O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

Um povo com medo aceita quase tudo.
Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso
não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

O medo inato: dom ambíguo da sobrevivência

Nem todo o medo é patológico ou manipulável. Há um medo originário, inscrito na carne, anterior à cultura e à ideologia. É o medo que protege: diante do abismo, do fogo, do predador, da ameaça real. Ele prepara o corpo para lutar ou fugir, aguça os sentidos, preserva a vida. Sem ele, não haveria humanidade.

Este medo é pré-moral: não é bom nem mau; é necessário. O problema começa quando o medo deixa de responder a perigos concretos e passa a ser alimentado por cenários, narrativas e projeções. O instinto torna-se imaginação ansiosa. A defesa transforma-se em suspeita permanente. Deste modo, uma emoção saudável pode ser colonizada.

O medo da imagem: de ser visto, julgado, rejeitado

Há um medo menos visível e talvez mais profundo: o medo do olhar do outro. O receio de não corresponder, de perder estatuto, de ser julgado pela sociedade. Este medo toca a nossa identidade e a imagem que construímos de nós próprios.

Aqui, o medo já não protege o corpo, mas protege uma máscara.
Tememos: perder reconhecimento, ser desclassificados, deixar de pertencer.

Este medo social cria conformismo, silêncio, cumplicidade passiva. Ele explica por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente sabem ser frágeis: discordar custa mais do que obedecer e pensar faz doer.

Existencialmente, este medo revela uma fragilidade profunda: quando a dignidade depende do aplauso, qualquer ameaça simbólica se torna insuportável.

O medo teológico: da confiança quebrada à idolatria da segurança

Na linguagem bíblica, o medo surge quando a confiança ontológica se rompe. Não é Deus que provoca o medo; é a perda da relação. A partir daí, o mundo torna-se perigoso.

Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro ou na justiça, ela substitui Deus pela segurança. E a segurança, quando absolutizada, torna-se ídolo. Tudo o que ameaça esse ídolo é demonizado.

O estrangeiro, o diferente, o dissidente deixam de ser pessoas: tornam-se símbolos do caos. O medo já não pergunta “o que é verdadeiro?”, mas “o que me protege?”.

O medo político-crítico: governa-se melhor quem treme

As elites políticas, económicas ou mediáticas conhecem bem esta dinâmica. O medo é uma ferramenta de governo porque: simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excpecionais.

Em contextos de guerra geopolítica, como no conflito na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções: medo do inimigo externo, medo do colapso económico, medo do isolamento e medo de questionar narrativas dominantes.

Não se trata de negar a complexidade nem a gravidade real da guerra. Trata-se de reconhecer que o medo, quando não é pensado, torna-se argumento político. Ele transforma cidadãos em espectadores emocionais, prontos a aceitar sanções, rearmamentos, censuras ou sacrifícios sociais sem debate proporcional.

O medo deixa de ser reação a um perigo e passa a ser condição permanente de governo.

Pensar o medo: o gesto verdadeiramente subversivo

O problema não é sentir medo. O problema é não o interrogar.

Pensar o medo é perguntar: é proporcional ao perigo? Quem ganha com ele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe?

Quem pensa o seu medo não se torna violento. Torna-se livre. E a liberdade é sempre desconfortável para quem governa através da ansiedade.

Parábola do vale enevoado

Havia um vale cercado por montanhas. Durante gerações, as pessoas atravessavam-no para chegar ao outro lado, onde havia água e árvores. Um dia, uma névoa começou a descer lentamente.

No início, ninguém se preocupou. Mas alguns disseram:
E se houver monstros na névoa?”

Outros começaram a ouvir ruídos que sempre existiram, mas que agora pareciam ameaçadores. Um grupo construiu uma torre e declarou:
Só nós vemos o que está escondido. Sigam-nos e estarão seguros.”

A cada dia, a névoa parecia mais densa, não porque aumentasse, mas porque ninguém ousava atravessá-la. As crianças nasceram a ouvir que o vale era mortal. Nunca tinham visto monstros, mas tinham aprendido a temê-los.

Um idoso, que ainda se lembrava do caminho, disse um dia:
A névoa não mata. O que mata é esquecer para onde se ia.”

Poucos o ouviram. Mas os que o seguiram atravessaram lentamente o vale. Descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. Do outro lado, viram algo curioso: a torre continuava de pé, mas sem ninguém dentro. Ela só funcionava enquanto todos acreditavam que era necessária.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

RESUMO:

O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

O medo humano manifesta-se em múltiplas dimensões que vão do instinto biológico à manipulação política. Compreender esta complexidade é essencial para distinguir entre proteção legítima e submissão instrumentalizada.

O medo como instinto vital

O medo originário é um mecanismo de sobrevivência necessário, inscrito biologicamente antes de qualquer construção cultural. Ele protege-nos de perigos reais e prepara o corpo para responder a ameaças concretas. Este medo é pré-moral e funcional. O problema surge quando deixa de responder a perigos objetivos e passa a ser alimentado por narrativas, cenários projetados e imaginação ansiosa, transformando-se num estado permanente de suspeita.

O medo social e a tirania da imagem

Existe um medo mais subtil mas igualmente poderoso: o receio do julgamento alheio. Tememos perder reconhecimento, estatuto e pertença social. Este medo já não protege o corpo, mas sim uma máscara identitária que construímos. Ele gera conformismo, silêncio e cumplicidade passiva, explicando por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente reconhecem como frágeis. Discordar exige mais coragem do que obedecer, e o pensamento crítico torna-se doloroso quando a dignidade depende do aplauso externo.

A dimensão teológica: da confiança à idolatria

Na perspectiva bíblica, o medo surge quando se rompe a confiança ontológica fundamental. Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro e na justiça, substitui essas âncoras pela segurança absoluta, que se transforma em ídolo. O diferente, o estrangeiro e o dissidente deixam de ser pessoas para se tornarem símbolos do caos. O medo deixa de perguntar “o que é verdadeiro?” para apenas questionar “o que me protege?”.

O medo como ferramenta de poder

As elites políticas, económicas e mediáticas reconhecem o medo como instrumento eficaz de governo porque ele simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excecionais. Em contextos como a guerra na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções, transformando cidadãos em espectadores emocionais dispostos a aceitar sanções, censuras e sacrifícios sem debate proporcional. O medo deixa de ser reação pontual para se tornar condição permanente de governação.

Pensar o medo como acto de libertação

O verdadeiro problema não é sentir medo, mas não o interrogar. Pensar o medo exige perguntar: é proporcional ao perigo? Quem beneficia dele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe? Quem pensa criticamente o próprio medo não se torna violento, mas livre. E essa liberdade é sempre incómoda para quem governa através da ansiedade coletiva.

A parábola do vale enevoado

O autor conclui com uma parábola ilustrativa: num vale cercado por montanhas, uma névoa desceu e alguns começaram a falar de monstros invisíveis. Uma torre foi erguida por quem prometia segurança. As gerações seguintes cresceram temendo atravessar o vale, não pela névoa em si, mas pelas narrativas que a rodeavam. Um idoso que se lembrava do caminho ensinou que “a névoa não mata; o que mata é esquecer para onde se ia”. Os que ousaram atravessar descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. A torre permanecia de pé, mas vazia, funcionava apenas enquanto todos acreditavam na sua necessidade.

Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE

Medo, confiança e o sagrado da infância

O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.

A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.

O medo como experiência originária

Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta, prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.

Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde fantasia e realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.

A infância como lugar do sagrado

A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.

Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.

Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.

Uma memória: rezar no escuro

Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro: sombras, ruídos, imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas, de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.

Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo mudava: o espaço deixava de ser vazio, o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.

São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.

Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.

Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar. funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.

Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida

A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.

Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.

Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.

Quando a confiança desaparece, o medo governa

Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.

Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.

Acender a luz sem destruir a noite

A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.

A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O MEDO NO ÂMBITO TEOLÓGICO-FILOSÓFICO E EXISTENCIAL

O medo como matéria teológica: entre a queda e a idolatria

Na tradição bíblica, o medo surge muito cedo. A primeira vez que o ser humano diz “tive medo” (Gn 3,10) não é diante de um inimigo externo, mas diante de Deus e esse medo nasce da ruptura da relação, não da ameaça real. Teologicamente, o medo não é apenas uma emoção: é um sintoma de desconfiança ontológica. Quando a confiança fundamental se quebra, o mundo torna-se hostil.

O medo raramente é medo de Deus; é antes o medo de perder o lugar, o nome, a segurança, a identidade. Aqui, o medo torna-se idolátrico: absolutiza bens relativos (território, cultura, economia, pureza) e transforma-os em deuses a proteger. O outro, o estrangeiro, o diferente, deixa de ser próximo e passa a ser ameaça sacrificial.

Por isso, teologicamente, grande parte do medo contemporâneo não é santo temor, mas medo que nasce da idolatria da segurança. E tudo o que se idolatra exige vítimas.

O medo como problema filosófico: o outro como espelho do vazio

Filosoficamente, o medo raramente é proporcional ao perigo real. Ele revela mais sobre quem teme do que sobre o que é temido.

Desde Hobbes, sabemos que o poder aprende rapidamente que o medo é um instrumento de governo: o medo gera obediência, simplificação do pensamento, desejo de muros. Mas esse medo só funciona porque encontra terreno fértil: uma identidade frágil.

Nas nossas terras, o medo do estrangeiro, do migrante, do “outro cultural” não nasce apenas de factos empíricos. Nasce de algo mais profundo: o medo de já não sabermos quem somos.

Quando uma comunidade tem uma identidade viva, histórica e criativa, ela dialoga. Quando essa identidade se esvazia, ela defende-se agressivamente. O outro torna-se insuportável porque revela o nosso próprio vazio. Assim, o medo torna-se irracional não por ser infundado, mas por ser deslocado: teme-se fora o que não se consegue enfrentar dentro.

O medo como experiência existencial: herança, memória e inconsciente colectivo

Existencialmente, nenhum medo nasce do nada. Há medos herdados: invasões passadas, pobreza, humilhações históricas, colonizações, ditaduras, crises económicas. Estes traumas ficam gravados no corpo social e reaparecem quando a estabilidade vacila.

Nesse sentido, o medo não é pura xenofobia nem puro racismo, embora facilmente se transforme neles. Ele é muitas vezes memória não elaborada. Quando não se pensa o trauma, ele pensa por nós.

Mas aqui surge o ponto decisivo: compreender a origem do medo não o justifica eticamente.

O medo pode ser explicável; não é, por isso, inocente. Ele torna-se moralmente problemático quando se converte em critério de decisão política, em narrativa identitária ou em desculpa para desumanizar.

Há justificação palpável para este medo?

Sim, há riscos reais: tensões sociais, desafios económicos, dificuldades de integração, falhas políticas graves. Negá-los seria ingénuo.

Mas a pergunta honesta não é “há risco?” A questão a pôr-se é: o medo que sentimos é proporcional, orientado para soluções ou instrumentalizado para controlo?

Na realidade, quando o medo, generaliza indivíduos em massas, transforma exceções em regra e oferece muros em vez de pensamento, então sim, ele deixou de ser prudência e tornou-se ferramenta de poder.

Hoje forças globalistas tentam destruir tudo o que é capaz de dar estabilidade:  pessoas soberanas, família, pátria e especialmente Deus porque dá consistência interna a tudo isto, para lá das instituições.

O medo como lugar de decisão espiritual

Teológica e existencialmente, o medo é sempre um cruzamento: pode levar ao fechamento ou à conversão. A tradição cristã não promete ausência de medo, mas insiste numa frase recorrente: “Não tenhais medo”, não como anestesia, mas como acto de resistência espiritual.

Nas nossas terras, talvez não temamos tanto o outro. Talvez temamos não sermos capazes de hospedar o futuro.

E os poderosos sabem: um povo com medo aceita quase tudo. Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso, não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

QUANDO A CRÍTICA SE TORNA «POPULISMO»

Imigração, Democracia e a Crise da Honestidade política na Europa

O debate sobre imigração na Europa entrou numa fase preocupante. Não porque faltem dados, experiências comparadas ou alertas internos e externos, mas porque a crítica deixou de ser discutida e passou a ser deslegitimada. Hoje, questionar a política migratória da União Europeia é, com demasiada frequência, rotulado como “populismo”, “extremismo” ou “ameaça à democracia”. Esta estratégia não resolve problemas, apenas os silencia.

A imigração em larga escala é um fenómeno complexo, com impactos profundos na coesão social, na segurança, nos sistemas de bem-estar e, sobretudo, na arquitetura constitucional dos Estados. Tratar estas questões como tabu não é sinal de maturidade democrática, mas de fragilidade política.

A União Europeia tem adotado decisões estruturais em matéria migratória, como o Pacto sobre Migração e Asilo, sem um mandato democrático claro dos povos europeus. Não houve referendos, o debate nacional foi frequentemente marginalizado e as objeções foram apresentadas como moralmente suspeitas. Este afastamento entre decisão política e soberania popular é um dos sinais mais claros do défice democrático em curso.

O problema agrava-se quando relatórios oficiais sobre o “Estado de Direito” passam a insinuar que a contestação destas políticas constitui, em si mesma, uma ameaça à democracia. Esta inversão é perigosa. Numa democracia constitucional, o dissenso não é um problema: é uma condição de funcionamento. Questionar políticas públicas não enfraquece o Estado de direito; pelo contrário, fortalece-o.

O uso do termo “populismo” tornou-se particularmente problemático. Não se trata de um conceito jurídico nem de uma categoria científica precisa. Na prática, funciona como rótulo político destinado a desqualificar posições incómodas sem responder aos seus argumentos. Quando conceitos vagos substituem o debate racional, o espaço público empobrece e a confiança nas instituições deteriora-se.

A mesma lógica aplica-se à reação europeia às críticas vindas dos Estados Unidos. Advertências norte-americanas sobre imigração em massa, fragmentação social ou erosão da democracia são frequentemente descartadas como ingerência ideológica ou atraso cultural. Esta atitude é, no mínimo, intelectualmente desonesta. Os EUA têm uma longa experiência histórica com imigração, sucessos e fracassos, e uma tradição constitucional que valoriza fortemente a liberdade de expressão e o pluralismo político. Ignorar estas advertências não é sinal de autonomia europeia, mas de recusa em aprender.

O mais preocupante é que, ao difamar sistematicamente a crítica, a União Europeia corre o risco de se transformar numa democracia apenas formal: eleições existem, instituições funcionam, mas o debate real é condicionado por barreiras morais e simbólicas. As decisões são apresentadas como tecnicamente inevitáveis ou moralmente superiores, e não como escolhas políticas discutíveis.

A imigração não é, em si, um problema. Torna-se problemática quando é descontrolada, quando ignora capacidades reais de integração e quando entra em tensão com ordens constitucionais existentes. Discutir estes limites não é xenofobia nem populismo; é responsabilidade democrática.

Se a Europa quiser preservar os valores que afirma defender, concretamente, democracia, pluralismo, Estado de direito, terá de abandonar a política da estigmatização e regressar à política do argumento. Terá de aceitar que a soberania popular não é um obstáculo moral, mas o fundamento da legitimidade. E terá de compreender que silenciar a crítica não elimina os problemas: apenas os empurra para um futuro mais conflituoso.

O verdadeiro risco para a Europa não é o populismo. É a normalização de um défice democrático disfarçado de virtude moral.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa na Construção da Paz

Quando a Consciência se torna o último Bastião da Liberdade

Vivemos numa época de paradoxos desconcertantes. Nunca se falou tanto de democracia, inclusão e direitos humanos e contudo, nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas, munidas de tecnologias de persuasão cada vez mais sofisticadas, descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, direcionar emoções, fabricar consensos. A liberdade exterior pode subsistir enquanto a interior se dissolve, quase sem resistência, nas ondas algorítmicas e mediáticas que nos dizem o que pensar antes mesmo de o pensarmos.

É neste contexto que se impõe uma reflexão urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, ao contrato social, à identidade coletiva, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta? Ou estamos condenados a assistir ao eterno confronto entre o público e o privado, entre o Estado e a alma, entre a multidão e o silêncio?

A Sedução Silenciosa do Poder Democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

Esta mutação do poder democrático em pedagogia obrigatória do pensar tornou-se particularmente evidente nos últimos anos. A pandemia de COVID-19 funcionou como um catalisador, revelando até que ponto os Estados contemporâneos estão dispostos a penetrar no santuário da consciência. Não se tratou apenas de impor medidas sanitárias, legítimas ou não, mas de exigir uma adesão emocional, moral, quase religiosa a narrativas oficiais, sob pena de exclusão social, estigmatização pública ou censura.

A filosofia antiga já conhecia este perigo. Platão, na sua “República”, sonhou com um Estado onde os guardiões seriam educados através de mitos cuidadosamente selecionados para moldar as suas almas. Mas foi precisamente contra essa tentação que se ergueram os grandes defensores da consciência individual, de Sócrates a Agostinho, Kant, etc (1). A verdadeira liberdade, insistiram, não está na possibilidade de escolher entre opções pré-determinadas, mas na capacidade de discernir, no silêncio da interioridade, o que é verdadeiro e o que é justo, mesmo quando todo o mundo diz o contrário. O despertar da consciência individual leva ao processo de ampliar a percepção sobre si mesmo, sobre a vida e sobre a realidade.

O Santuário interior: Onde nenhum Poder pode entrar

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” Esta definição do Concílio Vaticano II não é apenas uma formulação teológica; é uma declaração de independência antropológica. Há em cada pessoa um espaço inviolável, uma cidadela interior onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar, nenhuma propaganda pode semear.

É precisamente aqui que a fé pessoal se distingue radicalmente da fé civil. A fé civil, por mais nobre que seja, permanece ligada à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo, aos consensos temporários. Ela pertence ao domínio do que Hegel chamava “espírito objetivo”: as instituições, as leis, os costumes partilhados. Mas a fé pessoal, a consciência iluminada, pertence a outra ordem: a do “espírito absoluto”, que transcende as circunstâncias e se enraíza numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Pelo contrário, uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir a coesão, a solidariedade, o sentido de pertença; mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando a maioria se torna multidão, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia e a Visão que resiste

Não é por acaso que a tradição cristã celebra, nesta época do Advento, Santa Luzia, (2) a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio, mais do que um facto histórico distante, funciona como parábola permanente da condição humana. A verdadeira cegueira, ensina-nos Luzia, não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria, por medo ou sedução, consinta em extingui-la.

Esta metáfora da luz interior atravessa toda a história da espiritualidade humana. Das cavernas platónicas ao “lumen naturale” de Descartes, da “luz interior” dos quakers à “chama da consciência” de que fala Martin Luther King, a humanidade sempre soube, intuitivamente, que há uma luminosidade própria da pessoa que nenhum poder exterior pode fabricar ou confiscar. É esta luz que permite a Gandhi jejuar até que um império se dobra, a Mandela sobreviver décadas de prisão sem perder a dignidade e a Dietrich Bonhoeffer escrever, da sua cela nazi, que “não são as experiências boas ou más que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências”.

A Ilusão da Bolha e o Perigo das Indignações fabricadas

Vivemos tempos em que as multidões se formam e dissolvem com uma velocidade vertiginosa. As redes sociais criaram o que poderíamos chamar “comunidades de indignação instantânea”: grupos de pessoas que se agregam em torno de uma causa, de uma revolta, de uma denúncia, mas que, muitas vezes, não partilham verdadeira reflexão, apenas reflexos emocionais sincronizados.

Esta dinâmica é profundamente perigosa para a consciência. Quando a comoção pública substitui o discernimento pessoal, quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento. E instrumentos, mesmo quando acreditam lutar pela justiça, podem ser facilmente manipulados por interesses obscuros e partidários que nada têm a ver com o bem comum.

A filosofia política clássica sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes, capazes de deliberação racional; a multidão é um agregado emocional, movido por impulsos, facilmente manipulável. Nas democracias contemporâneas, assistimos frequentemente à transformação do povo em multidão; isto acontece não pela força, mas pela saturação emocional, pela sobrecarga informativa, pela polarização artificial de debates.

É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz. Quem possui uma bússola interior, orientada por princípios que transcendem as flutuações da opinião pública, não se deixa arrastar pelas correntes. Não se trata de recusar o diálogo com a sociedade, mas de entrar nesse diálogo como pessoa íntegra, não como eco das últimas tendências.

Fé Civil e Fé Religiosa devem ser dois Polos complementares não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas, sejam elas laicas ou religiosas, foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência. Os jacobinos quiseram eliminar Deus para instaurar a religião da Razão; os fundamentalistas querem eliminar o Estado laico para instaurar teocracias. Ambos partem do mesmo pressuposto falso: que só pode haver uma fonte de autoridade moral, um único horizonte de sentido.

A verdade é mais subtil e mais fecunda. A fé civil e a fé religiosa não são adversárias, mas complementares, desde que cada uma reconheça os seus próprios limites e respeite o espaço da outra. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum, o mínimo ético partilhável; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo e no materialismo.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante, onde tudo se reduz ao cálculo de utilidades e às estatísticas de maiorias. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, caritas concreta.

O desenvolvimento humano autêntico, não o mero crescimento económico ou tecnológico, mas o amadurecimento integral das pessoas e das sociedades,  exige esta dialética permanente: o reconhecimento dos erros para os superar, a humildade para aprender com as múltiplas tradições de sabedoria, a coragem para não absolutizar nenhuma forma histórica de organização social.

A Função da Palavra: Despertar

Há uma tentação, particularmente forte em épocas de polarização, de usar a palavra como arma de persuasão, como instrumento de convencimento, quase como forma de dominação intelectual. Escreve-se para provar que se tem razão, para derrotar o adversário, para conquistar adeptos.

Mas existe outra forma de escrever e de ler: aquela que serve não para convencer, mas para despertar. Não para impor verdades prontas, mas para acender interrogações fecundas. Não para fechar debates, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

Esta escrita, poderíamos chamá-la “escrita socrática”, não oferece sistemas completos nem respostas definitivas. Ela propõe, sugere, interroga, convida. Confia na capacidade de cada leitor de descobrir, no silêncio da sua própria interioridade, a luz que já lá estava, à espera de ser reconhecida.

É por isto que a verdadeira cultura de paz não se constrói através de doutrinação, mas através de educação no sentido mais profundo: “educare”, conduzir para fora, ajudar a pessoa a emergir da caverna das opiniões legadas, dos preconceitos não examinados, das certezas fabricadas. Uma cultura de paz pressupõe cidadãos interiormente livres, capazes de pensar por si mesmos, de resistir às manipulações, de discernir entre verdade e propaganda.

Pressupostos para uma Cultura de Paz

Se quisermos genuinamente construir uma cultura de paz, precisamos de começar por reconhecer algumas verdades desconfortáveis:

Primeiro: A paz não é ausência de conflito, mas capacidade de gerir conflitos sem violência. Isto exige pessoas com maturidade interior, capazes de suportar a tensão da divergência sem precisar de aniquilar o outro.

Segundo: Não pode haver paz duradoura sem justiça, e não pode haver justiça sem verdade. Mas a verdade não é fabricável por consenso ou decreto; ela exige uma busca honesta, humilde, permanente, que respeite a dignidade da consciência individual.

Terceiro: Uma sociedade verdadeiramente pacífica não é aquela onde todos pensam o mesmo, mas aquela onde diferentes visões do bem podem coexistir, desde que partilhem um compromisso comum com o respeito pela dignidade humana e pela liberdade de consciência.

Quarto: A cultura de paz requer o cultivo da vida interior. Sociedades compostas por pessoas esvaziadas interiormente, reduzidas a consumidores e espectadores, são manipuláveis e, portanto, potencialmente violentas. A paz verdadeira nasce de pessoas que possuem um centro, uma bússola, uma luz própria.

Quinto: É preciso reabilitar o silêncio. Numa cultura saturada de ruído, onde a informação corre mais depressa do que a capacidade de a processar, o silêncio não é vazio mas plenitude, é o espaço onde a consciência pode finalmente ouvir-se a si própria e, ouvindo-se, discernir.

O Advento interior é sempre que a Humanidade espera a Luz

O Advento cristão, esse tempo de espera e preparação antes do Natal, funciona como metáfora de uma condição humana permanente: somos seres que aguardam a luz, que anseiam por ela, que não se resignam à escuridão. Mas esta luz que esperamos não vem apenas de fora, como presente caído do céu; ela também precisa de ser cultivada dentro de nós, como chama que se protege do vento.

Santa Luzia, no seu testemunho, ensina-nos que a verdadeira iluminação não é passiva. Não basta aguardar que alguém nos ilumine; é preciso decidir, ativamente, manter acesa a luz interior, mesmo quando tudo conspira para a apagar. Esta decisão,  ética, espiritual, existencial, é o ato fundador da liberdade humana.

Numa época em que tantas forças querem retirar às pessoas a fé e a liberdade interior para melhor as dominar, é preciso lembrar uma verdade antiga mas sempre nova: a fé autêntica, aquela que nasce da luz interior e não da imposição exterior, é a força mais revolucionária que existe. Ela rompe com a injustiça não através de violência, mas através da recusa silenciosa, mas firme de colaborar com a mentira. Ela transforma sociedades não através de decretos, mas através do testemunho de vidas íntegras que, sem alarde, mostram que é possível viver de outro modo.

Conclusão: A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação, todas elas são preciosas e devem ser defendidas. Mas há uma liberdade mais fundamental, da qual todas as outras dependem: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, confronto honesto com as próprias contradições, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro).

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, da fé pessoal autêntica, da interioridade cultivada é, no fim de contas, a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas, por mais sofisticadas que sejam as formas de dominação que o futuro nos reserve. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez seja este, afinal, o sentido mais profundo de escrever e ler: não para encerrar o pensamento em fórmulas definitivas, mas para manter acesa, geração após geração, a chama que impede a consciência de adormecer. Porque enquanto houver quem leia, quem pense, quem se recuse a entregar a sua luz interior, haverá resistência contra toda a forma de opressão, e haverá esperança de que a paz, não como silêncio imposto, mas como harmonia livremente construída, seja possível.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Há várias encíclicas em que a consciência é  tema central como em “Veritatis Splendor” (João Paulo II, 1993), que discute a lei moral e a formação da consciência, e a encíclicas como “Pacem in Terris” (João XXIII, 1963) sobre direitos e deveres, e a última encíclica do Papa Francisco,  “Dilexit nos” (Francisco, 2024), que trata a consciência, e a necessidade de formar uma consciência reta com base na verdade e na lei divina, não em subjetivismos, sendo um tribunal interno que julga nossas ações.

(2) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491

Segue-se a versão resumida para eitores mais apressados:

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa de Mãos dadas

Vivemos tempos paradoxais. Nunca se falou tanto de liberdade, mas nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, fabricar consensos, direcionar emoções. A pandemia de COVID-19 revelou até que ponto os Estados estão dispostos a penetrar no santuário da consciência, exigindo não apenas obediência exterior, mas adesão emocional a narrativas oficiais.

É neste contexto que se impõe uma pergunta urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta?

A Sedução silenciosa do Poder democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

O Santuário Interior

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem”, ensina o Concílio Vaticano II. Há em cada pessoa um espaço inviolável onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar. É aqui que a fé pessoal se distingue da fé civil: esta pertence à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo; aquela enraíza-se numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir coesão e solidariedade, mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia: A Visão que Resiste

Nesta época do Advento, Santa Luzia (1) surge como símbolo luminoso: a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio ensina-nos que a verdadeira cegueira não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria consinta em extingui-la.

Esta luz interior é a que permite pessoas críticas como Luther King a resistir contra a injustiça social nos EUA, a Gandhi resistir a um império, a Mandela sobreviver décadas de prisão e a Bonhoeffer escrever da sua cela nazi que “não são as experiências que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências.”

O Perigo das Indignações Fabricadas

As redes sociais criaram “comunidades de indignação instantânea” onde a comoção pública substitui o discernimento pessoal. Quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento facilmente manipulável por interesses obscuros.

A filosofia política sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes; a multidão é um agregado emocional, facilmente manipulável. É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz.

Polos complementares e não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência (esse erro ainda hoje doutrina foi espalhado pelo marxismo materialista como verdade científica fundada na velha física e na estratégia do divide para imperar). A verdade é mais fecunda: ambas são complementares. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo ou na visão do mensurável.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, cuidado concreto.

A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação e  todas elas são preciosas. Mas há uma liberdade mais fundamental: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro)

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, é a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez escrever e ler sirvam precisamente para isto: não para convencer, mas para despertar. Não para dar respostas fechadas, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491