A CONFISSÃO COMO INSTRUMENTO DE INDIVIDUALIZAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA

A Transformação do Mundo começa na Revolução silenciosa da Consciência

O processo de individualização da consciência humana, isto é, a emergência do eu autónomo em relação ao nós coletivo (à comunidade), constitui uma das transformações mais profundas e decisivas na história da mentalidade europeia e na formatação da sua jurisprudência, antropologia e sociologia. Esse desenvolvimento foi obra sobretudo da teologia e da filosofia seguida da política, sendo a Igreja Católica o principal agente na promoção da interioridade e da responsabilidade moral individual, que pouco a pouco conduz à individualidade de consciência.

Um dos mecanismos mais revolucionários e actuantes nesse processo foi a evolução do sacramento da Penitência, que passou de um acto litúrgico comunitário feito no início da missa, para uma confissão auricular privada. Essa mudança não foi só meditativa, como fomentou também uma nova estrutura de consciência, na qual o indivíduo, diante de Deus, assumia a sua culpa e liberdade, emancipando-se progressivamente da moral tribal ou dos senhores.

Neste artigo, procurarei analisar como a Igreja, ao confrontar-se com as sociedades germânicas baseadas em lealdades coletivas, instrumentalizou a confissão individual como meio de responsabilização pessoal, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência autónoma na Europa e para a autonomia das consciências individuais, criando assim a base para todas as aspirações emancipatórias.

A Moral Tribal e a Ausência de Interioridade ou Consciência própria

As sociedades pré-cristãs germânicas e celtas organizavam-se em torno de clãs e tribos, nos quais a identidade individual estava submersa no grupo; o indivíduo definia-se pela pertença à tribo e a obediência funcionava como lei natural interna de sujeição. A lealdade ao chefe e aos costumes ancestrais era o fundamento ético, não deixando espaço para uma noção de responsabilidade pessoal nem de pecado como ofenso pessoal a uma ordem que superasse de maneira transcendente a ordem dos costumes ou da chefia. A honra e a vergonha eram reguladas externamente, pela comunidade, e não por um exame de consciência interno.

Nesse contexto, a penitência pública, como era praticada nos primeiros séculos do cristianismo na liturgia da palavra, não produzia o mesmo efeito psicológico que nas sociedades romanizadas, já que a culpa permanecia um fenómeno coletivo. A Igreja, portanto, enfrentou o desafio de incutir uma moral baseada na responsabilidade individual em culturas que não concebiam o indivíduo fora do grupo. Este aspecto ainda se observa hoje a nível íntimo no islão. Só o desenvolvimento da consciência pessoal cria o espaço da subjectividade e este dá lugar à Liberdade.

A Revolução da Confissão Auricular: Interiorização da Culpa e da Graça

A partir do século VI, com a crescente influência do monaquismo irlandês, a prática da confissão privada, ou auricular, difundiu-se na Europa. O Penitencial de São Columbano (séc. VI) estabeleceu uma abordagem personalizada do pecado, no qual o penitente, em diálogo íntimo com o sacerdote, se confrontava com as suas faltas de maneira individualizada perante Deus.

Esse método representou uma ruptura radical com a ética tribal em favor da responsabilização pessoal: O pecador já não era apenas um membro do grupo que falhava, mas um eu que, perante Deus, assumia as suas ações criando-se nele um espaço interior próprio que comportava já liberdade. A alma tornava-se no local de encontro com o divino, onde a consciência individual se formava em paralelo com a consciência social. Dá-se assim a autonomia moral de modo que a autoridade última já não era o chefe tribal, mas a própria consciência, iluminada pela lei divina.

O historiador Michel Foucault constatou em “A História da Sexualidade”, que a confissão cristã foi uma das primeiras tecnologias do eu a exigir que o indivíduo verbalizasse os seus pensamentos mais íntimos, criando uma subjetividade interiorizada (1).

O processo de individuação da consciência individual foi-se processando durante a Idade Média onde pessoa e sociedade viviam na atmosfera do nós (comunidade) à custa do eu (indivíduo); a sobrevalorização da comunidade atafegava a individualidade mas pouco a pouco a ideia da filiação divina acompanhada da Confissão, geraram a pessoa humana com consciência autónoma frutificando no renascimento e ganhando especial expressão no protestantismo (2) .

O surgir da Ipseidade (mesmidade do eu): O Eu como Essência diante do Divino

A noção agostiniana daquilo que é o mais íntimo de mim mesmo (interior intimo meo) já havia preparado o terreno para uma concepção do homem como ser dotado de uma interioridade sagrada. A confissão auricular aprofundou essa ideia, fazendo da alma um espaço onde o indivíduo, na sua ipseidade (a “mesmidade” do eu), se confrontava com a transcendência e com o agir sociopolítico.

Essa dinâmica teve três consequências fundamentais decisivas: alcança a soberania da consciência individual. O indivíduo passou a ser julgado não apenas pelas suas ações externas, mas também pelas suas intenções internas. Dá-se também a relativização das instituições humanas pois se a alma respondia diretamente a Deus, então nenhuma autoridade terrena, nem mesmo o grupo tribal, podia reivindicar soberania absoluta sobre ela. Na sequência acentua-se a liberdade pessoal porque o indivíduo, ao reconhecer-se como sujeito moral autónomo, ganhou as bases para um processo emancipatório que se expressou de maneira relevante no protestantismo e culminaria, séculos depois, no Iluminismo e na noção de direitos humanos.

A Igreja como Agente Paradoxal da Modernidade

A prática da confissão individual foi, assim, um dos grandes fatores de individualização na Europa medieval, tornando-se como o ventre progenitor do eu que deixa de ser mera sombra da comunidade. A Igreja ao substituir a penitência pública pelo exame de consciência privado, não só se adaptou às mentalidades tribais, mas transformou-as, criando as condições para o surgimento de uma consciência pessoal autónoma.

Paradoxalmente, a mesma instituição que muitas vezes é associada politicamente ao autoritarismo foi certamente a principal promotora da interioridade e da responsabilidade individual, valores que mais tarde se desdobrariam na cultura moderna. A confissão, nesse sentido, não foi apenas um sacramento religioso, mas um ato revolucionário que ajudou a forjar o eu ocidental (a consciência individual e cultural-social).

O cristianismo, na sua vocação de aculturação e inculturação, ergueu-se como ponte entre mundos, buscando elevar costumes fechados e religiosidades cingidas por fronteiras estreitas. Pretendia libertar a moral das amarras do hábito e do peso dos usos herdados, conduzindo-a do círculo apertado de uma ética local à vastidão de uma moral aberta, cuja finalidade não se esgota na coesão social, mas se cumpre na dignidade do indivíduo que, em plena consciência, se torna autor e juiz de si mesmo.

Formar consciências livres e soberanas era a sua meta. Por isso, mais do que confiar apenas na razão que disseca e argumenta, acolheu a intuição, esse olhar interior que não se perde em utopias de salvação universal, mas se ancora na certeza de que Deus habita no mais íntimo de cada ser humano, como uma gene divina e a salvação individual e universal começa por aí. Só Ele conhece o nosso ser até ao fundo, e o verdadeiro saber é a aventura de descobrir-se a si próprio. A transformação social de qualidade, não brota de decretos ou sistemas, mas da lenta e silenciosa evolução da consciência individual.

Hoje, a fé vê-se sacudida pelo vento de um modernismo impetuoso, ferida também pela quietude excessiva em que se deixou adormecer. A espiritualidade cristã, porém, é movimento, é crescimento contínuo; não se compraz num esoterismo fechado, servido à la carte, nem na redução de todas as sendas da existência ao culto do próprio ego.

O verdadeiro equilíbrio exige um conservadorismo vivo, que saiba abrir-se à criatividade e ao novo, não como moda efémera, mas como salto ousado para o desconhecido com sentido. Neste ponto, tanto o wokismo como um tradicionalismo imóvel se encontram partilhando extremismos, oportunismos e medos que asfixiam a criação e detêm o desenvolvimento do homem e da comunidade.

A pessoa desperta não clama por revolução nem por contrarrevolução. A sua revolução é íntima, invisível aos olhos apressados, mas fecunda. É o balanço harmonioso entre opostos, movimento que gera vida, respiração que conduz ao horizonte de uma cultura da paz.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

 

(1) Henri-Louis Bergson (1859–1941), com a teoria do élan vital, procurou unir ciência e filosofia, acabando por aproximar-se do catolicismo. Rejeitou explicações mecanicistas, defendendo que a evolução tende para formas mais complexas, culminando no ser humano. Para Bergson, é a intuição e não apenas a razão analítica que permite o contacto directo com o núcleo da realidade. Deus está no íntimo de cada pessoa, e a salvação resulta dos dons divinos e da liberdade humana. Como a natureza não possui essência divina, restam duas opções: ou reconhecer Deus ou divinizar a natureza. Esta última opção leva ao panteísmo.

(2) Lutero garante a Emancipação como Princípio impulsionador da Idade Moderna: https://www.amazon.com/garante-Emancipa%C3%A7%C3%A3o-Princ%C3%ADpio-impulsionador-Moderna-ebook/dp/B076859PZT

Bibliografia

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade, Vol. 1: A Vontade de Saber:

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna.

DELUMEAU, Jean. A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII-XVIII.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.

ENTRE TEMPO E ETERNIDADE

Eu… cavo.

Sempre a cavar…

Uma cova,

que um dia me há receber,

não de terra, mas feita de palavras.

Daquelas que disse…e das outras,

que… nunca ousei dizer.

 

Ah, quantas manhãs perdidas!

Nas vielas estreitas

do meu próprio pensamento,

enquanto a vida,

esse rio sem pressa,

me chamava, chamava… em vão.

 

Pára! Escuta! Olha!

O mundo não cabe

nos teus planos desenhados a lápis.

 

Vês ali a amendoeira floresce.

E ouves o silêncio

entre dois gritos de pavão?

Isso… também eras tu,

e deixaste-o morrer

sem sequer lhe tocares.

 

Deus não construiu o mundo

com regras de gramática

Ele escreveu com luz,

não com cinzel em pedra.

Ele é puro verbo,

sem objecto, nem parêntesis.

E do seu sonho nasceram,

o arco-íris, a espiga,

este anseio meu e teu

que não cabe em regra nenhuma.

 

Contempla as escrituras,

mas não te enterres em ideias!

Não te expulses, tu mesmo, do Éden!

 

Solta as asas que manténs cativas…

Pois a alma vive do assombro

de ser vento, fogo,

e semente despenteada

ao sol do impossível.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

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O PERFECIONISMO CRIADOR DE ANGÚSTIA E INSATISFAÇÃO

Um Exame de Consciência para Elites-Governantes e Povo

A sociedade ocidental, doente do progresso, trocou a alma pela máquina, a virtude pelo algoritmo, e a transcendência pelo like. O resultado à vista é uma epidemia de vazios e cada vez mais doenças na sociedade ocidental de maneira a poder-se falar de um sistema que adoece o corpo e a mente dos cidadãos.

A Morte da Perfeição Virtuosa e o Nascimento do Perfeccionismo Funcional

A tradição clássica e cristã entendia a perfeição como uma harmonia entre corpo e alma, uma busca ética que elevava o indivíduo e a comunidade. O ser humano era visto como um microcosmo, a ponte entre o finito e o infinito, não como peça substituível num sistema mecanicista e tecnocrático.

Hoje, o perfeccionismo não é virtude, é exigência de funcionalidade. O psicólogo Thomas Curran revela que as tendências perfeccionistas aumentaram 60% desde 1990, não por aspiração interior, mas por pressão social. A sociedade não quer seres humanos completos, quer operários optimizados.

Abandonamos os sábios para fabricar técnicos. Renunciamos à felicidade em troca do gozo, o breve prazer do atrito entre engrenagens.

A Doença da Alma numa Sociedade Superficial

A Alemanha, símbolo da eficiência europeia, enfrenta uma crise de saúde mental: os custos com terapia psicológica disparam, enquanto outros tratamentos médicos são negligenciados. O Ocidente trata sintomas, não causas, porque não ousa questionar o estilo de vida que os produz.

Factos brutais: 1 em cada 4 europeus sofre de perturbações mentais (OMS) e a depressão será a principal causa de incapacidade até 2030.

Os jovens são os mais afetados: 40% da Geração Z relata ansiedade crónica como constata a American Psychological Association.

A espiritualidade e a religião, outrora pilares da resiliência psicológica, são ridicularizadas como “ópio do povo”. Mas o que oferecemos em troca? Redes sociais que vendem conexão falsa, likes que substituem amor próprio, e uma economia que consome almas.

A Ditadura do Ego Auto-Optimizado

O neoliberalismo e o socialismo materialista uniram-se para esvaziar o transcendente. Como resultado surgiu uma cultura do egoísmo consagrado: tínhamos antes a devoção a valores superiores (Deus, virtude, comunidade); temos agora a auto-obsessão de cada um se torna na melhor versão de si mesmo, ao serviço do sistema.

Mas o eu sozinho torna-se numa prisão. O ser humano não é uma mónada autossuficiente; ele precisa de raízes, sentido, e algo maior que si. Sem isso, a ansiedade e a depressão são inevitáveis e mais ainda quando o próprio Estado perde e desmotiva sentido de missão.

A felicidade vem de dentro, mas vendem-na apregoando que está nos bens, nos likes, no sucesso vazio. O gozo é passageiro; a angústia, crónica. Trata-se de procurar gozo e felicidade sem que uma exclua a outra.

A Elite que nos desumaniza

O saber e o poder concentram-se nas mãos de poucos: bancos, tecnocratas, gigantes digitais. Esta elite não quer cidadãos, quer consumidores obedientes.

A religião era um freio ético ao poder. Agora o poder encontra-se sem quem o controle e o mercado é quem mais ordena e dita a moral. A alta finança encontra-se em luta contra a baixa finança e contra as empresas locais que sistematicamente destroem. As cúpulas ideológicas e económicas querem ditar sozinhas a vontade das pessoas e o futuro dos povos. Disto não se fala porque são os factores que se encontram por trás dos diferentes regimes como a história nos tem ensinado!

Temos assim uma sociedade sem misericórdia, onde quem falha é descartado. Os fracos não são ajudados porque são ineficientes.

Reencantar a Vida: Um Apelo à Revolução Interior

Se queremos sobreviver como civilização, precisamos de: rejeitar o perfeccionismo tóxico (que exige perfeição, mas nega a profundidade); de restaurar o diálogo entre corpo e alma (a ciência sem espiritualidade é mutilada e mutila sem dor pelas populações); de desafiar a tirania do mercado sobre a consciência pois o humano não é um recurso.

A Europa está em falência cultural porque trocaram Deus pelo PIB, a alma por algoritmos, e a comunidade por solidão digital. Se não reagirmos, seremos escravos de um sistema que nos odeia.

Temos a alternativa: ou reencontramos o sagrado na vida, ou afundamo-nos na angústia de um mundo sem sentido.

Por amor também às próximas gerações temos que nos tornar críticos ao ouvir o clamor mudo dos povos, na consciência que a verdade dói, mas liberta. A alternativa é continuarmos doentes, sozinhos, e cada vez mais vazios.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

FOGOS DEVIDOS AO FACILITISMO E À SISTÉMICA FALTA DE GOVERNANÇÃO

Teorias sobre Incendiários dominam o Debate desculpando assim o Facilitismo e o Desinteresse partidário

A repetição anual dos incêndios e a narrativa dominante sobre incendiários misteriosos ou interesses económicos obscuros, muitas vezes, servem como explicação simplista para um problema muito mais complexo.

Portugal é o país da Europa que mais arde devido a uma combinação de fatores naturais, humanos e de gestão territorial. Por um lado, as condições climáticas e geográficas como o clima mediterrânico com verões quentes e secos, com temperaturas frequentemente acima dos 30°C e baixa humidade, criam condições ideais para incêndios; por outro lado a vegetação seca com muitas áreas de florestas densas com espécies altamente inflamáveis, como eucaliptos, pinheiros e mato , que ardem facilmente, tudo isto acrescido dos ventos fortes que favorecem a rápida propagação das chamas, são factores básicos da catástrofe que se repete.

A estes factores vem juntar-se o abandono rural e mudanças no uso do solo: o despovoamento do interior levou ao abandono de terras agrícolas, permitindo o crescimento descontrolado de vegetação seca; a falta de vegetação variada mista e a monocultura do eucalipto, altamente inflamável, domina grandes áreas devido à sua rentabilidade para a indústria de celulose.

Uma outra razão é a falta de gestão florestal eficiente, com a correspondente falta de limpeza dos montes: muitas zonas não têm manutenção regular (como desbaste e limpeza de matos), acumulando material combustível. Uma política virada só para os centros urbanos e para a região litoral tem descurado gravemente as regiões agrícolas e florestais o que conduz a uma legislação insuficiente porque embora existam leis, a fiscalização e aplicação são fracas, especialmente em terrenos privados abandonados.

A isto junta-se ainda o comportamento humano e incêndios criminosos: agricultores usam fogo para limpar terrenos, mas muitas vezes perdem o controlo e muitas vezes ligados a conflitos fundiários, seguros e passagem de terrenos florestais/agrícolas para urbanos.

Dificuldades no Combate aos Incêndios

Um grande obstáculo é o terreno acidentado com áreas de difícil acesso para os bombeiros. Por outro lado, a política disponibiliza recursos limitados, o que apesar dos esforços, especialmente do empenho sobre-humano de bombeiros, os meios de combate a incêndios nem sempre são suficientes para grandes ocorrências de fogo simultâneos.

O Mito do “Incendiário Anónimo”

É verdade que Portugal tem uma taxa elevada de incêndios criminosos (cerca de 30% dos casos, segundo o ICNF), mas esquece de referir que muitos são reincidentes ou negligentes (queimadas mal controladas, foguetes, cigarros), poucos são “pirómanos” ou criminosos organizados dado a maioria ter motivações locais (limpeza de terrenos, vinganças, conflitos entre vizinhos) e  falta uma investigação eficaz, ficando muitos casos sem culpados identificados, o que alimenta teorias conspiratórias.

É mais fácil culpar um “bode expiatório” (incendiários, empresas) do que admitir falhas estruturais (má gestão florestal, abandono rural).

A imprensa tende a destacar casos espetaculares (como os de Pedrógão Grande ou Odemira) ou de casos individuais, mas ignora as causas sistémicas.

A Indústria do Eucalipto e os Interesses Económicos

Nos interesses económicos da indústria haverá um fundo de verdade, mas não é a causa principal, pois o eucalipto arde facilmente, mas não é o único problema (o pinheiro-bravo, o mato seco e a carqueja também).

Também é verdade que as celuloses (Navigator, Altri) beneficiam do eucalipto, mas não há provas de que provoquem incêndios. Activistas atribuem responsabilidade direta às grandes celuloses, Navigator Company, Grupo Altri e a associação Celpa, nos incêndios florestais (1). O problema, porém, é a monocultura sem gestão: Muitos terrenos estão abandonados ou são malcuidados, mesmo os de grandes proprietários.

A crítica é legítima se feita ao modelo ao modelo florestal português, mas transformar isso numa “teoria da conspiração” tira o foco das soluções reais (como ordenamento territorial e fiscalização).

A Indústria do Combate a Incêndios

É um facto que o Estado (ou seja, nós os contribuintes) gasta milhões em meios aéreos e bombeiros, mas o problema é a prevenção, não o combate. Há quem diga que interessa que haja fogos para as empresas de combate ganharem dinheiro. Empresas privadas (como a Everjets) ganham contratos, mas não há indícios de que promovam incêndios.

Teorias da conspiração muitas vezes circulam no âmbito da especulação (com algum aspecto de verdade) mas o que verdadeiramente as mantem é a desconfiança generalizada em relação ao Estado e a grandes empresas (capitalismo) bem como a falta de transparência do Estado nos gastos públicos com incêndios ou com outros sectores da vida pública.

O Desinteresse político

Os incêndios repetem-se ciclicamente porque não há fiscalização eficaz em terrenos privados abandonados; as autarquias não têm recursos para impor a limpeza de matos; o Plano de Defesa da Floresta (PNDF) falha na execução (ex.: rede de faixas de gestão de combustível não é mantida) e ainda o que piora tudo é o êxodo rural; a política fomenta a emigração da gente do campo para as cidades e isso provoca mais terras abandonadas e mais mato acumulado.

Para populações mal-informadas e para partidos torna-se mais fácil e cómodo culpar “os incendiários” ou “as empresas” e louvar o esforço abnegado de bombeiros, do que exigir políticas de eficiência a longo prazo.

De facto, o que fata é consciência e coragem política para mexer em interesses (como o do negócio com a celulose) e investir em prevenção.

De resto, de uma maneira geral, a sociedade prefere o drama do momento (notícias de incêndios) em vez de exigir em privado e em público, mudanças estruturais (2).

O problema dos incêndios deveria tornar-se em questão de prioridade nacional (para isso partidos, candidatos a presidente, deveriam apresentar estratégias e projetos para uma solução real do facto dos incêndios). Imagine-se que em vez de Portugal comparticipar com milhões em despesas para a guerra na Ucrânia ou para instituições ecológicas mundiais empregava esse dinheiro, a mente e o esforço numa reflorestação e numa ecologia portuguesa sustentável. Afinal, que interesses estão em jogo e que cartadas valem mais? Não é primeira obrigação dos nossos deputados e governantes afirmar os interesses do seu povo e defendê-lo da cobiça alheia?

Para isso seriam necessários programas de redução de monoculturas inflamáveis e promover a diversificação das espécies sem perder de vista que o pinheiro é uma planta natural e que o sobreiro com ele contribuiria para o equilíbrio ecológico em parte das nossas florestas.

Obrigar a limpeza de terrenos com fiscalização pesada, mas implementá-la com apoios estatais, e projectos de reflorestação, dado tratar-se de uma incumbência nacional que tem também a ver com a natureza do território.

Enquanto isso não acontecer, o ciclo vai repetir-se – e as teorias sobre incendiários e conspirações vão continuar a dominar o debate.

Portugal é um temporal perfeito para incêndios: clima propício, vegetação inflamável, abandono rural, gestão florestal deficiente e factores humanos. A solução exigiria uma combinação de reflorestação com espécies menos inflamáveis, melhor gestão territorial, fiscalização rigorosa e investimento em prevenção.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10182

(1). Activistas: https://arquivo.climaximo.pt/2022/07/18/acao-eucalipto-e-fogo-e-a-navigator-a-altri-e-o-icnf-sao-responsaveis/

Aspecto complementar: A Navigator exporta cerca de 91% dos seus produtos para 130 países dos cinco continentes e a Altri exporta 530 milhões de euros (2019): https://www.publico.pt/2020/07/27/sociedade/noticia/altri-navigator-concorrentes-negocio-aliados-combate-incendios-1925982

(2) Fogos: um problema que se repete repetindo-se os mesmos lamentos: https://www.mundolusiada.com.br/portugal-atafegado-com-o-fumo-dos-fogos-e-da-corrupcao/

https://antonio-justo.eu/?m=201710

 

A DEMOCRACIA PORTUGUESA E A DIÁSPORA: UM CASO DE DESENCONTRO

O Voto dos Emigrantes não chega para legitimar mas questiona

A cerimónia de tomada de posse da Comissão Nacional de Eleições (CNE), no dia 25 de julho de 2025, trouxe à luz um problema que há muito se arrasta: a relação frágil entre a democracia portuguesa e os seus emigrantes. O Presidente da Assembleia da República (PAR) abordou, com pertinência, a alarmante abstenção de 80% e os 30% de votos nulos entre os portugueses no estrangeiro. Estes números não são apenas estatísticos, (1) eles são um grito de desencanto, um sintoma de um sistema que falha em incluir quem, mesmo longe, não só mantém Portugal no coração como concorre substancialmente para o seu desenvolvimento.

Mas por que razão os emigrantes portugueses, uma comunidade vibrante e economicamente relevante, se afastam das urnas? E o que diz este afastamento sobre a saúde da nossa democracia?

Quais são as Barreiras que afastam os Emigrantes das Urnas

O discurso do PAR identificou alguns dos obstáculos que desencorajam a participação eleitoral:

Uma burocracia excessiva exigindo registo prévio, prazos curtos e a necessidade de deslocação a consulados distantes transformam o ato de votar num verdadeiro obstáculo, não num direito;  a falta de informação concorre  para que muitos emigrantes desconheçam o impacto do seu voto ou desconfiam da eficácia do sistema político; o desencanto com a política que vem da  sensação de que os partidos veem a diáspora como um alibi eleitoral, e não como uma comunidade com necessidades específicas, mina a confiança.

Se o voto não produz efeitos visíveis, por que razão haveriam os emigrantes de se dar ao trabalho?

O que podemos aprender com outros Países?

Portugal não está sozinho neste desafio, mas outros países encontraram soluções eficazes que poderiam servir de inspiração:

O Brasil:  tem voto facultativo e simplificado, registo automático (sem renovação anual), voto presencial em consulados ou por correio; em 2022, cerca de 700 mil brasileiros no exterior votaram.

A França: tem voto por procuração (um eleitor pode delegar o seu voto a outro), tem equipas consulares móveis que se deslocam a cidades sem representação; em 2022, 50% dos franceses no Reino Unido votaram por procuração.

A Estónia: tem voto online seguro desde 2005 (com ID digital ou telemóvel) e deste modo redução drástica de custos logísticos; a participação dos emigrantes subiu de 6% (2005) para 44% (2023).

A Itália: tem 12 deputados e 6 senadores eleitos exclusivamente por emigrantes e deste modo representação direta no Parlamento, os partidos apresentam listas específicas para o exterior; em 2022, a participação foi de 30% (acima da média europeia).

Os EUA: têm voto postal em massa devido a envio automático de cédulas em alguns estados e a prazos longos (até 2 meses antes da eleição); em 2020, 65% dos votos de americanos no exterior foram postais.

O que falta a Portugal? Vontade política?

Os exemplos internacionais mostram que há soluções. Mas em Portugal, o problema persiste por falta de acção.

O voto eletrónico, já testado com sucesso noutros países, poderia ser implementado progressivamente e alguma região ou país de emigração poderia servir como início experimental.

O voto postal universal (hoje restrito a casos excepcionais) deveria ser uma opção normal real, sem necessidade de justificação. Poderia fazer parcerias com serviços postais internacionais (ex.: DHL) para entrega segura.

Consulados móveis, como os da França, poderiam chegar a comunidades distantes.

Mais deputados da emigração (4 são claramente insuficientes) e debates parlamentares focados na diáspora. Mas há um obstáculo maior: interesses partidários.

Razão por que o PS e Outros resistem à Mudança?

Rumores insinuam que os partidos tradicionais temem que a facilitação do voto no estrangeiro beneficie forças políticas mais centristas ou contestatárias. Os resultados das últimas legislativas confirmam essa tendência: O CHEGA venceu nos dois círculos da emigração (26% dos votos), a AD ficou em segundo lugar (16%), o PS, pela primeira vez, não elegeu nenhum deputado pela diáspora (2).

Deputados eleitos na Europa: José Dias Fernandes pelo CHEGA e José Manuel Fernandes pela AD.

Fora da Europa: Manuel Magno Alves pelo CHEGA e José de Almeida Cesário pela AD.

Se o sistema continuar a dificultar o voto, a abstenção manter-se-á alta e a legitimidade democrática, baixa.

A Diáspora merece mais que Promessas

A intervenção do Presidente da AR foi um primeiro passo, mas precisa de ações concretas:

Simplificar o voto (eletrónico, postal, por procuração), aproximar as instituições das comunidades emigrantes e combater a desinformação e envolver as associações da diáspora e jornais de papel ou online com verdadeira incidência no meio dos emigrantes.

Os emigrantes não são apenas “portugueses de segunda categoria”, são um pilar económico e cultural do país. Se a democracia portuguesa quer ser verdadeiramente inclusiva, tem de olhar para além-fronteiras.

Caso contrário, continuaremos a assistir a um divórcio perigoso entre Portugal e os seus filhos espalhados pelo mundo e a desperdiçar uma potencialidade já inserida nos diversos países. Eles são os verdadeiros embaixadores de Portugal.

Urge usar a diáspora como força económica e política. Se Portugal soubesse aproveitar o potencial da sua diáspora, não só eleitoral, mas também económico e cultural, poderia tornar-se num caso de estudo em democracia inclusiva. Basta querer e agir. Continuar encerrados em meros interesses de imagens individuais e partidárias (3) corresponderia a continuar cada vez mais na mesma não acompanhando os sinais dos tempos. Os partidos ainda se sentem tão seguros que se permitem exigir dos votantes sacrifícios desproporcionados. Encontramo-nos num processo de desenvolvimento cívico em que as instituições quer sejam religiosas quer políticas (se se querem afirmar-se) têm de se dirigir ao povo e não o povo a elas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Inscritos estavam 1.584.722. Votos em branco: 1,39 % com 87.598 votos; Votos nulos 2,73 % que representa 172.379. Só chegaram a Portugal 18,77% dos votos dos emigrantes e houve mais de 113 mil votos dos emigrantes nulos o que corresponde a 32 % da votação final. Ver entre outros https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%B5es_legislativas_portuguesas_de_2025_no_Estrangeiro

(2) https://www.rtp.pt/noticias/politica/chega-vence-circulos-eleitorais-do-estrangeiro-e-passa-a-ser-lider-da-oposicao_e1658037

(3) O Ensino da Língua Materna: https://antonio-justo.eu/?p=10089