(Passado e futuro abraçados no Agora)
Há um tempo que não passa,
que paira.
Não se conta em horas, ele conta-nos a nós.
É um suspiro do Eterno
que arde no ventre do instante.
Chama sem relógio.
Chave sem porta.
O Kairós manifesta-se
quando o céu inclina o ouvido à terra
e o silêncio estala em revelação.
Não é tempo de ponteiros,
mas de pulsares —
a alma recolhe-se ao centro,
e o Agora abre-se como uma flor
que só desabrocha quando não a vês.
Ali, despido da pressa,
o mundo não gira — dança.
O espaço já não mede:
revela.
As distâncias dissolvem-se no olhar
de quem vê com o coração nu.
No Kairós,
somos mais verdade que forma,
mais sopro que chão.
Somos peregrinos do invisível,
navegantes do próprio sangue,
à deriva no mistério que nos habita.
E tudo ressoa:
o corpo, partitura do espírito;
o desejo, fogo que canta;
o verbo, brisa que abençoa.
Nada mais é fragmento:
dor e louvor entrelaçam-se
como raízes sob a pele do mundo.
É o tempo do entre —
do fio suspenso entre o finito e o Inominável,
entre o eu e o Tu
que me atravessa como um poema sussurrado
por dentro da matéria.
Aqui, no Kairós
o silêncio é nascente,
a palavra, fonte,
e o viver
rito sagrado.
Nesse tempo sem margens,
o nascimento é outro:
não do barro,
mas da centelha.
Carne que se descobre templo,
alma que se reconhece chamada.
Educar para o Kairós
é ensinar a escutar o espanto,
a ver com os olhos do intervalo,
a habitar o instante
antes que ele se feche em forma.
Porque só ali,
onde o tempo se curva à eternidade,
a vida revela o seu nome secreto,
e o humano deixa de ser acaso
para tornar-se eco de uma Voz
que sempre nos antecedeu.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo