A festa do Pentecostes (1) ergue-se como um alto espiritual da Igreja; não como mero acontecimento histórico, mas como perene convocação ao divino no humano. É o esplendor do Espírito Santo que, qual vento impetuoso, desfaz as barreiras confusas de Babel e reconstrói, no fogo da caridade, a unidade na diversidade. Aqui, a linguagem já não é maldição, mas bênção; já não separa, mas congrega.
O Impulso do Espírito envolve-nos na engrenagem da vida através do Pensar-Sentir-Agir!
Na quietude do Cenáculo de Jerusalém, os discípulos, temerosos e recolhidos, são arrebatados pelo Ruah divino. Não se trata de um mero sopro, mas de um ímpeto que os lança para além de si mesmos. Pensar, na economia da fé, nunca é estagnação; é inquietação, é quesito que clama por resposta. Como os discípulos, também nós somos chamados a recolher-nos, a interrogar-nos, para que, no silêncio, o Espírito nos conceda a resposta que não reside em nós, mas para além de nós.
Sentir, por sua vez, é reconhecer que a existência não se esgota no eu. É no encontro com o outro—seja na fragilidade do próximo, seja na grandeza dos génios da história e da literatura—que o Espírito revela novas possibilidades. O amor, afinal, é sempre diálogo, sempre relação recíproca.
No agir está incluído o risco da liberdade. Os Apóstolos, outrora encolhidos no medo, saem a proclamar. A ação, porém, não é isenta de culpa—e aqui reside o paradoxo da condição humana: mesmo quando movidos pelo Espírito, carregamos o peso da falibilidade. Mas Pentecostes ensina-nos que é melhor errar na ousadia do que definhar na inércia. Importante é primeiramente que o que se faz seja feito com boa intenção no sentido do bem.
O Espírito é a graça (amor) de Deus que age e conduz à renovação e à comunhão!
Pentecostes não é recordação, mas presença, que na vivência interior que move o exterior. É o Espírito que, como seiva invisível, faz desabrochar a Igreja em plenitude. O Espírito não se domestica, não acurrala nem se deixa enclausurar em fórmulas. Ele sopra onde quer—nos simples, nos sábios, nos que choram, nos que esperam e transforma o rumo das coisas. É Ele que, qual artista divino, pinta a unidade com as cores da diversidade, fazendo de muitas línguas uma só voz: a do Evangelho.
A Bíblia diz: “Como é que cada um de nós os ouve falar na nossa própria língua?” (At 2,8). Eis o milagre: a Palavra não se uniformiza, mas traduz-se. O Espírito não anula as culturas; santifica-as. Não apaga as diferenças; transfigura-as em comunhão; não se deixa formular em agendas nem em directrizes políticas movidas por interesses tornados força nem tão-pouco em opiniões pacotes a que falte a diferenciação. Por outro lado, não se deixa reduzir à arbitrariedade do relativismo cultural e moral que reduz tudo ao igualitarismo. Sem a procura da natural individualidade, não haveria desenvolvimento na natureza nem na sociedade. O Espírito Santo é o Sopro de Deus, que atravessa as fronteiras políticas e humanas e permanece na natureza e na humanidade como Paráclito, luz divina e Consolador.
O Pentecostes é legado a ser-se sal da terra!
A abertura ao Espírito da Verdade não é mística passiva; é compromisso. No sentir da Igreja Ele concede-nos os sete dons — Sabedoria (espírito do discernimento), Inteligência (entender o mundo na presença de Deus, uma espécie de intuição das verdades naturais e espirituais), Conselho (na entreajuda e no discernimento de atitudes e circunstâncias), Fortaleza (para encarar a vida de frente se se desviar das dificuldades), Ciência (ao nível intelectual, da vivência e da acção para ir interpretando e atuando num mundo em transformação), Piedade (o amor divino presente em nós através da misericórdia) e o Temor de Deus (o dom que nos leva a reconhecer no Outro o centro da nossa ipseidade, ele ensina-nos o respeito às pessoas e à natureza)—não só para nosso deleite espiritual, mas para que sejamos sal da terra, não nos deixando ficar a marcar passo no horizonte do ego. Ou seja: estamos chamados a dar sabor a um mundo insosso e por vezes perverso, para preservarmos a humanidade da mentira, da hipocrisia, da corrupção e do egoísmo.
Deus é Emanuel—o Deus-connosco. E se Ele está connosco, então nenhum medo justifica a covardia, nenhuma rotina justifica a estagnação. Pentecostes é, pois, um eterno recomeço que se expressa na igreja peregrina não nos deixando tropeçar na culpa e no erro.
O Espírito da Verdade é um fogo que como parte da sarça ardente não se extingue!
Hoje, como outrora, o Espírito desce. Não em chamas visíveis, mas no fogo silencioso que arde nos corações que O acolhem. Ele não nos promete facilidade, mas coragem; não ausência de conflito, mas unidade na diversidade.
Que o Pentecostes não seja apenas memória, mas acontecimento—em nós, através de nós, apesar de nós. Para que, no pensar, no sentir e no agir, sejamos, afinal, testemunhas d’Aquele que é, que era e que há de vir.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) https://antonio-justo.eu/?p=6511
https://antonio-justo.eu/?p=9249
https://abemdanacao.blogs.sapo.pt/pentecostes-e-o-tempo-alto-da-1640805
Muito obrigada pela partilha, caro amigo Justo.
O conteúdo do texto, que li e irei reler mais vezes, é muito profundo e oriundo de uma pessoa conhecedora que muito estimo, ajuda-me a entender a mensagem de Jesus na terra.
Bem haja
Querida Marlbas,
muito obrigado por palavras tão generosas e bondosas. Fico feliz por saber que o texto encontrou eco no seu interior.
A mensagem de Jesus é insondável, cheia de amor e sabedoria, própria a ressoar em corações nobres e abertos.
Por vezes toco temas que pessoas me sugerem para tratar. Deste modo posso estar mais próximo das pessoas, ou seja, de Deus.
Um grande abraço e muita saúde e alegria no seu dia-a-dia.
Com muita estima,
Justo
Mais uma vez, obrigada pelo texto! Realmente (e até que enfim) alguém me “descreve” o Espírito Santo de modo que eu comece a perceber “alguma coisa DELE”. Nunca percebi muito bem o que era a terceira pessoa da Santíssima Trindade. OBRIGADA
Mila Cerca, muito obrigado pelas suas generosas palavras! Fico muito feliz por que o texto tenha tocado o seu coração e a ajude a perceber um pouco mais do Espírito Santo — esse Amor eterno que procede do Pai e do Filho, sopro divino que vivifica, unge e santifica. Aqui o intelecto serve apenas como bengala para se chegar à experiência interior mística onde as palavras e explicações deixam de ecoar.
Sim, a Santíssima Trindade é o Mistério fundamento e fundante de tudo: o Pai (Fonte eterna), o Filho (Palavra encarnada que reúne espírito e matéria) e o Espírito Santo (Vínculo de amor). Juntos, não são três ‘deuses’, mas um só Deus em comunhão perfeita — a Relação das relações. É n’Ele que encontramos a ‘fórmula’ oculta de toda a realidade: tudo existe porque é amado, tudo se sustenta porque é sustentado por essa Dança eterna de amor (a verdadeira relação das relações).
(Comecei a escrever um livro sobre a Trindade divina mas os temas do dia-a-dia não me têm deixado tempo para o completar; este mistério só pode ser degustado na vivência, bem longe do barulho da mente; ponho aqui para si como que o resumo do que se encontra no meu livro em rascunho: A Trindade Santa é o Abismo de Luz onde todas as relações nascem e se perdem: o Pai é a Fonte que nunca se esgota, o Filho é o Rio que dela jorra, e o Espírito é o Oceano sem margens onde ambos se encontram — um eterno circular de dádiva e acolhimento. Neste Mistério, até o tempo suspira, pois ali tudo é Uno sem deixar de ser Três, dança cósmica que tece a realidade como um véu bordado com fios de graça.
Imagine Mila se todo o cristão e não cristão fosse introduzido nesta filosofia e mística cristã! Então desapareceriam as objeções contra o cristianismo que por vezes se fica apenas pelo seu necessário folclore!
Obrigado por ter acolhido esta reflexão com tanta abertura! Que o Espírito Santo continue a revelar-Se a si, não como conceito, mas como Presença que a habita, consola e transfigura tudo. Um abraço em nome do Pai, do Filho e d’Ele — o Doce Hóspede secreto da nossa alma! Um abraço também para o meu amigo, seu marido.
António Justo, estou muito grata…
Belíssima reflexão bem esclarecedora para nós…
Gostei muito de ler o seu belissímo texto. Um bem haja
Belo texto, muito interessante, ainda mais completo do que ouvi domingo na missa. Beijinhos