SANÇÕES DE OPINIÃO E LIBERDADE EM BRUXELAS: UM ALERTA

Não estará a UE a preparar os Estados membros para uma Democradura?

A recente decisão (1) do Conselho da União Europeia de sancionar doze cidadãos europeus no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum, incluindo analistas, autores e comentadores públicos, levanta questões sérias que não podem ser ignoradas numa Europa que se pretende humanista, democrática e fundada no Estado de Direito.

As medidas agora aplicadas, congelamento de bens, proibição de disponibilização de recursos económicos e interdição de entrada ou trânsito no território da União, não são meramente simbólicas. Na prática, configuram uma forma de exclusão civil e económica que afeta profundamente a vida pessoal e profissional dos visados. Embora juridicamente qualificadas como “medidas restritivas” e não como penas criminais, o seu impacto real aproxima-se de uma morte civil parcial, decretada sem julgamento penal, sem contraditório prévio e sem decisão de um tribunal independente.

O contexto político não é neutro

A guerra na Ucrânia não surgiu num vazio histórico nem político. Diversos analistas, académicos e responsáveis políticos, incluindo vozes ocidentais, reconheceram ao longo dos anos que o alargamento da NATO para Leste, a instrumentalização política de divisões internas na Ucrânia e a transformação do país num palco de confronto geoestratégico contribuíram para a escalada de tensões que desembocou no conflito armado.

Reconhecer esta complexidade não equivale a justificar a invasão russa, mas sim a rejeitar leituras simplistas que reduzem a guerra a uma narrativa maniqueísta entre o bem absoluto e o mal absoluto. É precisamente este espaço de análise crítica que parece hoje cada vez mais estreito na União Europeia.

Sanções da opinião: uma fronteira perigosa

O elemento mais inquietante da decisão europeia reside no facto de várias das pessoas sancionadas o terem sido não por actos materiais comprovados, mas essencialmente por discursos, análises e interpretações consideradas “alinhadas” com narrativas russas ou classificadas como “manipulação de informação”.

Aqui surge um problema central: quem define, em última instância, a fronteira entre análise dissidente, opinião crítica e propaganda hostil? Quem manipula quem?

Quando essa definição é feita por um órgão político, sem controlo judicial prévio, abre-se um precedente perigoso. A liberdade de expressão, consagrada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deixa de ser um direito fundamental e passa a ser um direito condicionado à conformidade com a narrativa oficial do momento.

Uma comparação desconfortável, mas instrutiva

A comparação com a Inquisição medieval é frequentemente rejeitada como exagerada. Contudo, do ponto de vista histórico-jurídico, ela merece reflexão. A Inquisição, apesar da violência, intolerância e abusos que a caracterizaram, acabou por introduzir, paradoxalmente, elementos processuais como a necessidade de formular acusações, ouvir o acusado e permitir alguma forma de defesa.

No caso das sanções europeias atuais, assistimos a uma regressão inquietante: não há acusação penal formal, não há julgamento, não há defesa prévia. O visado toma conhecimento da sua “condenação” apenas após a sua publicação no Jornal Oficial. A possibilidade posterior de recurso aos tribunais europeus existe, mas ocorre a posteriori, quando o dano pessoal, reputacional e económico já está consumado.

Lições recentes que não deviam ser esquecidas

A experiência das medidas excecionais durante a pandemia da Covid-19 mostrou como, em situações de medo e urgência, direitos fundamentais podem ser suspensos ou relativizados com surpreendente facilidade. O autoritarismo que então foi justificado em nome da saúde pública surge agora sob o pretexto da segurança, da guerra e da luta contra a desinformação.

O denominador comum é claro: a normalização do estado de excepção.

O risco para a Europa

Uma Europa que pune opiniões dissidentes com sanções administrativas de efeito devastador decompõe os valores que proclama defender. A força moral da União Europeia sempre residiu na sua adesão ao pluralismo, ao debate livre e à primazia do direito sobre a conveniência política.

Transformar a divergência intelectual em ameaça à segurança equivale a empobrecer o espaço público e a fragilizar a própria democracia europeia, que, entretanto, se transforma numa democradura. Podemos interpretar a atuação recente das instituições europeias como um passo no sentido de um ‘hiperpresidencialismo’ a nível da UE, em detrimento do poder dos parlamentos nacionais? Seria de questionar a razão porque os Media europeus não tematizam este facto.

Conclusão

Este não é um apelo à defesa de qualquer potência estrangeira, nem à legitimação da guerra. É um apelo à lucidez.
A União Europeia deve combater a desinformação com argumentos, transparência e debate, não com listas negras políticas. Caso contrário, arrisca-se a trocar a sua herança humanista por uma lógica de exclusão que a história europeia conhece bem e que deveria ter definitivamente superado.

A resposta a crises sucessivas (financeira, migratória, sanitária) tem consistido numa transferência permanente de poderes para Bruxelas. Não estaremos a caminho de uma ‘democracia sem escolha’ a nível europeu?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Council Decision (CFSP) 2025/2572 of 15 December 2025 amending Decision (CFSP) 2024/2643 concerning restrictive measures in view of Russia’s destabilising activities

https://eur-lex.europa.eu/eli/dec/2025/2572/oj

O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

Um povo com medo aceita quase tudo.
Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso
não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

O medo inato: dom ambíguo da sobrevivência

Nem todo o medo é patológico ou manipulável. Há um medo originário, inscrito na carne, anterior à cultura e à ideologia. É o medo que protege: diante do abismo, do fogo, do predador, da ameaça real. Ele prepara o corpo para lutar ou fugir, aguça os sentidos, preserva a vida. Sem ele, não haveria humanidade.

Este medo é pré-moral: não é bom nem mau; é necessário. O problema começa quando o medo deixa de responder a perigos concretos e passa a ser alimentado por cenários, narrativas e projeções. O instinto torna-se imaginação ansiosa. A defesa transforma-se em suspeita permanente. Deste modo, uma emoção saudável pode ser colonizada.

O medo da imagem: de ser visto, julgado, rejeitado

Há um medo menos visível e talvez mais profundo: o medo do olhar do outro. O receio de não corresponder, de perder estatuto, de ser julgado pela sociedade. Este medo toca a nossa identidade e a imagem que construímos de nós próprios.

Aqui, o medo já não protege o corpo, mas protege uma máscara.
Tememos: perder reconhecimento, ser desclassificados, deixar de pertencer.

Este medo social cria conformismo, silêncio, cumplicidade passiva. Ele explica por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente sabem ser frágeis: discordar custa mais do que obedecer e pensar faz doer.

Existencialmente, este medo revela uma fragilidade profunda: quando a dignidade depende do aplauso, qualquer ameaça simbólica se torna insuportável.

O medo teológico: da confiança quebrada à idolatria da segurança

Na linguagem bíblica, o medo surge quando a confiança ontológica se rompe. Não é Deus que provoca o medo; é a perda da relação. A partir daí, o mundo torna-se perigoso.

Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro ou na justiça, ela substitui Deus pela segurança. E a segurança, quando absolutizada, torna-se ídolo. Tudo o que ameaça esse ídolo é demonizado.

O estrangeiro, o diferente, o dissidente deixam de ser pessoas: tornam-se símbolos do caos. O medo já não pergunta “o que é verdadeiro?”, mas “o que me protege?”.

O medo político-crítico: governa-se melhor quem treme

As elites políticas, económicas ou mediáticas conhecem bem esta dinâmica. O medo é uma ferramenta de governo porque: simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excpecionais.

Em contextos de guerra geopolítica, como no conflito na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções: medo do inimigo externo, medo do colapso económico, medo do isolamento e medo de questionar narrativas dominantes.

Não se trata de negar a complexidade nem a gravidade real da guerra. Trata-se de reconhecer que o medo, quando não é pensado, torna-se argumento político. Ele transforma cidadãos em espectadores emocionais, prontos a aceitar sanções, rearmamentos, censuras ou sacrifícios sociais sem debate proporcional.

O medo deixa de ser reação a um perigo e passa a ser condição permanente de governo.

Pensar o medo: o gesto verdadeiramente subversivo

O problema não é sentir medo. O problema é não o interrogar.

Pensar o medo é perguntar: é proporcional ao perigo? Quem ganha com ele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe?

Quem pensa o seu medo não se torna violento. Torna-se livre. E a liberdade é sempre desconfortável para quem governa através da ansiedade.

Parábola do vale enevoado

Havia um vale cercado por montanhas. Durante gerações, as pessoas atravessavam-no para chegar ao outro lado, onde havia água e árvores. Um dia, uma névoa começou a descer lentamente.

No início, ninguém se preocupou. Mas alguns disseram:
E se houver monstros na névoa?”

Outros começaram a ouvir ruídos que sempre existiram, mas que agora pareciam ameaçadores. Um grupo construiu uma torre e declarou:
Só nós vemos o que está escondido. Sigam-nos e estarão seguros.”

A cada dia, a névoa parecia mais densa, não porque aumentasse, mas porque ninguém ousava atravessá-la. As crianças nasceram a ouvir que o vale era mortal. Nunca tinham visto monstros, mas tinham aprendido a temê-los.

Um idoso, que ainda se lembrava do caminho, disse um dia:
A névoa não mata. O que mata é esquecer para onde se ia.”

Poucos o ouviram. Mas os que o seguiram atravessaram lentamente o vale. Descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. Do outro lado, viram algo curioso: a torre continuava de pé, mas sem ninguém dentro. Ela só funcionava enquanto todos acreditavam que era necessária.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

RESUMO:

O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

O medo humano manifesta-se em múltiplas dimensões que vão do instinto biológico à manipulação política. Compreender esta complexidade é essencial para distinguir entre proteção legítima e submissão instrumentalizada.

O medo como instinto vital

O medo originário é um mecanismo de sobrevivência necessário, inscrito biologicamente antes de qualquer construção cultural. Ele protege-nos de perigos reais e prepara o corpo para responder a ameaças concretas. Este medo é pré-moral e funcional. O problema surge quando deixa de responder a perigos objetivos e passa a ser alimentado por narrativas, cenários projetados e imaginação ansiosa, transformando-se num estado permanente de suspeita.

O medo social e a tirania da imagem

Existe um medo mais subtil mas igualmente poderoso: o receio do julgamento alheio. Tememos perder reconhecimento, estatuto e pertença social. Este medo já não protege o corpo, mas sim uma máscara identitária que construímos. Ele gera conformismo, silêncio e cumplicidade passiva, explicando por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente reconhecem como frágeis. Discordar exige mais coragem do que obedecer, e o pensamento crítico torna-se doloroso quando a dignidade depende do aplauso externo.

A dimensão teológica: da confiança à idolatria

Na perspectiva bíblica, o medo surge quando se rompe a confiança ontológica fundamental. Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro e na justiça, substitui essas âncoras pela segurança absoluta, que se transforma em ídolo. O diferente, o estrangeiro e o dissidente deixam de ser pessoas para se tornarem símbolos do caos. O medo deixa de perguntar “o que é verdadeiro?” para apenas questionar “o que me protege?”.

O medo como ferramenta de poder

As elites políticas, económicas e mediáticas reconhecem o medo como instrumento eficaz de governo porque ele simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excecionais. Em contextos como a guerra na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções, transformando cidadãos em espectadores emocionais dispostos a aceitar sanções, censuras e sacrifícios sem debate proporcional. O medo deixa de ser reação pontual para se tornar condição permanente de governação.

Pensar o medo como acto de libertação

O verdadeiro problema não é sentir medo, mas não o interrogar. Pensar o medo exige perguntar: é proporcional ao perigo? Quem beneficia dele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe? Quem pensa criticamente o próprio medo não se torna violento, mas livre. E essa liberdade é sempre incómoda para quem governa através da ansiedade coletiva.

A parábola do vale enevoado

O autor conclui com uma parábola ilustrativa: num vale cercado por montanhas, uma névoa desceu e alguns começaram a falar de monstros invisíveis. Uma torre foi erguida por quem prometia segurança. As gerações seguintes cresceram temendo atravessar o vale, não pela névoa em si, mas pelas narrativas que a rodeavam. Um idoso que se lembrava do caminho ensinou que “a névoa não mata; o que mata é esquecer para onde se ia”. Os que ousaram atravessar descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. A torre permanecia de pé, mas vazia, funcionava apenas enquanto todos acreditavam na sua necessidade.

Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE

Medo, confiança e o sagrado da infância

O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.

A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.

O medo como experiência originária

Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta, prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.

Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde fantasia e realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.

A infância como lugar do sagrado

A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.

Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.

Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.

Uma memória: rezar no escuro

Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro: sombras, ruídos, imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas, de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.

Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo mudava: o espaço deixava de ser vazio, o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.

São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.

Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.

Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar. funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.

Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida

A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.

Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.

Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.

Quando a confiança desaparece, o medo governa

Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.

Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.

Acender a luz sem destruir a noite

A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.

A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O MEDO NO ÂMBITO TEOLÓGICO-FILOSÓFICO E EXISTENCIAL

O medo como matéria teológica: entre a queda e a idolatria

Na tradição bíblica, o medo surge muito cedo. A primeira vez que o ser humano diz “tive medo” (Gn 3,10) não é diante de um inimigo externo, mas diante de Deus e esse medo nasce da ruptura da relação, não da ameaça real. Teologicamente, o medo não é apenas uma emoção: é um sintoma de desconfiança ontológica. Quando a confiança fundamental se quebra, o mundo torna-se hostil.

O medo raramente é medo de Deus; é antes o medo de perder o lugar, o nome, a segurança, a identidade. Aqui, o medo torna-se idolátrico: absolutiza bens relativos (território, cultura, economia, pureza) e transforma-os em deuses a proteger. O outro, o estrangeiro, o diferente, deixa de ser próximo e passa a ser ameaça sacrificial.

Por isso, teologicamente, grande parte do medo contemporâneo não é santo temor, mas medo que nasce da idolatria da segurança. E tudo o que se idolatra exige vítimas.

O medo como problema filosófico: o outro como espelho do vazio

Filosoficamente, o medo raramente é proporcional ao perigo real. Ele revela mais sobre quem teme do que sobre o que é temido.

Desde Hobbes, sabemos que o poder aprende rapidamente que o medo é um instrumento de governo: o medo gera obediência, simplificação do pensamento, desejo de muros. Mas esse medo só funciona porque encontra terreno fértil: uma identidade frágil.

Nas nossas terras, o medo do estrangeiro, do migrante, do “outro cultural” não nasce apenas de factos empíricos. Nasce de algo mais profundo: o medo de já não sabermos quem somos.

Quando uma comunidade tem uma identidade viva, histórica e criativa, ela dialoga. Quando essa identidade se esvazia, ela defende-se agressivamente. O outro torna-se insuportável porque revela o nosso próprio vazio. Assim, o medo torna-se irracional não por ser infundado, mas por ser deslocado: teme-se fora o que não se consegue enfrentar dentro.

O medo como experiência existencial: herança, memória e inconsciente colectivo

Existencialmente, nenhum medo nasce do nada. Há medos herdados: invasões passadas, pobreza, humilhações históricas, colonizações, ditaduras, crises económicas. Estes traumas ficam gravados no corpo social e reaparecem quando a estabilidade vacila.

Nesse sentido, o medo não é pura xenofobia nem puro racismo, embora facilmente se transforme neles. Ele é muitas vezes memória não elaborada. Quando não se pensa o trauma, ele pensa por nós.

Mas aqui surge o ponto decisivo: compreender a origem do medo não o justifica eticamente.

O medo pode ser explicável; não é, por isso, inocente. Ele torna-se moralmente problemático quando se converte em critério de decisão política, em narrativa identitária ou em desculpa para desumanizar.

Há justificação palpável para este medo?

Sim, há riscos reais: tensões sociais, desafios económicos, dificuldades de integração, falhas políticas graves. Negá-los seria ingénuo.

Mas a pergunta honesta não é “há risco?” A questão a pôr-se é: o medo que sentimos é proporcional, orientado para soluções ou instrumentalizado para controlo?

Na realidade, quando o medo, generaliza indivíduos em massas, transforma exceções em regra e oferece muros em vez de pensamento, então sim, ele deixou de ser prudência e tornou-se ferramenta de poder.

Hoje forças globalistas tentam destruir tudo o que é capaz de dar estabilidade:  pessoas soberanas, família, pátria e especialmente Deus porque dá consistência interna a tudo isto, para lá das instituições.

O medo como lugar de decisão espiritual

Teológica e existencialmente, o medo é sempre um cruzamento: pode levar ao fechamento ou à conversão. A tradição cristã não promete ausência de medo, mas insiste numa frase recorrente: “Não tenhais medo”, não como anestesia, mas como acto de resistência espiritual.

Nas nossas terras, talvez não temamos tanto o outro. Talvez temamos não sermos capazes de hospedar o futuro.

E os poderosos sabem: um povo com medo aceita quase tudo. Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso, não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

QUANDO A CRÍTICA SE TORNA «POPULISMO»

Imigração, Democracia e a Crise da Honestidade política na Europa

O debate sobre imigração na Europa entrou numa fase preocupante. Não porque faltem dados, experiências comparadas ou alertas internos e externos, mas porque a crítica deixou de ser discutida e passou a ser deslegitimada. Hoje, questionar a política migratória da União Europeia é, com demasiada frequência, rotulado como “populismo”, “extremismo” ou “ameaça à democracia”. Esta estratégia não resolve problemas, apenas os silencia.

A imigração em larga escala é um fenómeno complexo, com impactos profundos na coesão social, na segurança, nos sistemas de bem-estar e, sobretudo, na arquitetura constitucional dos Estados. Tratar estas questões como tabu não é sinal de maturidade democrática, mas de fragilidade política.

A União Europeia tem adotado decisões estruturais em matéria migratória, como o Pacto sobre Migração e Asilo, sem um mandato democrático claro dos povos europeus. Não houve referendos, o debate nacional foi frequentemente marginalizado e as objeções foram apresentadas como moralmente suspeitas. Este afastamento entre decisão política e soberania popular é um dos sinais mais claros do défice democrático em curso.

O problema agrava-se quando relatórios oficiais sobre o “Estado de Direito” passam a insinuar que a contestação destas políticas constitui, em si mesma, uma ameaça à democracia. Esta inversão é perigosa. Numa democracia constitucional, o dissenso não é um problema: é uma condição de funcionamento. Questionar políticas públicas não enfraquece o Estado de direito; pelo contrário, fortalece-o.

O uso do termo “populismo” tornou-se particularmente problemático. Não se trata de um conceito jurídico nem de uma categoria científica precisa. Na prática, funciona como rótulo político destinado a desqualificar posições incómodas sem responder aos seus argumentos. Quando conceitos vagos substituem o debate racional, o espaço público empobrece e a confiança nas instituições deteriora-se.

A mesma lógica aplica-se à reação europeia às críticas vindas dos Estados Unidos. Advertências norte-americanas sobre imigração em massa, fragmentação social ou erosão da democracia são frequentemente descartadas como ingerência ideológica ou atraso cultural. Esta atitude é, no mínimo, intelectualmente desonesta. Os EUA têm uma longa experiência histórica com imigração, sucessos e fracassos, e uma tradição constitucional que valoriza fortemente a liberdade de expressão e o pluralismo político. Ignorar estas advertências não é sinal de autonomia europeia, mas de recusa em aprender.

O mais preocupante é que, ao difamar sistematicamente a crítica, a União Europeia corre o risco de se transformar numa democracia apenas formal: eleições existem, instituições funcionam, mas o debate real é condicionado por barreiras morais e simbólicas. As decisões são apresentadas como tecnicamente inevitáveis ou moralmente superiores, e não como escolhas políticas discutíveis.

A imigração não é, em si, um problema. Torna-se problemática quando é descontrolada, quando ignora capacidades reais de integração e quando entra em tensão com ordens constitucionais existentes. Discutir estes limites não é xenofobia nem populismo; é responsabilidade democrática.

Se a Europa quiser preservar os valores que afirma defender, concretamente, democracia, pluralismo, Estado de direito, terá de abandonar a política da estigmatização e regressar à política do argumento. Terá de aceitar que a soberania popular não é um obstáculo moral, mas o fundamento da legitimidade. E terá de compreender que silenciar a crítica não elimina os problemas: apenas os empurra para um futuro mais conflituoso.

O verdadeiro risco para a Europa não é o populismo. É a normalização de um défice democrático disfarçado de virtude moral.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo