologia avança, a humanidade recua, esfacelada em funcionalidades, reduzida a algoritmos.

A precarização não é apenas do trabalho—é do humano. O indivíduo, despojado de valor, torna-se mercadoria numa economia que venera máquinas e desdenha de carne e osso. As organizações sindicais, outrora trincheiras de resistência, são esvaziadas por um poder que não tolera coletivos, apenas consumidores isolados. Resta-nos, então, a pergunta: como resistir? A resposta não está apenas em novas leis, mas numa revolução da consciência. É preciso erguer-se não como peças substituíveis, mas como seres irredutíveis à lógica do descarte implementada por medos.

Os governantes, cada vez mais distantes, falam em eficiência, em crescimento, em futuros digitais—mas calam-se sobre fome, sobre cansaço, sobre o desespero de quem não é visto como gente, mas como recurso. Suas agendas são escritas a sangue-frio, em salas onde o humano é abstração e a tecnologia, dogma (num imperialismo mental). Enquanto isso, a instabilidade é cultivada como projeto: vidas informais, trabalhos efémeros, existências sem raízes. O Ocidente, outrora senhor do mundo, vê agora os servos de ontem exigirem dignidade—e descobre, atónito, que já não sabe oferecê-la nem a si mesmo.

No Cristianismo, hoje é dia de São José Operário—o carpinteiro, o trabalhador silencioso que sustentou a sagrada família com suor e dedicação. Se queremos resistir à maré desumanizante que vem de além-mar (e das ideologias materialistas), não basta evocar os mártires de Chicago; é preciso resgatar a ideia de que o trabalho não é apenas produção, mas extensão da própria humanidade.

E Portugal? Entre a Europa centralista e o globalismo voraz, só nos resta uma saída: o federalismo, a força das regiões, a resistência das culturas locais contra a homogeneização que esmaga identidades. O globalismo só será legítimo se nascer de baixo para cima, se for construído por mãos humanas, não imposto por máquinas políticas e por corifeus líderes de ideologias falsas.

A tarefa que nos resta é colossal: libertar-nos não apenas da exploração, mas da alienação que nos faz aceitá-la. Enquanto houver um sopro de humanidade em nós, a luta pela dignidade permanece. Não por um mundo de robots, mas por um mundo de gente. Um mundo onde a dignidade não seja privilégio, mas direito inalienável—de todos, para todos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

FRANCISCO: O PAPA DO POVO E DA INOVAÇÃO

Num mundo marcado por divisões e conflitos, o Papa Francisco emergiu como um farol de humanidade e esperança. O seu pontificado foi uma lição viva de simplicidade e proximidade, como ilustra o breve diálogo que manteve com um fiel no Vaticano:

— “Bom dia, Santo Padre!”

— “Bom dia, Santo Filho!”

Esta resposta, cheia de ternura e igualdade, sintetiza o espírito de um homem que sempre viu Cristo no rosto do outro.

Um Legado de Paz e Reforma

 

Francisco foi o Papa da paz e do povo. A sua mensagem, centrada no amor ao próximo e na justiça social, ecoou além das fronteiras da Igreja. Quando exortou o mundo a levantar a “bandeira branca” da reconciliação — inspirado no mandamento de Jesus: “Ama o próximo como a ti mesmo” — desafiou os poderes que alimentam a guerra. “O amor e a paz são uma e a mesma moeda”, insistia. A guerra não pode ser optada como meio para se alcançar a paz! Toda a invocação ao armamento não passa de um apelo à guerra. A lógica do medo escraviza as pessoas e torna-as servas de dominadores e de belicistas.

A sua crítica à indiferença e à violência foi incansável. Citando as palavras de Cristo — “Guarda a tua espada no lugar, pois quem pela espada vive, pela espada morrerá” —, lembrava-nos que a verdadeira espada é a do discernimento, não a das emoções não resolvidas. “Enquanto valorizarmos mais os bens materiais do que o milagre da vida, a mensagem do Evangelho ainda não nos alcançou.”

Um Reformador com os Pés na Terra

 

Francisco revolucionou com gestos simbólicos: recusou ostentações, preferiu viver em Santa Marta, escolheu ser sepultado em terra na Basílica de Santa Maria Maior e aproximou-se dos marginalizados. A sua primeira visita a Lampedusa, onde denunciou a “indiferença desenfreada” perante os refugiados, marcou o tom do seu papado. Em 2013, ao declarar “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor de boa vontade, quem sou eu para julgar?”, abriu portas que muitos julgavam fechadas.

Foi um reformador: aproximou-se dos marginalizados, abriu discussões sobre temas difíceis (como a acolhida a divorciados e pessoas LGBTQ+) e incentivou uma “ortodoxia dinâmica”, fiel ao Evangelho, mas adaptada às necessidades pastorais.

Promoveu sinergias, incentivando a política e a Igreja a abandonar o espírito de competição e a “encontrar Jesus nas pessoas”. Nas exortações Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho) e Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), reafirmou o espírito do Concílio Vaticano II, desagradando teólogos mais tradicionalistas. Para ele, as controvérsias (1) eram um “Método de Descoberta da Verdade”, e as discussões, necessárias. O seu legado não deixa uma igreja indiferente porque convidada a não se fixar apenas em doutrinas que embora provadas deixam a desejar no aspecto pastoral (moral sexual).

Desafios e Tensões

 

A sua abordagem gerou resistências. A Igreja alemã, por exemplo, criticou-o por não ser suficientemente adaptado ao espírito do tempo, enquanto outros o acusaram de ingenuidade ao dialogar com o Islão. Francisco insistia na fraternidade universal, mas a ausência de líderes muçulmanos e judeus no seu funeral — provavelmente devido às suas críticas à guerra em Gaza e ao hegemonismo religioso muçulmano— revela as complexidades desse diálogo. (Nas cerimónias fúnebres do Papa Francisco – 26 de abril de 2025, o 266.º papa depois de Pedro – estiveram presentes centenas de milhares de fiéis e mais de 160 líderes mundiais).

A sua visão de uma Igreja em peregrina, comprometida com os pobres e aberta à reforma, contrastava com estruturas enrijecidas. Questões como o celibato clerical ou o diaconado feminino ficaram em suspenso, mas o seu chamamento à “ortodoxia dinâmica” — fiel à doutrina, mas pastoralmente criativa — permanece um desafio.

(O papa terá de orientar-se entre a “verdade revelada” e a interpretação que a natureza e a História   expressa no seu desenrolamento, o que implica a capacidade de manter a igreja una e de escolher a melhor pedagogia para se fazer compreender num mundo secular cada vez mais exposto à formatação da consciência social e pessoal por elites desalmadas. Almas assim formatadas tornam-se alérgicas a tudo que envolva espiritualidade, o que exige por isso caminhadas mais longas sem recursos a atalhos.) É importante seguir com os tempos sem cair na tentação da politização da Igreja especialmente nesta época em que poderes económicos e ideológicos a actuar globalmente ameaçam levar na sua enxurrada a pessoa humana e tudo o que tenha a ver com valores perenes. Urge continuar uma ortodoxia viva e dinâmica virada para a pastoral do cunho da teologia da libertação no espírito de Francisco. O grande desafio será manter a tradição evangélica doutrinal não corruptível pelo tempo, não a maculando com a pressão ocidental demasiadamente adaptada às tendências modernistas europeias como é mais próprio dos evangélicos na Alemanha, sem pressupor que a Igreja é universal e como tal não subjugável a uma cultura ou a modas do tempo não podendo ser embaciada por elas de modo a não ver a verdade que deve seguir para poder confirmar os fiéis na fé.

O Adeus ao Papa do Povo

 

Com a sua morte, a 26 de abril de 2025, o mundo parou. Centenas de milhares de fiéis e mais de 160 líderes mundiais reuniram-se no Vaticano. Trump e Zelensky aproveitaram o momento para um encontro inédito, confirmando o papel da Igreja como mediadora.

Mas quantos daqueles políticos, ali presentes, estavam verdadeiramente próximos do seu espírito? Francisco, o primeiro Papa jesuíta e não europeu, viveu como “construtor de pontes”, colocando a caridade e o humanismo cristão no centro da sua missão.

O Caminho que Fica

 

Num mundo racionalista e cada vez mais desumanizador, o seu legado é um convite: Escutar o coração, onde Jesus fala no silêncio. As razões do coração, afinal, transcendem a lógica unilateral da mente.

A Igreja, peregrina na História, enfrenta o dilema de equilibrar a “verdade revelada” com os sinais dos tempos. O Espírito Santo age tanto na instituição quanto no povo — mas o poder espiritual, que concede verdadeira dignidade, não se confunde com o poder político – meramente democrático (como por vezes se fez sentir na Igreja da Alemanha). Permanecerá o desafio: O poder espiritual presente no povo é diferente do poder político em que assenta a democracia; não é legítimo, por isso, confundir-se o voto individual democrático movido pelo poder político com o voto individual movido pelo Espírito Santo; este é mais abrangente e é o que concede a verdadeira dignidade e a soberania à pessoa, o outro é limitado produzindo dependência e igualdade apenas perante a lei.

Francisco partiu, mas a sua pergunta ecoa: “Quem é responsável pelo que está a acontecer agora?” Num mundo de hipocrisia e medo, a sua vida foi uma resposta: “Só o amor terá a última palavra.”

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10032

(1) Controvérsia como Método de Descoberta da Verdade: https://antonio-justo.eu/?p=3336

O Papa Francisco sempre se diferenciou do comportamento de funcionários e da conduta arbitrária e distante que muitos políticos e dignatários expressam nas suas funções.

Houve tantos políticos presentes em torno do cadáver de Francisco e tão longe do seu espírito. O livro “Esperança” do Papa Francisco é a primeira autobiografia publicada por um papa na história manifesta também ele com suas revelações e reflexões o espírito humanista e envolvedora.