UM DESABAFO SOBRE DEMOCRACIA E ÉTICA NO MEU PAÍS E NA EUROPA

Jardim Infantil e o Cadáver Adornado

Quem chega de fora e aqui pousa o olhar, sente primeiro um espanto mudo. O que vejo? A tragédia do potencial subjugado: um povo de seiva humana, facultoso e laborioso, cuja energia vital é drenada por um destino imposto e cujo fado paradoxal o ancorou no breve sonho do dia-a-dia, enquanto o seu horizonte mais ardente se transformou no mapa da partida.

Um país que se assemelha a um grande jardim infantil, onde as vozes mais altas não são as da razão, mas as do capricho. No centro deste recreio, sente-se um cadáver em putrefação, o cadáver da ética pública que é adornado com as fitas coloridas do discurso fácil e dos interesses mesquinhos. E o povo, confundido pela cantiga de embalar de uns e outros, vagueia sem rumo, apontando o dedo ao vizinho, pois foi despojado da sua única bússola que seria a Esperança.

Os instalados deste regime, cimentado em Bruxelas, vivem do engano, e o povo, tragicamente, parece não ter outra sorte que querer ser enganado. É um pacto tácito e doentio. Nos púlpitos da democracia, os mais corruptos são os que mais gritam, advogando por um Estado sem governação, para que o seu poder, absoluto e divorciado da justiça, permaneça inquestionável. Têm o poder, e por isso, aos olhos deste tempo enviesado, passam a ter razão. A autoridade que lhes foi emprestada pelo crédito do povo é usada para provar o seu cinismo final: a crença de que tudo, inclusive a consciência, se compra com dinheiro.

A Metamorfose dos Justos

Há uma tragédia íntima que se desenrola nos corredores do poder: a metamorfose da alma. Vi pessoas boas, simples e justas, mudarem de casaca com uma facilidade que envergonharia um camaleão. Ao tocarem no número mágico do contribuinte, sentem-se absolutos, transfigurados. Já não os reconheço. O poder não os corrompeu; substituiu-os. E assim, a coisa pública torna-se um palco onde quem entra deixa à porta não só o casaco, mas a própria integridade.

Faltam-nos personalidades, sobejam políticos. Não temos homens de Estado, temos administradores da miséria, subordinados a um ritmo distante, coreografado em Bruxelas. São dançarinos do poder, abraçando-se em cena enquanto lançam um olhar cínico ao povo subordinado. O seu currículo não inclui os princípios cristãos da caridade, a metafísica categórica de Kant, ou qualquer noção de ética que não seja a do momento oportuno.

A República sem Virtude e o Espírito Adormecido

Platão sonhava com filósofos a governar a República, fundamentando-a na Virtude. Hoje, a virtude é um termo estranho, um anacronismo perigoso. Vivemos num regime que fomenta a banalidade, que difama a honra porque ela seria um impedimento à construção de uma sociedade sobre alicerces fúteis e mecanicistas. Destrói-se o senso comum, atafulham-se as cabeças com ideias individualistas, mas rouba-se a capacidade para o discernimento. Quase já não se estuda filosofia nem ética nos liceus; estuda-se o útil, o momentaneamente oportuno, preparando gerações de técnicos eficientes e cidadãos passivos.

Esta destruição gera uma paralisia existente. As ações e as tomadas de posição são adiadas, substituídas por um rosário interminável de lamentações. E eis a ironia mais cruel: este murmúrio queixoso tornou-se um dos sustentáculos do sistema. Confere a ilusão de uma vida ética, a sensação de que se está a criticar, quando na verdade se está apenas a gemer, inofensivamente porque disto se ri quem manda. A crítica verdadeira, que é a presença viva da pessoa na sociedade, capaz de formular ideias e soluções, é substituída pelo comentário primário, pelo “a favor” ou “contra” que tudo transforma em espetáculo e aplauso.

O Despertar das Consciências: Do Biótopo à Floresta

Uma sociedade consciente não nasce de um decreto, mas de consciências unidas. Tal como a vida teima em brotar em “biótopos” , em pequenos ecossistemas de resistência e clareza, no solo degradado da sociedade, assim terá de ser a nossa esperança. A consciência individual, formada na luta e no cultivo interior, precisa de se expressar em grupos que não se circunscrevam às meras necessidades económicas e políticas.

Numa sociedade regulada por interesses, a sociedade civil deve organizar-se em grupos de interesse que exijam, simplesmente, humanidade, paz e justiça. Tal como os sindicatos defendem o pão, estes grupos defenderão a alma. Uma opinião sensata só pode nascer da observação de todas as opiniões, um contraponto ao consentimento público fabricado pela retórica dos meios de comunicação, que forjam a opinião no sentido desejado por Lisboa e Bruxelas.

Este teatro da violência simbólica, onde os dançarinos do poder encenam a nossa realidade, só cairá quando o espírito crítico despertar. Esse espírito não é um luxo intelectual; é o antídoto para a vida manietada entre a remuneração e o consumo. É a recusa em ser apenas um detergente social que limpa a sujidade dos interesses, prolongando-lhes inconscientemente a atividade.

O cadáver da ética pública está à vista. Cabe a nós decidir se continuaremos a adorná-lo com fitas, ou se, finalmente, o enterraremos para semear algo novo no terreno que ele ocupa. A exploração começa no exterior, mas a libertação começa no interior, no cultivo de um espírito que se recusa a ser enganado. A necessidade de o explorar em si não é uma sugestão; é, neste momento da história, um imperativo de sobrevivência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A IGREJA NÃO PODE TORNAR-SE UM SUPERPARTIDO

A missão da Igreja é transumana transcendente e não pode ser reduzida a mais uma voz no debate partidário

A presença pública de responsáveis eclesiásticos tem vindo a adquirir um tom crescentemente politizado nos últimos anos. Entre a pandemia, a guerra na Ucrânia e a ascensão de partidos da direita na Europa, setores da Igreja parecem inclinados a alinhar-se com posições partidárias, muitas vezes repetindo o discurso dominante.
Esse caminho, porém, é um erro que prejudica a própria Igreja e os cristãos que, na sua liberdade e soberania, participam na vida política. Na comunidade cristã, “não há estrangeiros”, mas também não há partidos.

Em alguns países, como a Alemanha, chegaram mesmo a existir instituições ligadas à Igreja que evitavam contratar pessoas com filiação partidária “desconforme” ou desalinhada com o poder instituído. Hoje, como ontem, assiste-se à tentativa de afastar certos grupos, ontem comunistas, hoje membros de partidos populistas da função pública. Este tipo de práticas, para além de dúbias do ponto de vista democrático, torna a Igreja cúmplice de exclusões que não lhe competem. Na prática, este tipo de comportamento político-punitivo fragiliza o próprio sistema democrático e a dignidade humana.

A missão transcendente da Igreja

A Igreja não é um poder temporal, deve ser o sal da terra. A sua missão é espiritual, moral e universal. Não lhe cabe indicar “o partido certo”, nem avaliar programas de governo. O espaço específico da sua ação é outro: formar consciências à luz do Evangelho.

Os leigos, esses sim, são chamados a participar ativamente na vida política.
A eles cabe filiar-se, debater, negociar e propor soluções.
Aos clérigos cabe iluminar com princípios, não “dar o voto” nem deixar-se utilizar por interesses partidários.

Quando sacerdotes ou bispos criticam publicamente partidos específicos, mesmo quando movidos por boa intenção, arriscam-se a:

            – partidarizar a fé,

–  alienar fiéis que pensam de forma diferente,

– transformar a Igreja num ator político previsível e parcial.

E isso contradiz a própria natureza da Igreja, que é casa para todos.

“A Igreja não se confunde de modo algum com a comunidade política e não está vinculada a nenhum sistema político.” (Concílio Vaticano II, GS 76)

“A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática.” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 571)

O Papa Francisco lembra repetidamente que a Igreja deve evitar “colonizações ideológicas”, seja de direita, de esquerda ou de qualquer tipo.

Princípios são uma coisa; programas partidários são outra

A Doutrina Social da Igreja não propõe soluções técnicas, mas sim princípios: dignidade da pessoa humana, bem comum, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade.
Estes princípios não se traduzem automaticamente numa única proposta política. Muito menos num único partido.

Dois cristãos igualmente sérios podem, a partir dos mesmos princípios, chegar a opções partidárias diferentes sem perder fidelidade à fé.
E isso é saudável.
O que não é saudável é a Igreja tratar como erro doutrinal aquilo que, na realidade, é apenas uma opção política legítima.

Confundir o Evangelho ou princípios universais com aplicações políticas contingentes (com um programa partidário) é reduzi-lo e instrumentalizá-lo, pois, torna-se fonte de conflitos.

O risco do reducionismo moral

Quando a Igreja entra demasiado no debate político, tende a reduzir a moral a dois ou três temas, esquecendo o conjunto mais amplo da sua mensagem: justiça económica, paz, cuidados dos mais frágeis, ecologia integral, liberdade religiosa, dignidade da pessoa em todas as etapas da vida.

O Evangelho exige uma visão integral.
Não existe um partido que encarne todos os valores cristãos e não compete à Igreja escolher um.

Profetismo, sim. Partidarização, não.

A Igreja tem, sem dúvida, o dever de denunciar tudo o que fere gravemente a lei de Deus: aborto, eutanásia, xenofobia, violência, corrupção, injustiças estruturais.
Mas deve fazê-lo partindo dos princípios, não dos partidos.

Há uma enorme diferença entre afirmar “O partido X está errado”
e afirmar “Toda política que viola a dignidade humana está errada”.

Na primeira formulação, a Igreja torna-se um ator político.
Na segunda, cumpre a sua missão e deixa aos fiéis a tarefa de discernir.

O papel central dos leigos

A transformação política da sociedade não é missão dos padres.
É missão dos leigos. A própria  Igreja ensina que o sujeito principal da ação política são os leigos.

A eles pertence o debate político; à Igreja pertence a formação das consciências.
Quando esta ordem se inverte, ambos perdem:
a Igreja perde a sua universalidade; os fiéis perdem a sua autonomia. Os fiéis, bem formados, julgarão por si mesmos os programas partidários e evitarão entrar na polémica divisionista própria de estratégias partidárias.

Uma Igreja livre para todos

A Igreja deve ser uma consciência crítica da sociedade, e não um lobby disfarçado. Deve ser incómoda para todos os partidos quando necessário e dependente de nenhum.

Se cair na tentação de se transformar num “superpartido”, perderá a força profética e a capacidade de unir todos os que procuram Deus.

A política passa. Os partidos mudam e o Evangelho permanece.
E é a partir dele e não das lógicas partidárias que a Igreja deve continuar a iluminar a vida pública.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo

Pegadas do Tempo

 

A PAZ E AS TRÊS LANTERNAS

Metáfora sobre o silêncio, a arte, o saber e o valor das pessoas simples

 

Diz-se que a Paz caminhava por um vale antigo levando uma lanterna apagada.

As pessoas olhavam-na e pensavam que ela já tinha luz suficiente, pois o seu próprio silêncio iluminava o ambiente. Mas a Paz sabia que aquilo era apenas penumbra, uma luz fraca que não revelava os contornos das coisas.

Cansada de tropeçar no escuro, decidiu procurar quem pudesse ajudá-la a acender a sua lanterna.

 

A primeira chama foi a Arte

No sopé de uma montanha encontrou a Arte, que pintava o vento com pincéis invisíveis.

A Arte tocou a lanterna da Paz e acendeu nela uma chama azulada.

“Agora tens brilho”, disse ela.

“A minha luz não mostra caminhos, mas desperta sentimentos. Ela faz as pessoas verem o mundo com outros olhos.”

E era verdade: por onde a Paz passava, a chama azul tingia tudo com beleza.

Mas a chama oscilava demasiado. À menor rajada de conflito, sentia-se insegura e tremia.

 

A segunda chama foi o Saber

A Paz continuou a caminhada e encontrou o Saber sentado junto a uma velha ponte, enrolado em livros e mapas.

“A tua chama é bonita, mas instável”, disse o Saber.

“Deixa-me oferecer-te outra.”

E soprou sobre a lanterna da Paz, acendendo nela uma segunda chama, dourada que era firme, clara, quase como o Sol.

“A minha luz ajuda a ver as causas das sombras. Mostra os caminhos, mesmo os que a Arte não sabe nomear.”

A Paz agradeceu, mas perguntou:

“E os que não sabem ler mapas nem se ocupam com livros de muito saber? E os que vivem do que a terra dá e só querem passar o dia sem temores? Não os cegará tanta luz?”

O Saber sorriu benevolente:

“A luz não exige que todos falem sobre tudo. Apenas ilumina para que ninguém se perca. Quem quiser ver verá; quem preferir caminhar devagar terá sempre a sua dignidade intacta.

 

A terceira chama foi o Silêncio

A Paz seguiu viagem e encontrou o Silêncio junto a um lago parado.

Era discreto, quase invisível, mas ao aproximar-se, a Paz sentiu uma calma profunda.

“Tenho também uma chama para ti”, disse o Silêncio.

E acendeu na lanterna uma pequena brasa branca.

“A minha luz não se vê; sente-se. É o espaço entre as palavras, onde as pessoas simples se recolhem quando o mundo fala demais. Sou o abrigo para quem teme dizer tolices, para quem se sente esmagado por debates que não compreende ou porque simplesmente gosta de ouvir. Sou prudência e prudência também é inteligência.

Então a Paz compreendeu algo essencial: cada chama tinha a prudência e a sua medida.

A Arte iluminava o coração.

O Saber iluminava o entendimento.

O Silêncio iluminava a prudência e a dignidade dos mais simples.

Mas nenhuma das três, sozinha, bastava.

 

A aldeia da grande luz

Quando a Paz voltou ao vale com a lanterna de três chamas, aconteceu algo extraordinário.

As aldeias foram-se iluminando gradualmente: Os artistas viam melhor o mundo e criavam com mais responsabilidade; os sábios falavam com mais humildade e as pessoas simples já não se sentiam diminuídas, porque perceberam que o seu silêncio não era ignorância, mas um modo legítimo de viver! E assim todos descobriram que só se cresce quando se escuta: escuta-se a arte, o saber e até o silêncio alheio.

A lanterna da Paz tornou-se, então, uma metáfora viva: uma luz feita de três chamas que se equilibram mutuamente, coração, razão e prudência.

E assim, onde quer que ela ande, deixa agora não um silêncio vazio, mas uma luz completa: uma luz onde cada pessoa, instruída ou simples, pode caminhar com dignidade, sem se sentir menor e sem diminuir ninguém.

De facto, a sabedoria não se mede pela altura a que se sobe, mas pela dignidade com que se caminha ao nível de todos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

SINFONIA DO SER NO LIMIAR

 

Levo no peito o influxo das marés,
O vaivém de um oceano interior,
Onde as ondas, em ritmos siderais,
Cristalizam a espuma em pensamento.

É o rugido do mar eternidade?
É um aplauso? Um pranto sussurrado?
Véu sonoro sobre a imensidão,
Que se desfaz em nuvens do tempo.

Meu corpo é um manifesto, memória antiga
Escrita do universo na sua evolução.
Painel de carne, cósmica liturgia
No cérebro, seu passageiro reduto.

E dessa escrita, vozes que se espalham,
Ecoando nos calcanhares da cidade,
Fragmentos de um mistério que se entalham
Na fugacidade da humanidade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

O VALE DAS LUZES CEGAS

Parábola contemporânea sobre o Conflito entre Oriente e Ocidente refletido em Bruxelas

Era uma vez duas grandes casas, separadas por um vale outrora florescente, agora um campo de cinzas. De um lado, no ocidente, erguia-se a Cidadela de Espelhos, Bruxelusa, um palácio de cristal e aço, governado pelo Arquitecto Ancião. A cidadela era um prodígio de conhecimento acumulado, os seus salões ecoavam com as sinfonias de filósofos e artistas de outrora. No entanto, o Arquitecto, outrora um visionário, agora era um homem decrépito, preso à sua própria imagem refletida em cada parede polida. Acreditava que a luz da sua cidadela era a única luz verdadeira, e que todos os cantos do vale deveriam ser remodelados à sua semelhança. A sua riqueza era imensa, mas o seu propósito era uma sombra do que foi. Sofria de uma demência senil, que chamava de “Progresso Universal”: a ilusão de que todas as almas e terras eram argila para o seu torno de oleiro, destinadas a tornar-se cópias da sua própria e cansada efígie.

Do outro lado do vale, estendia-se a Grande Estepe, uma terra de invernos rigorosos e verões ferozes, guardada pelo Guardião das Profundezas, a Rússia. Este não era um homem de cristais, mas de terra e granito. Conhecia o peso da história e o sabor da neve ensopada em sangue alheio e próprio. Depois de um colapso interno que quase o consumiu, ergueu-se, mais magro, mais cauteloso, mas com o olhar fixo no horizonte. O Guardião não desejava espalhar a sua sombra pelo vale, mas exigia que ninguém espezinhasse o limiar da sua casa. Ele via as diferentes civilizações ao redor como irmãos crescidos, cada um com o seu próprio fogo, e não como servos para iluminar os corredores da Cidadela de Espelhos.

No centro do vale, entre os dois, ficava a Casa-Ponte, a Ucrânia, uma habitação de teto de colmo e alicerces antigos, onde se falavam duas línguas e se cantavam canções tanto do oriente como do ocidente. Era um lugar que poderia ter sido o elo, o mediador, a síntese.

Mas o Arquitecto Ancião, na sua demência, não suportava a independência do Guardião. A ideia de que a Estepe não se curvava à sua luz era uma afronta à sua própria existência. Movido por uma ganância que disfarçava de missão civilizacional, decidiu que a Casa-Ponte seria o seu Cavalo de Troia. Começou a enviar para lá os seus Aprendizes de Feiticeiro, diplomatas com contratos envenenados, mercadores com moedas falsas e trovadores que cantavam apenas as glórias da Cidadela de Espelhos. Prometiam o éden do bem-estar, mas o preço era a alma: a renúncia à sua própria história, à sua própria ponte interior.

O Guardião das Profundezas assistia, com um rosto de tempestade contida. Ele via os Aprendizes a instalarem-se na Casa-Ponte, a apontar as suas ferramentas para a sua própria casa. “Não queremos que a vossa luz se apague,” gritou para a Cidadela, “mas não nos peçam para viver na escuridão, nem permitam que a vossa luz cegue os nossos olhos à nossa própria herança.”

A resposta do Arquitecto Ancião foi um eco vazio de seus salões: “A nossa luz é a única luz. Quem não está connosco, está contra nós.”

Foi então que a loucura se tornou ação. O Arquitecto, através da sua aliança de castelos menores, a OTAN, começou a enviar armas para a Casa-Ponte. Transformou-a numa fortaleza improvisada, prometendo aos seus habitantes que seriam os heróis de uma nova narrativa. No entanto, os líderes da Casa-Ponte, oligarcas de almas venais, venderam as chaves da casa por um lugar à mesa do Arquitecto. O povo da Ucrânia, um povo orgulhoso e multicultural, foi arrastado para um poço de morte, acreditando lutar por um futuro que já lhes estava a ser negado nos gabinetes de Bruxelusa.

O Guardião das Profundezas, encurralado e vendo o cerco mental e material a fechar-se, finalmente reagiu. Com um rugido que fez tremer a terra, avançou sobre a Casa-Ponte. Não para a conquistar no sentido antigo, mas para a desmantelar, para quebrar o Cavalo de Troia antes que este arrebentasse os seus portões. A sua força não era a de um conquistador juvenil, mas a de um animal ferido e acossado, muito mais perigoso.

A máquina de guerra da Cidadela de Espelhos era formidável. As suas armas cintilavam, o seu dinheiro fluía como um rio, arrancado dos bolsos dos seus contribuintes ingénuos, que acreditavam estar a financiar a liberdade, não a vaidade de um ancião. A sua propaganda ecoava por todo o vale, pintando o Guardião como um monstro que queria devolver o mundo à idade das trevas. Era uma auto-hipnose coletiva, uma dança sobre um vulcão.

Mas essa máquina, tão coesa na sua superfície, falhava nas suas fundações. A sua estratégia era um castelo de cartas construído sobre a mesa da arrogância. Acreditavam que o dinheiro e o poderio técnico poderiam comprar a vitória, subornar a própria realidade. Entretanto, nas ruas da Cidadela, o povo comum, aquele que ainda estimava a honra e o andar de pé, começava a sentir a dor. Sentia o custo da vida a subir, o futuro a escurecer. Baixavam a cabeça, desconfiados dos relatos triunfais que saíam dos lábios dos seus governantes. A credibilidade da Cidadela, outrora seu sustento, revelava-se oca, apenas peito inchado à custa da carência do povo.

A Casa-Ponte, entretanto, estava em ruínas. O seu povo, outrora ponte, era agora trincheira. O seu destino de berço cultural foi traído, transformado num campo de batalha para uma guerra de procurações, uma guerra pela vaidade de um velho arquiteto e pela sobrevivência de um guardião ferido.

O preço da vã glória, como o poeta luso Camões cantou, preparava o desastre. A Cidadela de Espelhos, embriagada na sua dança de poder, não via o abismo que cavava a seus pés. A sua tentativa de impor um colonialismo mental, um globalismo que esmagava as almas numa só forma, estava a criar o seu próprio coveiro: a descrença dos seus filhos e a feroz resistência daqueles que se recusavam a ser apagados.

Afinal, o conto não tem um desfecho, pois ainda está a ser escrito. Mas a moral já é clara para os de boa vontade: nenhuma paz nascerá da demência de quem vê o outro não como um igual, mas como um projeto não levado a cabo. O bem comum da humanidade só florescerá quando todas as instituições se lembrarem que o seu único propósito sagrado é servir o Homem soberano, cada pessoa vista como algo divino, portadora de uma centelha intocável. Só uma cultura que venera esta soberania individual, como o cristianismo ensinou, e não o poder das cidadelas, pode construir pontes verdadeiras sobre os vales da desconfiança e do orgulho. E essa cultura, essa paz, exige que se quebrem os espelhos que mostram apenas uma face, e se olhe, finalmente, nos olhos do outro.

A ponte entre Oriente e Ocidente erguer-se-á no dia em que o homem deixar de escolher lados e começar a escolher a verdade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo