A NOVA BARREIRA ALFANDEGÁRIA DA UE

Protecionismo, Receita fiscal ou uma Medida contra a China?

Num movimento que marca uma viragem significativa na política comercial europeia, os Estados-Membros da União Europeia aprovaram a imposição de taxas alfandegárias sobre todas as importações, incluindo pequenas encomendas com valor inferior a 150€. A partir de julho de 2026, estas encomendas, até agora isentas, estarão sujeitas a uma taxa fixa de 3€. A medida, justificada pela Comissão Europeia como uma forma de nivelar o campo de jogo perante a avalanche de importações baratas, gera um intenso debate. Para muitos, é um passo necessário para proteger a economia europeia; para outros, representa mais uma forma de o Estado “encher os seus próprios bolsos” sob o pretexto de medidas contra a China.

O Fim de uma Era: A Isenção dos 150€
Desde há décadas, o limiar dos 150€ funcionou como um estímulo ao comércio internacional de baixo valor, permitindo aos consumidores europeus com menos recursos adquirir bens de todo o mundo sem burocracia ou custos adicionais. Esta isenção foi, no entanto, corroída pela explosão do e-commerce transcontinental, particularmente com a ascensão de gigantes baseados na China como Shein, Temu e AliExpress. Estas plataformas, com seus modelos de negócio baseados em volumes astronómicos de pequenas encomendas diretas ao consumidor, dominam agora o fluxo de bens de baixo custo para a UE. A Comissão Europeia estima que, só em 2024, 12 milhões de encomendas cheguem diariamente ao espaço comunitário, um número que pressiona os sistemas logísticos e alfandegários e que, argumenta Bruxelas, distorce a concorrência com os retalhistas europeus.

Objetivos Declarados e Críticas
Os proponentes da medida defendem-na com três argumentos principais:

– Equidade no Mercado: Acabar com a vantagem competitiva “injusta” de retalhistas não-europeus que não cumprem as mesmas regras fiscais, ambientais ou laborais.

– Nivelamento Fiscal: Combater a evasão do IVA, garantindo que todas as encomendas contribuem para as receitas dos Estados-Membros.

– Financiamento da Maquinaria Aduaneira: A taxa fixa de 3€ ajudará a financiar os custos operacionais crescentes do controlo aduaneiro desta miríade de pequenas encomendas.

No entanto, a medida é alvo de veemente crítica. Os governos usam o pretexto geopolítico e de “proteção do mercado único” para aumentar a receita fiscal à custa do consumidor comum. A taxa de 3€ sobre uma encomenda de 5€ ou 10€ representa um acréscimo percentual brutal, funcionando efetivamente como um imposto regressivo que pesa mais sobre as famílias com menos recursos.

Impacto em Cadeia: Consumidores, Plataformas e a Logística
As consequências serão vastas:

– Para o Consumidor: O fim da “pechincha” verdadeiramente global. O preço final dos artigos baratos aumentará substancialmente, podendo reduzir o poder de compra e a variedade de escolha.

– Para as Plataformas Online (Shein, Temu, AliExpress): O seu modelo de negócio, assente em margens baixíssimas e volume extremo, enfrenta um desafio existencial. Terão de absorver o custo, repassá-lo ao cliente, ou reinventar as suas cadeias logísticas, possivelmente através de armazéns dentro da UE.

– Para os Serviços Aduaneiros e Correios: Pressupõe uma complexidade logística monumental. Processar milhões de micro-taxas diárias exigirá uma automação e eficiência sem precedentes, sob o risco de criar enormes gargalos e atrasos na entrega.

Uma Medida Antichinesa?
Embora a medida seja tecnicamente “neutra” e se aplique a encomendas de qualquer origem, o alvo político e mediático é claro: a China e as suas plataformas de e-commerce. A medida insere-se num contexto mais amplo de reavaliação das relações económicas UE-China, que inclui investigações por subsídios, preocupações com direitos humanos e dependências estratégicas. A taxação das pequenas encomendas é, assim, a frente mais visível e diária desta nova postura comercial defensiva.

Um Novo Paradigma com Custos
A aprovação desta taxa alfandegária simboliza o fim da era de um comércio global sem atritos para o cidadão comum. A UE, ao desmantelar a isenção dos 150€, escolhe prioritariamente proteger a sua base industrial e arrecadar receitas, aceitando o custo político de um consumo mais caro. A medida pode, de facto, forçar uma maior internalização das cadeias de abastecimento e oferecer um fôlego aos retalhistas europeus. No entanto, como bem aponta a crítica, o risco de ser percebida como mais um imposto disfarçado, que beneficia o Estado sob o manto de uma narrativa geopolítica, é real. A partir de julho de 2026, o preço da globalização, até para a mais pequena encomenda, terá um custo mais visível: 3 euros.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A DECISÃO DE EMERGÊNCIA DA UE SOBRE ATIVOS RUSSOS EXIGE VIGILÂNCIA DO CIDADÃO

Introdução: Um Precedente Perigoso
A recente decisão da União Europeia de manter imobilizados os ativos do Banco Central da Rússia, baseada numa cláusula de “emergência económica”, consolida um padrão preocupante porque arbitrário. Este mecanismo, justificado como excecional, permite contornar a regra da unanimidade entre Estados-Membros, princípio fundador que garante equilíbrio e soberania dentro do bloco. A prática, já testada durante a pandemia de COVID-19, revela como a classificação de uma situação como “emergência” serve frequentemente de pretexto para decisões políticas rápidas, pouco escrutinadas e potencialmente arbitrárias.

O Equilíbrio Perdido: Segurança contra Soberania
Este caso vai além do juízo sobre a Rússia e coloca uma questão fundamental: qual é o equilíbrio adequado entre medidas de segurança económica ou estratégica e os princípios de propriedade privada e soberania financeira? E, sobretudo, quem decide esse equilíbrio, e com que mandato? O que hoje se aplica a ativos russos pode, amanhã, justificar o bloqueio de contas de qualquer cidadão ou Estado sob nova “emergência”. A arrogância do poder, a pretexto do COVID e da Guerra, está a corroer as garantias legais e a tornar-se insuportável para cidadãos conscientes.

Geopolítica na UE: A Lei do Mais Forte
A guerra na Ucrânia evidenciou, de forma crua, as divisões geopolíticas na Europa. Em vez de uma resposta verdadeiramente coletiva, assistiu-se ao oportunismo de uma Europa dividida, onde os interesses das grandes potências, notadamente o núcleo da E-3 (Alemanha, França e, outrora, o Reino Unido), frequentemente se sobrepõem aos dos demais Estados-membros. Para impor os seus interesses, estas potências recorreram ao estratagema da “emergência”, suspendendo o compromisso da unanimidade e, com ele, o principal mecanismo de proteção das soberanias nacionais mais pequenas.

Os Pequenos Estados: Campo de Batalha das Potências
Esta dinâmica segue a lógica da “lei do mais forte”, que só é contida por um poder equivalente. Na sua ausência, os países menores tornam-se o campo de batalha onde as potências disputam influência, vendo-se obrigados a “pôr-se em bicos de pés” para se alinharem com os grandes. Essa posição é instável e leva à abdicação dos seus próprios interesses nacionais, como se observa no isolamento imposto a países como a Hungria quando ousam divergir. O fraco é instrumentalizado, e a solidariedade europeia revela-se seletiva.

Consequências: Erosão da Confiança e Danos Colaterais
O congelamento prolongado de ativos soberanos, agora normalizado como procedimento automático, fragiliza a confiança no sistema financeiro internacional e levanta sérias dúvidas sobre a proporcionalidade e a transparência das instituições da UE. Além disso, o recurso crescente a sanções económicas como instrumento político raramente atinge apenas as elites; os danos espalham-se maleficamente por sociedades inteiras, afetando cidadãos comuns tanto do lado sancionado como do lado sancionador. A história mostra que os conflitos são muitas vezes alimentados por elites, mas os custos são invariavelmente distribuídos pelos povos.

Conclusão: O Imperativo da Vigilância Cívica
Num momento em que decisões cruciais são tomadas em nome da Europa, é fundamental que os cidadãos mantenham um espírito crítico aguçado e exijam transparência absoluta. É urgente recordar aos representantes que a democracia não pode degenerar num governo tecnocrático, autoritário e opaco, desligado do bem comum. A vigilância cívica é o último garante contra a corrosão da democracia, das liberdades e o abuso de poder. Não podemos permitir que “emergência” se torne sinónimo de arbitrariedade institucionalizada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

AS CORES DA AMIZADE SOB O ARCO DA PRESENÇA

Só, sob o arco que une céu e chão,
Sinto orvalhar em flocos o pensamento.
E com asas de sonho, na amplidão,
Sigo a aragem suave do tempo.

Solidão que em mim se torna vaso
Onde o mar pousa a sua voz profunda,
E anjos, sem rumor, num doce caso ,
Minha tristeza com meus amigos embalam.

Na amizade que é filha do bem-querer,
Sinto o lugar quieto onde Deus habita.
Porta aberta para se ser e ter,
Onde a felicidade, livre, palpita.

– Corações de portas escancaradas,
Cultivai a amizade, a partilha pura,
Cuja ternura, por estradas delicadas,
Vem da estima, do afeto, da doçura!

Ela é o abanador na lareira da vida
Que aviva a brasa da existência,
Para que cada qual, na chama acendida,
Respeite e sinta a própria essência.

Vencerá o mal-querer, embora ele
Se empoleire nos altos do poder.
É energia que em nós se revela,
Asa que salva e sustém no querer.

No teu sorrir, o sol aquece e alumia
O caminho que trilho, claro ou obscuro.
No teu sorrir, a alegria que é minha
Encontra um lago puro, num colo seguro.

Amizade é amor, que fica depois
Da dor, no rotineiro da existência (1).
Refúgio das intempéries e dos bojos
Que o destino traz na sua inclemência.

Há a calorosa, que desce connosco
À adega escura e forte da jornada.
Há a do “vá com Deus”, leve e veloz,
Na despedida ligeira e apressada.

E há momentos em que o peso, mais denso,
Faz brotar no peito uma saudade:
E sinto-me, então, no regaço imenso,
Da vivência silenciosa da Amizade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Aqui recordo o dia em que as alianças caíram dos dedos.

E o vazio que fica no dedo
é a memória do abraço que ali cabia:
um aro de promessa, afrouxado,
até que a pele esqueceu seu nome.

Assim recordo: não a queda, mas o instante
em que o dedo reconheceu, por fim,
que era apenas dedo e não altar,
nem jura, nem ponte para outro corpo.

CUIDAR DE QUEM CUIDA

Satisfação vocacional e o Risco de burnout na Vida sacerdotal

Inquéritos feitos a padres nos EUA em 2025 (e na Europa) revelam níveis elevados de sacerdotes que vivem a sua vocação com satisfação e sentido, mas enfrentam desafios estruturais graves: sobrecarga, solidão, risco de exaustão, falta de apoio institucional. Ao mesmo tempo, os padres revelam uma clara visão de futuro: priorizar juventude, famílias, evangelização e serviço social, uma Igreja mais “de rosto humano”, comprometida com o mundo real (1).

As percepções sobre liderança, bem-estar comunitário, confiança etc. podem variar muito de diocese para diocese; os resultados gerais não dizem tudo sobre contextos particulares.

Uma realidade que pede atenção e misericórdia

A Igreja é uma família. E como em qualquer família, quando alguém se sente cansado, sobrecarregado ou só, todos somos chamados a reparar, escutar e ajudar.

Em muitas comunidades portuguesas e europeias, os padres vivem hoje com grande dedicação, mas também com um peso crescente de responsabilidades: várias paróquias a cargo da mesma pessoa, exigências administrativas, deslocações constantes e expectativas que nem sempre são humanas porque puxam mais para fora do que para dentro.

Muitos continuam a servir com alegria e fidelidade. Outros vivem momentos de cansaço profundo, solidão ou stress, nem sempre visíveis, nem sempre partilhados.

Reconhecer esta realidade não é criticar a Igreja, mas amá‑la com verdade porque somos todos humanos.

Alguns dados simples para compreender melhor

– Em várias regiões da Europa, incluindo Portugal, a proporção aproxima‑se hoje de 1 padre para 3.000 a 4.000 fiéis.

– Estudos europeus e internacionais indicam que cerca de 30% a 40% dos padres apresentam sinais de cansaço emocional prolongado (burnout) em algum grau.

– Padres mais jovens ordenados após 2000 ou com múltiplas paróquias tendem a sentir maior pressão e solidão.

– Em Portugal, uma investigação recente em que foi aplicada a ferramenta psicológica Francis Burnout Inventory (FBI) que mede a saúde mental no trabalho (exaustão emocional e satisfação no ministério) aplicada a padres portugueses (amostra de 266) confirma que também entre nós existem sinais de exaustão associados à falta de descanso, de apoio regular e de partilha fraterna e também pensamentos sobre deixar o ministério.

Estes dados não descrevem pessoas concretas, mas ajudam‑nos a perceber melhor o contexto em que muitos sacerdotes vivem hoje.

Quando o cansaço se prolonga

Quando a sobrecarga se prolonga e não se é escutado nem cuidado, o desgaste pode levar a:

– Ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas;

– Solidão profunda e perda de alegria ministerial;

– Distanciamento afetivo das comunidades;

– Risco de abandono do ministério;

– Empobrecimento da vida pastoral das paróquias e da vida comunitária.

Cuidar dos padres é cuidar da qualidade da vida cristã de todos.

Uma palavra de gratidão aos padres

A entrega do sacerdote é preciosa e a sua humanidade também.

Jesus não chamou servidores incansáveis, mas amigos. Descansar, pedir ajuda, partilhar o peso com irmãos e comunidades não diminui a vocação, pelo contrário, protege‑a.

A fraternidade entre padres, vivida com amizade, oração e partilha sincera e com a oração partilhada é uma das maiores fontes de cura e perseverança.

A paróquia é uma comunidade de vida

A paróquia não é apenas o lugar onde o padre trabalha, é uma comunidade de corresponsáveis, uma comunidade de vida.

Cada comunidade pode ser mais leve e mais fraterna quando: partilha tarefas e responsabilidades; respeita limites e tempos de descanso; valoriza a presença humana do padre, não apenas o que ele faz; cria equipas e ministérios activos e valoriza momentos simples de convivência.

Uma comunidade viva não sobrecarrega o padre, caminha com ele anunciando o Evangelho com gestos concretos.

Caminhar juntos com esperança

A Igreja precisa de bispos que sejam pais e pastores, não apenas gestores.

Estas palavras não nascem de críticas, mas de um desejo simples: uma Igreja mais atenta, mais humana e mais evangélica.

Cuidar de quem cuida é uma missão de todos.

“Vinde repousar um pouco comigo.” (Mc 6,31)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O relatório do inquérito de 2025 feito nos EUA a padres sobre a sua situação pode ser consultado em  https://catholicproject.catholic.edu/wp-content/uploads/2025/10/NSCPWave2FINAL.pdf    entre outras coisas identificou que ~ 40% dos padres ordenados após 2000 manifestaram sentimentos de solidão em algum grau. Cerca de 39% dos padres relataram ao menos um sintoma de “burnout” (cansaço emocional, esgotamento, visão negativa) e 5% relataram ter todos os sintomas. Há diferença entre padres diocesanos (mais em risco — 7% apresentam “alto burnout”) e padres religiosos (2%).

Os padres que responderam à pesquisa mantêm níveis elevados de “florescente” pessoal: pontuação média de 8,2/10 (igual à de 2022)  ou seja, saúde mental, propósito, relações sociais etc., em bom nível.

Estudos empíricos recentes em Itália mostram que, além da sobrecarga objetiva, fatores pessoais (traços de personalidade) e a falta de atividades de lazer/proteção profissional influenciam a propensão ao burnout.

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: