A VOZ QUE NÃO SE APAGA (1)

Lisboa, dezembro de 2024. No Parque das Nações, onde a Expo outrora prometeu um mundo sem fronteiras, ergue-se agora um cubo de vidro fumado. Dentro, cinco pessoas sentam-se à volta de uma mesa redonda; não há cabeceira, mas o poder sabe sempre onde se sentar.

No centro, um ecrã projecta uma fotografia a preto e branco: homens de uniformes diferentes, chapéus de aço postos de lado, trocam cigarros num terreno de ninguém coberto de geada. O som de Stille Nacht, em alemão e inglês, preenche o espaço, numa gravação memória de 1914. A voz arranha-se na gravação antiga, mas ainda se ouve o impossível: inimigos a tornarem-se homens.

Catarina é a primeira a falar. Tem sessenta e tal anos, cabelo grisalho preso num coque frouxo, mãos que já lavaram demasiadas feridas. Trabalha numa IPSS no Martim Moniz. A cruz que traz ao peito é de madeira barata.
“Eles ouviram qualquer coisa naquela noite. Uma coisa que não estava nas ordens, que não vinha dos generais. Vinha de dentro, da gruta do coração. Cantaram e lembraram-se de que, antes de serem soldados, eram homens, filhos, pais, irmãos.” Catarina faz uma pausa. “Hoje, o Natal é o Continente a bombar músicas em Dezembro. A paz é um anúncio da EDP. A voz do poder aprendeu a falar mais alto do que o coração. E nós? Continuamos a mandar os nossos miúdos morrer longe de casa, agora em missões em defesa da guerra dos outros.”

Tomás Almeida, general reformado, agora é consultor de segurança (que é como quem diz: vende medo por medida), acende um cigarro eletrónico. Sopra vapor para o ar, nem o fumo é sério.
“Bonito, Catarina. Muito bonito, esta de sentimentos. Mas aqueles soldados podiam ter perdido a guerra naquela noite. A paz verdadeira não se canta, constrói-se. Com força, com fronteiras, com quem está disposto a defendê-las.” Com decisão, aponta o cigarro para o ecrã. “São os fortes que determinam os períodos de paz. Aquilo foi indisciplina. Hoje temos drones, vigilância, psicólogos militares. Garantimos que os soldados não fraternizam com quem deve ser abatido.”

Elias é metalúrgico da Lisnave. Tem mãos grandes, nós nos dedos, olhos pequenos, mas atentos. Representa o sindicato na comissão europeia dos trabalhadores do aço.
“O senhor general vê indisciplina. Eu vejo outra coisa: homens que perceberam que estavam a ser enganados. A ganância é sempre a mesma; os ricos mandam, os pobres sangram. Ontem foi na Jugoslávia, no Afeganistão, hoje é na Ucrânia, amanhã é em África, mas o patrão é o mesmo: o lucro. Os mesmos que hoje usam o PIB, suado pelo povo, para comprar morte, em vez de semear vida. E se pegássemos nesse dinheiro todo das armas e o metêssemos em hospitais? Em escolas? Em salários que dessem para viver?”

Ao lado dele, Leonor, de trinta e poucos, jornalista livre que já não acredita em redações, mexe no tablet. A cena de 1914 ganha vida, os soldados movem-se em câmara lenta, partilham chocolate, sorriem.
“Sim, eles foram enganados. O ódio foi a ferramenta; disseram-lhes: ‘Nós somos os bons; eles, os maus’. A mesma narrativa corre hoje, General, nas suas narrativas estratégicas. E se, em vez de instrumentalizar o povo para a guerra, o instrumentalizássemos para a paz? Em vez do serviço militar obrigatório, houvesse um serviço social obrigatório em que cada uma podia exercer o seu serviço onde a necessidade o chamasse. Um ano a construir casas, a ensinar crianças, a plantar árvores. Um ano a conhecer o ‘inimigo’ antes de o matar. Aprender a construir pontes, não trincheiras, a cuidar da terra e não arrasá-la. A voz do povo, quando livre do veneno da propaganda, é a voz de Deus. E Deus, naquele campo gelado, cantou, Noite feliz…”

Tomás riu-se, com um som seco.
“Deus? A voz do povo é volúvel, emocional. Precisa de direção. Sem divisão, sem o “nós contra eles”, não há coesão nacional, não há identidade a defender. O diabo, como dizem, é aquele que divide. Mas às vezes, a divisão é necessária para afirmar quem somos.”

Catarina ergue-se e a sua sombra projetava-se sobre os soldados holográficos.
“Não! O diabo é exatamente aquele que divide para se afirmar! Deus une no canto, no reconhecimento do outro como irmão. Aquele momento de 1914 foi uma brecha no projeto diabólico da guerra. Os comandantes, sim, esses instrumentos do poder distante, apagaram-na. Proibiram a paz. Porque a paz verdadeira desarma os poderosos.”

A quinta pessoa não falou ainda. Rui é historiador, apenas observa. De cabelo desgrenhado, óculos tortos, silêncio de arquivo, representa a memória. Rui toca no tablet e o ecrã muda.
Agora vêem-se telegramas: “Esta fraternização é traição.” “Qualquer oficial que permita contacto será julgado.” E depois, imagens de 1915: a lama, os mortos, o gás mostarda a devorar pulmões.

Ninguém fala, um silêncio pesado cai sobre a sala!

Elias rompe o silêncio, com a voz rouca de tabaco e fábricas:
” Alemães, ingleses, franceses enterraram os mortos juntos, com as próprias mãos. Reconheceram-se ao aceitarem a humanidade comum que os motivava a agir assim. É esse o caminho: Nivelar as trincheiras da Ucrânia, da Rússia, da Europa inteira, e sobre elas erguer torres de paz. Fábricas de esperança.”

Leonor inclina-se para a frente:
“Mas porquê a guerra, afinal? O espírito de 1914 não morreu. “A guerra destrói a esperança antes mesmo de destruir os corpos. Mata o futuro antes de matar as crianças.”

Rui mexe de novo no tablet. Aparecem imagens de agora: manifestações a favor da paz, voluntários de nações inimigas ajudando civis, jovens de ambos os lados de uma fronteira imaginária a plantar árvores juntos. São fragmentos, pequenas tréguas natalícias invisíveis para os grandes noticiários empenhados em justificar a cultura bélica.

Catarina fecha os olhos e começa a cantar, baixinho:

“Noite feliz, noite de paz…”

A voz é frágil, cansada, mas não quebra.

Tomás olha para ela. Quer dizer qualquer coisa, mas não diz. Elias murmura a melodia. Leonor sorri, com os olhos marejados. E Rui, sempre calado, move os lábios.

O Historiador aumenta o volume do canto original de 1914. As duas canções, a do passado e a do presente, entrelaçam-se, criando uma harmonia estranha e comovente. Por um instante, as divisões ideológicas parecem trincheiras a serem aterradas.

A reunião não chega a lado nenhum. As decisões de guerra seguirão o seu curso nos corredores do poder, enquanto o povo não conseguir ter Voz. As armas continuarão a ser vendidas. As guerras terão financiamento. Os discursos inflamados justificando a guerra continuarão a correr nos meios de comunicação e nas redes sociais como veneno doce.

Mas naquela sala, durante três minutos e quarenta segundos, uma verdade ressuscitou: a paz não é um tratado. É um canto: Noite feliz, Adeste Fideles!

É um canto que nasce onde as ordens não chegam e que reconhece no rosto do inimigo o mesmo medo, a mesma saudade de casa, a mesma fome de sentido.

O ecrã apaga-se. A sala fica vazia.

Mas lá fora, no Martim Moniz, um grupo de jovens, portugueses, brasileiros, guineenses, angolanos, ucranianos, russos e iranianos, acende velas. Cantam “Noite Feliz” em quatro línguas ao mesmo tempo. Era um “Noite Feliz” um pouco desafinado, imperfeito, mas sinal de uma imperfeição redentora. É pouco, mas é começo.

A paz é o acto de resistência através da voz humana que se recusa a calar. Resistência pressupõe hombridade e preparação para não se deixar arrastar pelo vento ciclónico militarista que parece até arrancar e arrastar os “cedros do Líbano”.

Dedico este conto:

Ao meu país, que já foi império e hoje mal é casa.
Aos que cantam quando mandam calar.
Ao Natal que ainda pode vir.

António da Cunha Duarte Justo
Lisboa, Inverno de 2024

Pegadas do Tempo:

(1) A Trégua de Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial, onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em partes da Frente Ocidental.
O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e cantaram “Stille Nacht”. Os aliados responderam cantando “Silent Night” em inglês. Encorajados, ambos os lados saíram desarmados para a “terra de ninguém”, onde confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus mortos e até jogaram futebol improvisado.
Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em cartas, diários e relatos dos próprios soldados.
Em outubro de 2024, após milhares de mortos, a guerra na Ucrânia entrou numa nova fase e no que os analistas descrevem como o momento mais perigoso até agora. Esta preocupação que angustia o meu espírito e espíritos atentos motivou-me a fazer este conto.

QUANDO O CANTO VENCEU O CANHÃO (1)

Naquela noite de consoada, a neve não escolheu lado.

Caiu sobre capacetes alemães, sobre botas inglesas, sobre o medo francês e sobre o silêncio russo que ainda não chegara ali. A neve não conhecia fronteiras, nem mapas, nem ordens superiores.

Era a noite de 24 de dezembro de 1914.

Nas trincheiras alemãs, um soldado jovem, de nome Friedrich, começou a cantar. Não cantava por coragem, nem por desafio. Cantava porque já não suportava o ruído da guerra dentro do peito. Cantava porque por baixo da sua farda ainda ecoavam no seu coração os ecos das cancões de natal e na retina a imagem do Anjo que anunciava “Paz na Terra aos homens de boa vontade”:

Stille Nacht, heilige Nacht… (Noite feliz, noite santa…)

A canção atravessou o ar gelado do campo de batalha como uma vela acesa no meio do inferno. Do outro lado, um inglês, o Thomas, reconheceu a melodia antes mesmo de reconhecer o inimigo e também ele entoou.

Silent night, holy night…

As armas hesitaram. O ódio, treinado e ensinado, não sabia o que fazer com aquela língua comum que nenhuma propaganda conseguira destruir.

Os soldados saíram lentamente das trincheiras, como crianças que aprenderam a andar de novo. No terreno neutro, coberto de geada que naquela noite se tornou terreno humano, trocaram pão, cigarros, nomes, fotografias de filhos que ainda não sabiam o que era uma guerra.

Enterraram juntos os mortos.

Foi então que, cem anos depois, Teófilo, um professor desejoso de uma cultura da paz, fechou a página do jornal alemão HNA onde se fazia referência ao acontecimento e suspirou:

“Se eles conseguiram cantar na guerra, por que nós não conseguimos cantar na paz?”

Na sala estavam outros.

Miguel, o sindicalista, apoiou os cotovelos na mesa e protestou:

“Hoje gastamos o PIB em armas que não criam pão. Se distribuíssemos fábricas como se distribuem batalhões, criaríamos riqueza onde hoje só há desespero e nos povos que designamos de subdesenvolvidos.”

“Utopia”, interrompeu Germano, defensor da guerra. “A guerra sempre fez avançar a história. Tecnologia, indústria, poder. Sem conflito, não há progresso.”

A diaconisa Clara, com um lenço simples sobre os ombros, falou baixinho, mas a sua voz atravessou a sala e o olhar de todos:

“O Natal não é progresso. É encarnação. Deus não veio em exércitos, veio na fragilidade. A guerra promete futuro matando o presente.”

Germano riu-se:

“Palavras não detêm tanques.”

Teófilo respondeu:

“Mas canções já detiveram canhões.”

Houve silêncio. Um silêncio frio semelhante ao de 1914.

Clara levantou-se e começou a cantar, com voz trémula:

“Noite feliz…”

Ninguém a acompanhou de imediato. Estavam desacostumados. O mundo moderno ensinara-lhes a gritar, não a cantar juntos.

Mas Miguel, de voz mais forte acompanhou-a. Seguiu-se Teófilo e até Germano, desconcertado, murmurou a melodia que aprendera na infância.

Naquele instante, compreenderam:

a voz do povo não instrumentalizado não divide, une.

E aquilo que divide, mesmo quando se chama progresso, carrega o nome antigo do diabo.

As trincheiras não desapareceram naquela noite.

Mas algo começou a ruir.

Talvez um dia, pensou Teófilo, as trincheiras da Europa, da Rússia, da Ucrânia e do mundo

sejam niveladas não por bombas, mas por vozes.

E talvez, então, a humanidade volte a cantar, não porque venceu, mas porque finalmente aprendeu a viver sem inimigos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Natal de 2025

(1) A Trégua de Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial, onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em partes da Frente Ocidental.

O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e cantaram “Stille Nacht”. Os aliados responderam cantando “Silent Night” em inglês. Encorajados, ambos os lados saíram desarmados para a “terra de ninguém”, onde confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus mortos e até jogaram futebol improvisado.

Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em cartas, diários e relatos dos próprios soldados.

O PALCO DO PODER ENTRE A COROA E OS VOTOS (1)

Mudou-se o nome da coroa,
não o brilho.
O rei aprendeu a chamar-se presidente
e desceu do trono
apenas para subir ao ecrã.

Disseram ao povo:
agora és soberano.

E entregaram-lhe uma urna,
caixa sagrada
onde cada um deposita a sua voz
para nunca mais a reclamar.

A soberania individual
entra dobrada em papel,
selada,
arquivada
no silêncio solene do voto.
Sai de lá dissolvida,
anónima
sem direito a recurso.

O povo vota.
E ao votar, ausenta-se.

Ergue a cabeça como lhe ensinaram,
não para escolher o caminho,
mas para reconhecer a aura
com nova gramática.

Já não há sangue azul,
há protocolo e mandato.
Já não há corte,
há gabinete e plenário.
O gesto é o mesmo:
mão que promete,
voz que absolve,
olhar que nunca responde.

O eleito sobe
e com ele sobe a imunidade.
Quanto mais alto o cargo,
mais leve a culpa.
A responsabilidade cai,
não acompanha a ascensão.

O poder perdeu a coroa
para ganhar inviolabilidade.
E o povo ganhou um nome antigo
Cidadão
para continuar sem rosto.

Chamam-lhe democracia
como quem muda a moldura
e mantém o retrato.
Há eleições como havia aclamações,
há discursos onde antes havia éditos,
há fé civil
onde antes havia fé divina.

Os anjos reciclam as asas,
os arcanjos mudam de fato,
e o povo continua chão
agora constitucional.

Figura central do quadro,
mas apenas como primário da pintura.
Autor do poder,
mas excluído da autoria dos seus actos.

E assim, o cidadão,
com a cabeça erguida por decreto
e a soberania arquivada por rito,
aprendeu a arte mais moderna
e mais antiga:

entregar-se inteiro
em nome da escolha
e assistir, liberto de si,
à irresponsabilidade dos eleitos!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Escrevi estes versos no crepúsculo dourado de uma era politicamente anémica, onde os nossos digníssimos governantes se contorcem como marionetas de um teatrinho particularmente reluzente. Oh, que esplendor, ver-se figurinos mais que eleitos! Talvez banhados por uma luz celestial ou quiçá por um brilho menos divino, oriundo de certas bebidas modernas ou das lentes enviesadas das câmaras de televisão. Quem saberá? A fronteira entre a inspiração sublime e a pura extravagância é, afinal, tão ténue como a linha que separa o discurso político do murmúrio néscio.

Mas eis o facto, cru e deliciosamente patético: quando se reúnem no sagrado palco de Bruxelas, erguendo as mãos em gestos coreografados, a Europa inteira mergulha num estado de sonambulismo colectivo. Que espetáculo! Não são governantes, não, são figurinos de encomenda, manequins de gravata, arautos de um vazio retórico tão amplo que nele cabem, confortavelmente, as esperanças de um povo agora reduzido a plateia. E nós, pobres mortais, aplaudimos ou bocejamos perante a mesma comédia repetida, enquanto eles, lá no alto, tecem os fios do nosso delírio comum.

Que época sublime, irónica, e dolosa figura fazem os nossos figurinos à frente das capitais!

MUNDO INVERTIDO (1)

A mão que age na sombra não constrói:
tece miragens, vende luz fingida.
Do que é nobre e sério pouco resta,
pois a ética apodrece à vista erguida.
Segue a multidão, d’olhos cerrados,
o refrão gasto de um credo conveniente,
e na caverna dos gestos ensaiados
adora um sol elétrico, fluorescente.

Que luz é esta, pálida e voraz,
que brilha á custa do próprio escuro?
É o ego, centro fixo de si mesmo,
astro falso num céu inseguro.
Louva-se a queda alheia como troféu,
confunde-se aplauso com verdade;
é pavão de praça, abrindo o véu
da vaidade travestida de autoridade.

Ergue-se o vazio em penas e espelhos,
e quem observa participa do jogo.
O mundo gira sobre os mesmos joelhos:
o real é fábula, o sonho é pouco.
E assim se erige, torre de quimeras,
barco sem rumo, à deriva no ar,
onde a verdade é moeda de falcatruas ligeiras
e o delírio aprende a governar.

Ó loucura que bordas o mundo
com fios arrancados da razão:
o homem troca o que é profundo
por máscaras de aceitação.
E no teatro incessante da aparência,
cada um atua e se vigia,
num palco onde a sombra dita a sentença
e a luz, cansada, já não guia.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Nota do Contexto para o Poema

Fiz o poema sob a atmosfera política e emocional gerada pela decisão do Conselho Europeu de aprovar um empréstimo de 90 mil milhões de euros à Ucrânia, destinado ao financiamento bélico para o período 2026-27. É tão triste verificar-se como a política se mantem tão arredada do bom senso popular!

Um elemento central para reflexão é a posição soberana da Hungria, da República Checa e da Eslováquia, que, demonstrando um sentido de responsabilidade perante os seus cidadãos, se recusaram a endossar a manobra das principais potências da UE. Esta manobra visava socializar os custos da guerra, distribuindo a dívida e os seus encargos futuros por todos os Estados-membros.

Quanto a Portugal estima-se que a sua parcela deste mecanismo oscile entre 1,7 e 3,3 mil milhões de euros, valor pelo qual o país contrairá dívida e pagará juros. Esta carga é assumida com o pressuposto tácito e amplamente partilhado de que a Ucrânia nunca conseguirá reembolsar o empréstimo, transformando-o, na prática, numa transferência definitiva a cargo dos contribuintes europeus e tudo isto feito à margem dos parlamentos.

Europa estéril, semeia dívida em vez de paz.
Ouro de Bruxelas compra uma guerra sem fim,
enquanto o sangue dos filhos rega campos alheios.
Os burocratas dançam nas sombras do poder,
e a paz é uma página em branco no calendário da história.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10526

ENTRE A SOBERANIA ISLÂMICA E A SOBERANIA CONSTITUCIONAL

Como o globalismo liberal e as migrações transnacionais desafiam o modelo constitucional do Estado-nação

A evolução dos fluxos migratórios transnacionais ao longo do século XX e início do século XXI produziu transformações profundas nas sociedades europeias. As primeiras grandes vagas migratórias do pós-guerra, nomeadamente as dos Gastarbeiter, inscreveram-se num quadro funcional e economicista temporário: tratava-se de suprir necessidades económicas concretas de reconstrução industrial, pressupondo-se um regresso progressivo aos países de origem. O modelo subjacente era assimilacionista ou, no mínimo, integrador, ainda que imperfeito, e assentava numa expectativa de interculturalismo gradual.

As vagas migratórias contemporâneas diferem qualitativamente. São estruturalmente transnacionais, duradouras e enquadradas por uma ideologia de globalismo liberal que relativiza as categorias clássicas de soberania, fronteira, cidadania e pertença nacional. Simultaneamente, a União Europeia encontra-se num processo contínuo de transferência de competências soberanas dos Estados-nação para instâncias supranacionais, criando um duplo movimento de diluição: por um lado, da soberania política; por outro, da homogeneidade cultural mínima que historicamente sustentou a coesão constitucional europeia.

Estas duas dinâmicas convergentes, globalização migratória e integração supranacional, geraram um desconforto social crescente. Tal desconforto manifesta-se na perceção de abdicação cultural e social por parte do Estado, que parece incapaz de articular uma narrativa coerente de cidadania, pertença e futuro comum. Aqui os políticos europeus em vez de se abrirem a uma solução dos problemas que eles mesmos criaram às populações autóctones, tentam desviar a atenção dos mesmos recorrendo a discursos abusivos e antidemocráticos em torno do populismo e numa atitude dogmática perante a crítica americana à maneira de agir da política da EU.

Multiculturalismo, guetização e o fim do interculturalismo esperado

A presença islâmica na Europa, particularmente visível em países como a Alemanha, onde residem cerca de seis milhões de muçulmanos, caracteriza-se em muitos contextos por uma forte concentração territorial e social. A formação de grandes guetos urbanos, associados a um multiculturalismo fechado, tem frustrado a expectativa intercultural que marcou o período dos Gastarbeiter. Em vez de uma interação transformadora entre culturas, tem-se afirmado uma coexistência paralela, com sistemas normativos, simbólicos e identitários distintos.

Este fenómeno coloca desafios não apenas sociológicos, mas profundamente constitucionais. O conceito europeu de Estado, fundado na tríade pessoa, território e constituição, entra em tensão quando parcelas significativas da população estruturam a sua identidade cívica a partir de uma pertença religiosa transnacional, cuja referência normativa não é a constituição do Estado de residência, mas a Ummah, entendida como comunidade islâmica global.

Cidadania europeia e cidadania islâmica: conflito de antropologias jurídicas

No constitucionalismo europeu, a cidadania articula elementos de pertença (direito de sangue e/ou de solo) com direitos e deveres civis e políticos universais, assentes numa conceção de dignidade humana inerente a cada indivíduo. Esta matriz, historicamente influenciada por uma antropologia cristã secularizada, reconhece a dignidade como pré-política e inata.

Em contraste, a cidadania islâmica, enquanto conceito normativo, funda-se na Sunnah e na trilogia Corão-Sharia-Ahadith. Os direitos e deveres derivam da pertença religiosa à Ummah, sendo os princípios de dignidade, igualdade e justiça plenamente aplicáveis apenas aos membros dessa comunidade. Trata-se de uma conceção coerente no seu próprio sistema, mas não universalista no sentido ocidental. Daí a guerra aberta de grupos islâmicos que se sabem cobertos pela doutrina islâmica contra o “modernismo ocidental e cristão”, mas que a sociedade europeia qualifica de extremistas, numa de se enganarem a si mesmos!

Este desfasamento antropológico e jurídico gera conflitos estruturais. Não se trata apenas de práticas culturais distintas, mas de modelos constitucionais incompatíveis no plano dos fundamentos. A exigência de aplicação da Sharia em contextos europeus, como se observa no Reino Unido, onde operam tribunais islâmicos paralelos em matérias civis, questiona diretamente o monopólio estatal do direito e da jurisdição, elemento essencial da soberania moderna e que os políticos oportunisticamente tomam como dado aceite.

O embaraço político e o recurso ao eufemismo

Perante esta realidade, elites políticas e peritos europeus enfrentam um dilema comunicacional e normativo. A dificuldade em nomear claramente as tensões existentes conduz frequentemente ao uso de eufemismos e narrativas simplificadoras. O resultado é um défice informacional que afeta tanto as populações autóctones como as comunidades migrantes, criando uma paz aparente sustentada por desinformação tácita.

A emergência de manifestações públicas a favor de um califado em cidades europeias, como Hamburgo, revela que o problema não é meramente teórico. No entanto, o debate permanece frequentemente interdito pelo receio de estigmatização, o que paradoxalmente impede a formulação de soluções democráticas e juridicamente sólidas, além de conduzirem a uma atitude política e mediática hipócrita e de má-fé em relação ao futuro.

Inteligência Artificial como apoio à análise do fenómeno

O saber abrangente da Inteligência Artificial poderia oferecer uma contribuição relevante na análise da problemática em via. A IA contemporânea, especialmente nos domínios da ciência de sistemas complexos, análise de redes e modelação preditiva, demonstra que sociedades são sistemas adaptativos não lineares. Pequenas alterações nos parâmetros normativos, por exemplo, no conceito de cidadania ou no reconhecimento jurídico de sistemas paralelos, podem gerar efeitos emergentes imprevisíveis a médio e longo prazo.

Além disso, o emprego da IA poderia evidenciar os limites das narrativas ideológicas simplificadas. Modelos baseados em dados mostram correlações entre guetização, ausência de mobilidade social, radicalização identitária e enfraquecimento da confiança institucional. Ignorar estas variáveis por razões políticas ou meramente de interesse económico equivale a treinar um sistema com dados enviesados: o resultado será inevitavelmente disfuncional, vindo-se a criar problemas previsíveis como os acontecidos no território da antiga Jugoslávia.

Dos dados algorítmos conclui-se que sistemas normativos concorrentes dentro do mesmo espaço jurídico reduzem a coerência do “modelo constitucional”, levando à fragmentação da autoridade. Um Estado que abdica da clareza normativa comporta-se como um sistema sem função-objetivo definido.

Soberania em transformação e o risco de um novo tipo de Estado

A soberania, entendida modernamente como elemento constitutivo do Estado, perde densidade quando subordinada exclusivamente à lógica económica do globalismo liberal. A cultura autóctone, longe de ser um resíduo folclórico, funciona como infraestrutura simbólica da coesão social. A sua erosão sem substituição funcional coloca em causa o próprio povo enquanto sujeito político.

A Europa encontra-se, assim, num momento de transição para uma forma ainda indefinida de Estado. Esta transição exige uma análise comparativa rigorosa entre o conceito europeu de nação e o conceito islâmico de Ummah, entre constitucionalismos seculares e religiosos, e entre modelos de soberania territorial e comunitária.

Integração, cidadania e honestidade política

A questão central permanece: como articular imigração, integração e cidadania sem exigir uma transformação radical apenas aos cidadãos autóctones, preservando intactas visões do mundo incompatíveis com o constitucionalismo europeu? Esta assimetria normativa corrói a legitimidade democrática e alimenta ressentimentos mútuos.

Só uma política séria, baseada num interculturalismo exigente e não num multiculturalismo acrítico, poderá preparar uma sociedade europeia verdadeiramente humanista e pacífica. Tal política exige coragem intelectual, análise interdisciplinar (convergência de saberes a nível de direito, sociologia, ciência política, ciência de dados, IA) e rejeição da hipocrisia discursiva.

Enquanto o Islão for tratado como tabu analítico, e não como objecto legítimo de estudo comparado, a Europa continuará a adiar soluções, criando situações de Soberania Islâmica em desafio com a Soberania Constitucional. A inteligência humana e concretamente a tradição europeia ensina que problemas não explicitados não podem ser resolvidos; devido à incúria política e ao oportunismo partidário, apenas se acumulam até atingirem pontos de rutura.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo