QUANDO A CRÍTICA SE TORNA «POPULISMO»

Imigração, Democracia e a Crise da Honestidade política na Europa

O debate sobre imigração na Europa entrou numa fase preocupante. Não porque faltem dados, experiências comparadas ou alertas internos e externos, mas porque a crítica deixou de ser discutida e passou a ser deslegitimada. Hoje, questionar a política migratória da União Europeia é, com demasiada frequência, rotulado como “populismo”, “extremismo” ou “ameaça à democracia”. Esta estratégia não resolve problemas, apenas os silencia.

A imigração em larga escala é um fenómeno complexo, com impactos profundos na coesão social, na segurança, nos sistemas de bem-estar e, sobretudo, na arquitetura constitucional dos Estados. Tratar estas questões como tabu não é sinal de maturidade democrática, mas de fragilidade política.

A União Europeia tem adotado decisões estruturais em matéria migratória, como o Pacto sobre Migração e Asilo, sem um mandato democrático claro dos povos europeus. Não houve referendos, o debate nacional foi frequentemente marginalizado e as objeções foram apresentadas como moralmente suspeitas. Este afastamento entre decisão política e soberania popular é um dos sinais mais claros do défice democrático em curso.

O problema agrava-se quando relatórios oficiais sobre o “Estado de Direito” passam a insinuar que a contestação destas políticas constitui, em si mesma, uma ameaça à democracia. Esta inversão é perigosa. Numa democracia constitucional, o dissenso não é um problema: é uma condição de funcionamento. Questionar políticas públicas não enfraquece o Estado de direito; pelo contrário, fortalece-o.

O uso do termo “populismo” tornou-se particularmente problemático. Não se trata de um conceito jurídico nem de uma categoria científica precisa. Na prática, funciona como rótulo político destinado a desqualificar posições incómodas sem responder aos seus argumentos. Quando conceitos vagos substituem o debate racional, o espaço público empobrece e a confiança nas instituições deteriora-se.

A mesma lógica aplica-se à reação europeia às críticas vindas dos Estados Unidos. Advertências norte-americanas sobre imigração em massa, fragmentação social ou erosão da democracia são frequentemente descartadas como ingerência ideológica ou atraso cultural. Esta atitude é, no mínimo, intelectualmente desonesta. Os EUA têm uma longa experiência histórica com imigração, sucessos e fracassos, e uma tradição constitucional que valoriza fortemente a liberdade de expressão e o pluralismo político. Ignorar estas advertências não é sinal de autonomia europeia, mas de recusa em aprender.

O mais preocupante é que, ao difamar sistematicamente a crítica, a União Europeia corre o risco de se transformar numa democracia apenas formal: eleições existem, instituições funcionam, mas o debate real é condicionado por barreiras morais e simbólicas. As decisões são apresentadas como tecnicamente inevitáveis ou moralmente superiores, e não como escolhas políticas discutíveis.

A imigração não é, em si, um problema. Torna-se problemática quando é descontrolada, quando ignora capacidades reais de integração e quando entra em tensão com ordens constitucionais existentes. Discutir estes limites não é xenofobia nem populismo; é responsabilidade democrática.

Se a Europa quiser preservar os valores que afirma defender, concretamente, democracia, pluralismo, Estado de direito, terá de abandonar a política da estigmatização e regressar à política do argumento. Terá de aceitar que a soberania popular não é um obstáculo moral, mas o fundamento da legitimidade. E terá de compreender que silenciar a crítica não elimina os problemas: apenas os empurra para um futuro mais conflituoso.

O verdadeiro risco para a Europa não é o populismo. É a normalização de um défice democrático disfarçado de virtude moral.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa na Construção da Paz

Quando a Consciência se torna o último Bastião da Liberdade

Vivemos numa época de paradoxos desconcertantes. Nunca se falou tanto de democracia, inclusão e direitos humanos e contudo, nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas, munidas de tecnologias de persuasão cada vez mais sofisticadas, descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, direcionar emoções, fabricar consensos. A liberdade exterior pode subsistir enquanto a interior se dissolve, quase sem resistência, nas ondas algorítmicas e mediáticas que nos dizem o que pensar antes mesmo de o pensarmos.

É neste contexto que se impõe uma reflexão urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, ao contrato social, à identidade coletiva, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta? Ou estamos condenados a assistir ao eterno confronto entre o público e o privado, entre o Estado e a alma, entre a multidão e o silêncio?

A Sedução Silenciosa do Poder Democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

Esta mutação do poder democrático em pedagogia obrigatória do pensar tornou-se particularmente evidente nos últimos anos. A pandemia de COVID-19 funcionou como um catalisador, revelando até que ponto os Estados contemporâneos estão dispostos a penetrar no santuário da consciência. Não se tratou apenas de impor medidas sanitárias, legítimas ou não, mas de exigir uma adesão emocional, moral, quase religiosa a narrativas oficiais, sob pena de exclusão social, estigmatização pública ou censura.

A filosofia antiga já conhecia este perigo. Platão, na sua “República”, sonhou com um Estado onde os guardiões seriam educados através de mitos cuidadosamente selecionados para moldar as suas almas. Mas foi precisamente contra essa tentação que se ergueram os grandes defensores da consciência individual, de Sócrates a Agostinho, Kant, etc (1). A verdadeira liberdade, insistiram, não está na possibilidade de escolher entre opções pré-determinadas, mas na capacidade de discernir, no silêncio da interioridade, o que é verdadeiro e o que é justo, mesmo quando todo o mundo diz o contrário. O despertar da consciência individual leva ao processo de ampliar a percepção sobre si mesmo, sobre a vida e sobre a realidade.

O Santuário interior: Onde nenhum Poder pode entrar

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” Esta definição do Concílio Vaticano II não é apenas uma formulação teológica; é uma declaração de independência antropológica. Há em cada pessoa um espaço inviolável, uma cidadela interior onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar, nenhuma propaganda pode semear.

É precisamente aqui que a fé pessoal se distingue radicalmente da fé civil. A fé civil, por mais nobre que seja, permanece ligada à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo, aos consensos temporários. Ela pertence ao domínio do que Hegel chamava “espírito objetivo”: as instituições, as leis, os costumes partilhados. Mas a fé pessoal, a consciência iluminada, pertence a outra ordem: a do “espírito absoluto”, que transcende as circunstâncias e se enraíza numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Pelo contrário, uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir a coesão, a solidariedade, o sentido de pertença; mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando a maioria se torna multidão, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia e a Visão que resiste

Não é por acaso que a tradição cristã celebra, nesta época do Advento, Santa Luzia, (2) a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio, mais do que um facto histórico distante, funciona como parábola permanente da condição humana. A verdadeira cegueira, ensina-nos Luzia, não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria, por medo ou sedução, consinta em extingui-la.

Esta metáfora da luz interior atravessa toda a história da espiritualidade humana. Das cavernas platónicas ao “lumen naturale” de Descartes, da “luz interior” dos quakers à “chama da consciência” de que fala Martin Luther King, a humanidade sempre soube, intuitivamente, que há uma luminosidade própria da pessoa que nenhum poder exterior pode fabricar ou confiscar. É esta luz que permite a Gandhi jejuar até que um império se dobra, a Mandela sobreviver décadas de prisão sem perder a dignidade e a Dietrich Bonhoeffer escrever, da sua cela nazi, que “não são as experiências boas ou más que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências”.

A Ilusão da Bolha e o Perigo das Indignações fabricadas

Vivemos tempos em que as multidões se formam e dissolvem com uma velocidade vertiginosa. As redes sociais criaram o que poderíamos chamar “comunidades de indignação instantânea”: grupos de pessoas que se agregam em torno de uma causa, de uma revolta, de uma denúncia, mas que, muitas vezes, não partilham verdadeira reflexão, apenas reflexos emocionais sincronizados.

Esta dinâmica é profundamente perigosa para a consciência. Quando a comoção pública substitui o discernimento pessoal, quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento. E instrumentos, mesmo quando acreditam lutar pela justiça, podem ser facilmente manipulados por interesses obscuros e partidários que nada têm a ver com o bem comum.

A filosofia política clássica sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes, capazes de deliberação racional; a multidão é um agregado emocional, movido por impulsos, facilmente manipulável. Nas democracias contemporâneas, assistimos frequentemente à transformação do povo em multidão; isto acontece não pela força, mas pela saturação emocional, pela sobrecarga informativa, pela polarização artificial de debates.

É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz. Quem possui uma bússola interior, orientada por princípios que transcendem as flutuações da opinião pública, não se deixa arrastar pelas correntes. Não se trata de recusar o diálogo com a sociedade, mas de entrar nesse diálogo como pessoa íntegra, não como eco das últimas tendências.

Fé Civil e Fé Religiosa devem ser dois Polos complementares não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas, sejam elas laicas ou religiosas, foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência. Os jacobinos quiseram eliminar Deus para instaurar a religião da Razão; os fundamentalistas querem eliminar o Estado laico para instaurar teocracias. Ambos partem do mesmo pressuposto falso: que só pode haver uma fonte de autoridade moral, um único horizonte de sentido.

A verdade é mais subtil e mais fecunda. A fé civil e a fé religiosa não são adversárias, mas complementares, desde que cada uma reconheça os seus próprios limites e respeite o espaço da outra. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum, o mínimo ético partilhável; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo e no materialismo.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante, onde tudo se reduz ao cálculo de utilidades e às estatísticas de maiorias. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, caritas concreta.

O desenvolvimento humano autêntico, não o mero crescimento económico ou tecnológico, mas o amadurecimento integral das pessoas e das sociedades,  exige esta dialética permanente: o reconhecimento dos erros para os superar, a humildade para aprender com as múltiplas tradições de sabedoria, a coragem para não absolutizar nenhuma forma histórica de organização social.

A Função da Palavra: Despertar

Há uma tentação, particularmente forte em épocas de polarização, de usar a palavra como arma de persuasão, como instrumento de convencimento, quase como forma de dominação intelectual. Escreve-se para provar que se tem razão, para derrotar o adversário, para conquistar adeptos.

Mas existe outra forma de escrever e de ler: aquela que serve não para convencer, mas para despertar. Não para impor verdades prontas, mas para acender interrogações fecundas. Não para fechar debates, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

Esta escrita, poderíamos chamá-la “escrita socrática”, não oferece sistemas completos nem respostas definitivas. Ela propõe, sugere, interroga, convida. Confia na capacidade de cada leitor de descobrir, no silêncio da sua própria interioridade, a luz que já lá estava, à espera de ser reconhecida.

É por isto que a verdadeira cultura de paz não se constrói através de doutrinação, mas através de educação no sentido mais profundo: “educare”, conduzir para fora, ajudar a pessoa a emergir da caverna das opiniões legadas, dos preconceitos não examinados, das certezas fabricadas. Uma cultura de paz pressupõe cidadãos interiormente livres, capazes de pensar por si mesmos, de resistir às manipulações, de discernir entre verdade e propaganda.

Pressupostos para uma Cultura de Paz

Se quisermos genuinamente construir uma cultura de paz, precisamos de começar por reconhecer algumas verdades desconfortáveis:

Primeiro: A paz não é ausência de conflito, mas capacidade de gerir conflitos sem violência. Isto exige pessoas com maturidade interior, capazes de suportar a tensão da divergência sem precisar de aniquilar o outro.

Segundo: Não pode haver paz duradoura sem justiça, e não pode haver justiça sem verdade. Mas a verdade não é fabricável por consenso ou decreto; ela exige uma busca honesta, humilde, permanente, que respeite a dignidade da consciência individual.

Terceiro: Uma sociedade verdadeiramente pacífica não é aquela onde todos pensam o mesmo, mas aquela onde diferentes visões do bem podem coexistir, desde que partilhem um compromisso comum com o respeito pela dignidade humana e pela liberdade de consciência.

Quarto: A cultura de paz requer o cultivo da vida interior. Sociedades compostas por pessoas esvaziadas interiormente, reduzidas a consumidores e espectadores, são manipuláveis e, portanto, potencialmente violentas. A paz verdadeira nasce de pessoas que possuem um centro, uma bússola, uma luz própria.

Quinto: É preciso reabilitar o silêncio. Numa cultura saturada de ruído, onde a informação corre mais depressa do que a capacidade de a processar, o silêncio não é vazio mas plenitude, é o espaço onde a consciência pode finalmente ouvir-se a si própria e, ouvindo-se, discernir.

O Advento interior é sempre que a Humanidade espera a Luz

O Advento cristão, esse tempo de espera e preparação antes do Natal, funciona como metáfora de uma condição humana permanente: somos seres que aguardam a luz, que anseiam por ela, que não se resignam à escuridão. Mas esta luz que esperamos não vem apenas de fora, como presente caído do céu; ela também precisa de ser cultivada dentro de nós, como chama que se protege do vento.

Santa Luzia, no seu testemunho, ensina-nos que a verdadeira iluminação não é passiva. Não basta aguardar que alguém nos ilumine; é preciso decidir, ativamente, manter acesa a luz interior, mesmo quando tudo conspira para a apagar. Esta decisão,  ética, espiritual, existencial, é o ato fundador da liberdade humana.

Numa época em que tantas forças querem retirar às pessoas a fé e a liberdade interior para melhor as dominar, é preciso lembrar uma verdade antiga mas sempre nova: a fé autêntica, aquela que nasce da luz interior e não da imposição exterior, é a força mais revolucionária que existe. Ela rompe com a injustiça não através de violência, mas através da recusa silenciosa, mas firme de colaborar com a mentira. Ela transforma sociedades não através de decretos, mas através do testemunho de vidas íntegras que, sem alarde, mostram que é possível viver de outro modo.

Conclusão: A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação, todas elas são preciosas e devem ser defendidas. Mas há uma liberdade mais fundamental, da qual todas as outras dependem: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, confronto honesto com as próprias contradições, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro).

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, da fé pessoal autêntica, da interioridade cultivada é, no fim de contas, a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas, por mais sofisticadas que sejam as formas de dominação que o futuro nos reserve. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez seja este, afinal, o sentido mais profundo de escrever e ler: não para encerrar o pensamento em fórmulas definitivas, mas para manter acesa, geração após geração, a chama que impede a consciência de adormecer. Porque enquanto houver quem leia, quem pense, quem se recuse a entregar a sua luz interior, haverá resistência contra toda a forma de opressão, e haverá esperança de que a paz, não como silêncio imposto, mas como harmonia livremente construída, seja possível.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Há várias encíclicas em que a consciência é  tema central como em “Veritatis Splendor” (João Paulo II, 1993), que discute a lei moral e a formação da consciência, e a encíclicas como “Pacem in Terris” (João XXIII, 1963) sobre direitos e deveres, e a última encíclica do Papa Francisco,  “Dilexit nos” (Francisco, 2024), que trata a consciência, e a necessidade de formar uma consciência reta com base na verdade e na lei divina, não em subjetivismos, sendo um tribunal interno que julga nossas ações.

(2) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491

Segue-se a versão resumida para eitores mais apressados:

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa de Mãos dadas

Vivemos tempos paradoxais. Nunca se falou tanto de liberdade, mas nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, fabricar consensos, direcionar emoções. A pandemia de COVID-19 revelou até que ponto os Estados estão dispostos a penetrar no santuário da consciência, exigindo não apenas obediência exterior, mas adesão emocional a narrativas oficiais.

É neste contexto que se impõe uma pergunta urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta?

A Sedução silenciosa do Poder democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

O Santuário Interior

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem”, ensina o Concílio Vaticano II. Há em cada pessoa um espaço inviolável onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar. É aqui que a fé pessoal se distingue da fé civil: esta pertence à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo; aquela enraíza-se numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir coesão e solidariedade, mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia: A Visão que Resiste

Nesta época do Advento, Santa Luzia (1) surge como símbolo luminoso: a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio ensina-nos que a verdadeira cegueira não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria consinta em extingui-la.

Esta luz interior é a que permite pessoas críticas como Luther King a resistir contra a injustiça social nos EUA, a Gandhi resistir a um império, a Mandela sobreviver décadas de prisão e a Bonhoeffer escrever da sua cela nazi que “não são as experiências que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências.”

O Perigo das Indignações Fabricadas

As redes sociais criaram “comunidades de indignação instantânea” onde a comoção pública substitui o discernimento pessoal. Quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento facilmente manipulável por interesses obscuros.

A filosofia política sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes; a multidão é um agregado emocional, facilmente manipulável. É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz.

Polos complementares e não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência (esse erro ainda hoje doutrina foi espalhado pelo marxismo materialista como verdade científica fundada na velha física e na estratégia do divide para imperar). A verdade é mais fecunda: ambas são complementares. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo ou na visão do mensurável.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, cuidado concreto.

A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação e  todas elas são preciosas. Mas há uma liberdade mais fundamental: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro)

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, é a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez escrever e ler sirvam precisamente para isto: não para convencer, mas para despertar. Não para dar respostas fechadas, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491

 

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo:

 

UM DESABAFO SOBRE DEMOCRACIA E ÉTICA NO MEU PAÍS E NA EUROPA

Jardim Infantil e o Cadáver Adornado

Quem chega de fora e aqui pousa o olhar, sente primeiro um espanto mudo. O que vejo? A tragédia do potencial subjugado: um povo de seiva humana, facultoso e laborioso, cuja energia vital é drenada por um destino imposto e cujo fado paradoxal o ancorou no breve sonho do dia-a-dia, enquanto o seu horizonte mais ardente se transformou no mapa da partida.

Um país que se assemelha a um grande jardim infantil, onde as vozes mais altas não são as da razão, mas as do capricho. No centro deste recreio, sente-se um cadáver em putrefação, o cadáver da ética pública que é adornado com as fitas coloridas do discurso fácil e dos interesses mesquinhos. E o povo, confundido pela cantiga de embalar de uns e outros, vagueia sem rumo, apontando o dedo ao vizinho, pois foi despojado da sua única bússola que seria a Esperança.

Os instalados deste regime, cimentado em Bruxelas, vivem do engano, e o povo, tragicamente, parece não ter outra sorte que querer ser enganado. É um pacto tácito e doentio. Nos púlpitos da democracia, os mais corruptos são os que mais gritam, advogando por um Estado sem governação, para que o seu poder, absoluto e divorciado da justiça, permaneça inquestionável. Têm o poder, e por isso, aos olhos deste tempo enviesado, passam a ter razão. A autoridade que lhes foi emprestada pelo crédito do povo é usada para provar o seu cinismo final: a crença de que tudo, inclusive a consciência, se compra com dinheiro.

A Metamorfose dos Justos

Há uma tragédia íntima que se desenrola nos corredores do poder: a metamorfose da alma. Vi pessoas boas, simples e justas, mudarem de casaca com uma facilidade que envergonharia um camaleão. Ao tocarem no número mágico do contribuinte, sentem-se absolutos, transfigurados. Já não os reconheço. O poder não os corrompeu; substituiu-os. E assim, a coisa pública torna-se um palco onde quem entra deixa à porta não só o casaco, mas a própria integridade.

Faltam-nos personalidades, sobejam políticos. Não temos homens de Estado, temos administradores da miséria, subordinados a um ritmo distante, coreografado em Bruxelas. São dançarinos do poder, abraçando-se em cena enquanto lançam um olhar cínico ao povo subordinado. O seu currículo não inclui os princípios cristãos da caridade, a metafísica categórica de Kant, ou qualquer noção de ética que não seja a do momento oportuno.

A República sem Virtude e o Espírito Adormecido

Platão sonhava com filósofos a governar a República, fundamentando-a na Virtude. Hoje, a virtude é um termo estranho, um anacronismo perigoso. Vivemos num regime que fomenta a banalidade, que difama a honra porque ela seria um impedimento à construção de uma sociedade sobre alicerces fúteis e mecanicistas. Destrói-se o senso comum, atafulham-se as cabeças com ideias individualistas, mas rouba-se a capacidade para o discernimento. Quase já não se estuda filosofia nem ética nos liceus; estuda-se o útil, o momentaneamente oportuno, preparando gerações de técnicos eficientes e cidadãos passivos.

Esta destruição gera uma paralisia existente. As ações e as tomadas de posição são adiadas, substituídas por um rosário interminável de lamentações. E eis a ironia mais cruel: este murmúrio queixoso tornou-se um dos sustentáculos do sistema. Confere a ilusão de uma vida ética, a sensação de que se está a criticar, quando na verdade se está apenas a gemer, inofensivamente porque disto se ri quem manda. A crítica verdadeira, que é a presença viva da pessoa na sociedade, capaz de formular ideias e soluções, é substituída pelo comentário primário, pelo “a favor” ou “contra” que tudo transforma em espetáculo e aplauso.

O Despertar das Consciências: Do Biótopo à Floresta

Uma sociedade consciente não nasce de um decreto, mas de consciências unidas. Tal como a vida teima em brotar em “biótopos” , em pequenos ecossistemas de resistência e clareza, no solo degradado da sociedade, assim terá de ser a nossa esperança. A consciência individual, formada na luta e no cultivo interior, precisa de se expressar em grupos que não se circunscrevam às meras necessidades económicas e políticas.

Numa sociedade regulada por interesses, a sociedade civil deve organizar-se em grupos de interesse que exijam, simplesmente, humanidade, paz e justiça. Tal como os sindicatos defendem o pão, estes grupos defenderão a alma. Uma opinião sensata só pode nascer da observação de todas as opiniões, um contraponto ao consentimento público fabricado pela retórica dos meios de comunicação, que forjam a opinião no sentido desejado por Lisboa e Bruxelas.

Este teatro da violência simbólica, onde os dançarinos do poder encenam a nossa realidade, só cairá quando o espírito crítico despertar. Esse espírito não é um luxo intelectual; é o antídoto para a vida manietada entre a remuneração e o consumo. É a recusa em ser apenas um detergente social que limpa a sujidade dos interesses, prolongando-lhes inconscientemente a atividade.

O cadáver da ética pública está à vista. Cabe a nós decidir se continuaremos a adorná-lo com fitas, ou se, finalmente, o enterraremos para semear algo novo no terreno que ele ocupa. A exploração começa no exterior, mas a libertação começa no interior, no cultivo de um espírito que se recusa a ser enganado. A necessidade de o explorar em si não é uma sugestão; é, neste momento da história, um imperativo de sobrevivência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A HISTÓRIA DAS TRÊS MORADAS

Uma Narrativa sobre a Unidade Trinitária do Ser

Havia um tempo antes do tempo, quando tudo ainda era pura possibilidade suspensa sem forma, vazio em silêncio.

Então o movimento nasceu. Não um, mas três, unidos numa dança eterna e desta dança surgiu tudo o que é: o visível e o invisível, a ordem e o caos, o peso e a leveza.

1. A Grande Respiração

No princípio da criação, o Universo começou por respirar. Nessa respiração criou três moradas como expressão de uma só morada.

A primeira morada é a Casa do Ar, com os seus sete véus transparentes. A Troposfera, mais próxima, é como a pele que sente o calor e o frio, onde as nuvens são pensamentos e as tempestades, emoções intensas. Acima, a Estratosfera guarda o escudo protetor do ozónio, assim como a consciência protege o ser das radiações destrutivas do caos exterior que nos rodeia. Mais alto ainda, a Mesosfera, a Termosfera e aí, cada camada assemelha-se a um degrau na escada entre o tangível e o infinito, entre o peso e a leveza absoluta.

A segunda morada é a Casa da Terra, com os seus três reinos concêntricos. A Crosta é a face visível, onde pisamos e plantamos, onde construímos e deixamos pegadas numa superfície de encontros e despedidas. O Manto, logo abaixo, pulsa em movimentos lentos e poderosos, correntes invisíveis que movem continentes ao longo de eras e que lembram as correntes profundas da psique que movem civilizações. E no centro secreto, situa-se o Núcleo flamejante, coração de ferro e níquel que gera o campo magnético, que é a bússola invisível que orienta tudo o que vive sobre a superfície.

A terceira morada é a Casa do Homem, reflexo e súmula da casa do Ar e da Casa da Terra. A Cabeça contempla os céus e sonha com estrelas; o Tronco abriga os órgãos vitais, câmara central onde bate o coração e os pulmões respiram o ar da primeira morada; os Membros tocam a terra, caminham, trabalham, abraçam, fazendo assim a ponte entre o espírito que ascende e a matéria que sustenta.

Mas o mistério não termina aí.

2. O Segredo Trinitário

Havia um velho sábio que vivia numa aldeia entre montanhas. Chamavam-lhe Elias das Três Fontes, pois ele costumava dizer que dentro de cada pessoa brotavam três nascentes que eram uma só água.

Um dia, uma jovem chamada Miriam veio ter com ele e perguntou-lhe:

“Mestre, sinto-me dividida. O meu corpo quer uma coisa, a minha mente outra, e algo mais profundo em mim anseia por um caminho que nem sei nomear. Sou três pessoas em conflito ou uma só em confusão?”

O velho sorriu e apontou o seu cajado para o céu:

“Vês a atmosfera? Parece vazia, mas sustenta sete camadas distintas, cada uma com a sua função. A camada mais baixa toca a terra e carrega chuva; a mais alta toca o espaço e brilha com auroras. São sete, mas é uma só atmosfera. Agora olha para baixo.”

Bateu no chão com o seu cajado:

“A terra parece sólida, mas dentro dela há três mundos: a casca onde pisamos, o manto que ferve devagar, e o núcleo de fogo. Três, mas uma só Terra. E tu, Miriam, és feita à mesma imagem.”

Miriam sentou-se a seus pés e implorou:

“Explique-me, por favor.”

3. A Tríade Humana

O Corpo”, começou Elias, “é como a crosta terrestre e a troposfera juntas. É a tua parte visível, tangível, o templo onde habitas. Ele cresce da terra, come da terra, volta à terra. Mas sem as outras dimensões, seria apenas matéria inerte, como uma pedra. O corpo é a tua palavra feita carne, a tua presença no mundo visível.”

Elias respirou fundo, levou a mão ao peito e continuou:

A Alma é como o manto da Terra e as camadas intermediárias do ar. É a sede do teu “eu” único e irrepetível, a tua personalidade, memórias, emoções, vontade e razão. É onde reside a imagem de Deus em ti: a capacidade de amar, de escolher, de criar. A alma anima o corpo, como o manto aquece a crosta, como o vento move as nuvens. Aristóteles dizia bem: a alma é a forma do corpo, aquilo que transforma matéria em vida. Sem a alma, o corpo seria um robot, mas sem o corpo, a alma não teria ferramenta para apalpar o mundo. E o luzeiro da Idade Média, Tomás de Aquino completava ao dizer que a alma é o que confere ao corpo a sua existência e as suas funções vitais, mas, por ser espiritual, possui a capacidade de subsistir por si só após a morte do corpo, o que fundamenta a sua imortalidade.”

Elias olhou para o céu, onde brilhavam as primeiras estrelas.

O Espírito” disse ele, “é como o núcleo incandescente da Terra e a ionosfera que toca o cosmos. É a tua centelha divina, o fôlego que Deus soprou em Adão, a parte de ti que reconhece o Infinito porque vem do Infinito. O espírito não é “teu” da mesma forma que a alma é, ele é a ponte, a conexão, o ponto de contato entre a tua finitude e o Mistério eterno. É por isso que podes orar, contemplar, transcender-te. Ele é, como na narrativa sagrada, o amor que nasce entre Pai e Filho.”

Miriam franziu a testa.

“Mas então somos três seres separados dentro de um só?”

4. A Dança Trinitária

“Não!” gritou o sábio com voz animada. “Essa é a armadilha do pensamento dualista, que só vê opostos: ou é um, ou são muitos. Mas a realidade é trinitária, e o três não é divisão, mas comunidade!”

Para se tornar mais compreensível, Elias desenhou três círculos entrelaçados na areia.

“Olha aqui: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas, mas um só Deus. Não três deuses, não um deus com três máscaras, mas três em relação perfeita. E nós, feitos à imagem dessa Trindade, somos também relação. O teu corpo não existe sem a tua alma para animá-lo; a tua alma não se expressa sem corpo; e o teu espírito seria palavra não pronunciada se não tivesse corpo e alma como instrumento.”

Então Elias apagou as linhas divisórias entre os círculos com a mão.

“É como a água, o gelo e o vapor. Três estados, numa só substância. É como a raiz, o tronco e os ramos. Três partes, mas uma só árvore. Tu és uma unidade tripartida, ou melhor, uma trindade unificada.”

Miriam perguntou baixinho:

“E a atmosfera e a Terra são elas as mestras?”

Elias assentiu.

“Sim, são professores sossegados!

A atmosfera não é só ar parado, formada de camadas de ar em relação constante: o calor sobe da superfície, o frio desce do espaço, e no encontro nascem os ventos, as chuvas, a vida. A Terra não é pedra morta, ela é núcleo em brasa que alimenta o manto que move a crosta que sustenta vida. Tudo é relação, Miriam, tudo é movimento trinitário.”

5. O Drama da separação

“Então qual é a razão”, perguntou Miriam com a voz trémula, “por que me sinto dividida?”

O rosto do sábio escureceu.

“Porque a humanidade esqueceu a dança. Vivemos como se fôssemos apenas corpo, buscamos só prazer material, acumulamos coisas, idolatramos a aparência. Ou vivemos como se fôssemos só alma, presos na mente, nas emoções neuróticas, nos jogos de poder do ego. Ou fugimos para um espiritualismo desencarnado, desprezando o corpo e o mundo como se fossem meras prisões.”

Elias levantou-se, abriu os braços e falou com voz séria e calorosa:

“A visão dualista divide tudo em bem versus mal, espírito contra a matéria, céu contra a terra. É a tentação maniqueísta que simplifica o mundo em preto e branco. E dela nasce a política maquiavélica: “os fins justificam os meios”, porque se a realidade é só dois lados em guerra, vale tudo para “o meu lado” vencer.”

Miriam erguendo os olhos.

“E qual é a alternativa?”, perguntou ela.

Elias inclinou-se na sua direção e sussurrou:

A visão trinitária! Reconhecer que bem e mal não são forças iguais em combate, mas que o bem é trinitário; é Verdade, Beleza e Bondade em dança, enquanto o mal é privação, ruptura da relação. A política verdadeira não é dominar o adversário, mas buscar o bem comum através do diálogo tripartido: eu, tu e o Bem que nos transcende e que nos seria dado procurar juntos.”

6. A Jornada Interior

“Como posso então viver integralmente?” – perguntou Miriam.

O velho Elias voltou a sorrir, desta vez com gentileza e calma.

“Procura aprender com a criação. A atmosfera cuida de cada camada, mas todas servem ao todo: proteger a vida. A Terra mantém cada reino em sua função, mas todos colaboram: a crosta dá suporte, o manto recicla e o núcleo fornece energia.”

Então falou enfaticamente:

“Cuida do teu corpo como quem cuida da crosta terrestre: com respeito, sem idolatria nem desprezo. Ele é templo, não ídolo nem prisão. Come, dorme, movimenta-te, celebra a matéria como dom de Deus. O mestre da galileia também amava a vida e porque ele convivia com publicanos e pecadores, a ponto dos líderes religiosos da época, O acusaram de ser “beberrão” e “comilão”.

Elias continuou, com voz calma e clara:

“Cultiva a tua alma como quem cultiva o manto terrestre: educa a mente, refina as emoções, fortalece a vontade. Lê, pensa, cria, ama, escolhe. A alma é o jardim onde floresce a tua humanidade única. Mas lembra-te: o jardim precisa de terra (corpo) e chuva do céu (espírito).”

Olhou intensivamente para Miriam e colocou a mão na cabeça dela.

“Abre-te ao Espírito como a crosta se abre para o calor do núcleo, como a troposfera se abre à luz do sol.  Reza. Contempla. Silencia.

Reconhece que não és origem de ti mesma, mas resposta a um Chamamento divino.”

Os olhos de Miriam brilharam.

“E quando as três dimensões dançam juntas?”, perguntou ela.

Elias sorriu e a sua voz soou como uma canção distante:

“Então és completamente humana!

Quando a tua cabeça vê o mistério, o teu coração bate ao ritmo do amor e as tuas mãos se estendem-se em serviço, então não és mais um indivíduo isolado, mas pessoa em relação: em paz contigo mesma, em comunidade com os outros, em diálogo com Deus, e em harmonia com a criação.”

7.  O Canto da Unidade

Naquela noite, Miriam compreendeu. Deitou-se no chão e sentiu a crosta terrestre por baixo de si, o manto invisivelmente pulsante por baixo dela e bem no fundo, o núcleo distante e ardente que alimentava o campo magnético que a protegia dos ventos solares. Respirou fundo e sentiu o ar da troposfera a fluir para os seus pulmões, subindo pelos brônquios, enchendo o seu sangue de oxigénio, enquanto bem acima a estratosfera a protegia da luz ultravioleta, e ainda mais alto a ionosfera dançava com as partículas do espaço.

E dentro de si ela sentia: o seu corpo cansado, mas vivo, enraizado na terra, a sua alma finalmente em paz, já não dividida, mas unida: mente clara, coração aberto, vontade direcionada e o seu espírito, aquela centelha terna que suspirava suavemente o “Abba” para o mistério que ela carregava.

Ela não era uma nem era três. Ela era uma em três e três em uma, como a terra, como o ar, como a própria Trindade. E, nesse momento, ela compreendeu o antigo ditado bíblico:

“Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança.”

Não “à minha imagem”, pois isso seria unidade sem relação, mas “à nossa”: a imagem trinitária, comunitária, tecida pelas relações. Pois a pessoa não é um átomo isolado, um ego, mas um nó numa teia infinita de amor.

O Chamamento

Miriam voltou à aldeia transformada. Não tinha respostas mágicas para todas as questões da vida, no entanto, transportava consigo uma chave, uma hermenêutica do coração: ver tudo – natureza, sociedade e si mesma – não com olhos dualistas (nós versus eles, corpo versus alma), mas com olhos trinitários.

Miriam ensinou às crianças:

“Vós sois como a Terra: tendes uma superfície que todos veem que é o vosso corpo, um reino interior que ferve de vida que é a vossa alma e um fogo no centro que o liga ao mistério e que é o vosso espírito. Não desprezem nenhuma destas camadas e não adorem nenhuma sozinha! Quando reconhecerem isto vivereis em paz convosco mesmos e com os outros.”

Aos adultos envolvidos nas discussões políticas, ela disse:

“Deixem de acreditar que a solução é destruir o inimigo, como fazem os adeptos da visão maniqueísta.

A verdade não surge quando dois lutam entre si, mas quando três falam em conjunto: eu, tu e a verdade que transcende ambos, na relação eu-tu-nós.

E aos místicos arrebatados, ela disse:

“Deus não criou a matéria para a odiarmos. O Verbo fez-se carne! A salvação não consiste em escapar do corpo, mas em transfigurá-lo como Cristo, o Ressuscitado: não um espírito sem corpo, mas um corpo glorificado, permeado de luz.”

E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam plantou a semente da visão integral que tem o melhor exemplo no protótipo Jesus Cristo: E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam lançou as sementes de uma visão integral do ser:

  • Atmosfera, Terra e humanidade: três mestres de uma só lição.
  • Corpo, alma e espírito: três dimensões de um único ser.
  • Pai, Filho e Espírito Santo: três pessoas de um só amor.

E aqueles que compreenderam a dança trinitária começaram a viver de forma diferente: já não como máquinas (meros corpos), nem como fantasmas (só alma ou mente), nem como egos insuflados (mera necessidade), mas como pessoas inteiras, como microcosmos que refletem o Macrocosmo, templos vivos nos quais a matéria é abençoada, a consciência é iluminada e o Espírito sopra livremente.

Pois no princípio era a Relação, o Verbo, e a relação pessoal era com Deus, e a relação era Deus. Tudo o que existe, das galáxias aos átomos, das montanhas aos pensamentos, é o eco desta dança eterna: Três em Um e Um em Três. Uma unidade que não anula a diversidade e uma diversidade que não destrói a unidade.

Um segredo que não se revela em fórmulas, mas na vida vivida!

Não há respostas prontas para as grandes questões. A única forma de as encontrar é viver a vida plenamente; pois a sabedoria, o autoconhecimento, nasce da ação e da contemplação silenciosa do próprio caminho. O divino, a origem e o propósito, a essência da existência, revela-se na experiência humana concreta: no amor, no sofrimento, na superação; isto é, na forma como vivemos e como nos relacionamos com o mundo.

Reflexão Final

Caro/a Leitor/a,

esta narrativa tenta tecer a realidade de que fazemos parte e que simultaneamente nos questiona. As camadas da atmosfera e da geosfera são aqui apresentadas como análogas às dimensões humanas numa história que procura transcender o reducionismo dualista e celebrar a complexidade trinitária da realidade.

A estrutura da narrativa reflecte o seu conteúdo: começa com a cosmologia (atmosfera e terra), continua com a antropologia (corpo, alma, espírito) e culmina na teologia (a imagem trinitária), regressando finalmente e repetidamente, à existência, à questão: Como devemos viver tudo isto?

Ao criar esta narrativa, que entende a realidade como uma metáfora para algo que a transcende, foi importante para mim não confundir visões  do mundo nem o método de conhecimento para acesso à realidade.

A integração de uma visão monista da realidade, em que tudo emerge de uma única fonte, com um método dualista-analítico que distingue sujeito e objecto na investigação encontra a sua síntese numa perspectiva relacional-pessoal. Isto permite abraçar a concepção trinitária da realidade divina (como a “fórmula” de toda a existência e de toda a realidade): uma unidade essencial expressa numa multiplicidade de pessoas em relação mútua, transcendendo assim tanto o monismo rígido como o dualismo irreconciliável.

Que esta narrativa sirva como ferramenta de autorreflexão e como forma de transmitir uma visão integral do ser e da maneira de estaa, sem perder a essência da relação, o jogo vivo do pessoal. Que seja uma semente que brote em muitos corações.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

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