O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

Um povo com medo aceita quase tudo.
Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso
não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

O medo inato: dom ambíguo da sobrevivência

Nem todo o medo é patológico ou manipulável. Há um medo originário, inscrito na carne, anterior à cultura e à ideologia. É o medo que protege: diante do abismo, do fogo, do predador, da ameaça real. Ele prepara o corpo para lutar ou fugir, aguça os sentidos, preserva a vida. Sem ele, não haveria humanidade.

Este medo é pré-moral: não é bom nem mau; é necessário. O problema começa quando o medo deixa de responder a perigos concretos e passa a ser alimentado por cenários, narrativas e projeções. O instinto torna-se imaginação ansiosa. A defesa transforma-se em suspeita permanente. Deste modo, uma emoção saudável pode ser colonizada.

O medo da imagem: de ser visto, julgado, rejeitado

Há um medo menos visível e talvez mais profundo: o medo do olhar do outro. O receio de não corresponder, de perder estatuto, de ser julgado pela sociedade. Este medo toca a nossa identidade e a imagem que construímos de nós próprios.

Aqui, o medo já não protege o corpo, mas protege uma máscara.
Tememos: perder reconhecimento, ser desclassificados, deixar de pertencer.

Este medo social cria conformismo, silêncio, cumplicidade passiva. Ele explica por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente sabem ser frágeis: discordar custa mais do que obedecer e pensar faz doer.

Existencialmente, este medo revela uma fragilidade profunda: quando a dignidade depende do aplauso, qualquer ameaça simbólica se torna insuportável.

O medo teológico: da confiança quebrada à idolatria da segurança

Na linguagem bíblica, o medo surge quando a confiança ontológica se rompe. Não é Deus que provoca o medo; é a perda da relação. A partir daí, o mundo torna-se perigoso.

Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro ou na justiça, ela substitui Deus pela segurança. E a segurança, quando absolutizada, torna-se ídolo. Tudo o que ameaça esse ídolo é demonizado.

O estrangeiro, o diferente, o dissidente deixam de ser pessoas: tornam-se símbolos do caos. O medo já não pergunta “o que é verdadeiro?”, mas “o que me protege?”.

O medo político-crítico: governa-se melhor quem treme

As elites políticas, económicas ou mediáticas conhecem bem esta dinâmica. O medo é uma ferramenta de governo porque: simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excpecionais.

Em contextos de guerra geopolítica, como no conflito na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções: medo do inimigo externo, medo do colapso económico, medo do isolamento e medo de questionar narrativas dominantes.

Não se trata de negar a complexidade nem a gravidade real da guerra. Trata-se de reconhecer que o medo, quando não é pensado, torna-se argumento político. Ele transforma cidadãos em espectadores emocionais, prontos a aceitar sanções, rearmamentos, censuras ou sacrifícios sociais sem debate proporcional.

O medo deixa de ser reação a um perigo e passa a ser condição permanente de governo.

Pensar o medo: o gesto verdadeiramente subversivo

O problema não é sentir medo. O problema é não o interrogar.

Pensar o medo é perguntar: é proporcional ao perigo? Quem ganha com ele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe?

Quem pensa o seu medo não se torna violento. Torna-se livre. E a liberdade é sempre desconfortável para quem governa através da ansiedade.

Parábola do vale enevoado

Havia um vale cercado por montanhas. Durante gerações, as pessoas atravessavam-no para chegar ao outro lado, onde havia água e árvores. Um dia, uma névoa começou a descer lentamente.

No início, ninguém se preocupou. Mas alguns disseram:
E se houver monstros na névoa?”

Outros começaram a ouvir ruídos que sempre existiram, mas que agora pareciam ameaçadores. Um grupo construiu uma torre e declarou:
Só nós vemos o que está escondido. Sigam-nos e estarão seguros.”

A cada dia, a névoa parecia mais densa, não porque aumentasse, mas porque ninguém ousava atravessá-la. As crianças nasceram a ouvir que o vale era mortal. Nunca tinham visto monstros, mas tinham aprendido a temê-los.

Um idoso, que ainda se lembrava do caminho, disse um dia:
A névoa não mata. O que mata é esquecer para onde se ia.”

Poucos o ouviram. Mas os que o seguiram atravessaram lentamente o vale. Descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. Do outro lado, viram algo curioso: a torre continuava de pé, mas sem ninguém dentro. Ela só funcionava enquanto todos acreditavam que era necessária.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

RESUMO:

O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

O medo humano manifesta-se em múltiplas dimensões que vão do instinto biológico à manipulação política. Compreender esta complexidade é essencial para distinguir entre proteção legítima e submissão instrumentalizada.

O medo como instinto vital

O medo originário é um mecanismo de sobrevivência necessário, inscrito biologicamente antes de qualquer construção cultural. Ele protege-nos de perigos reais e prepara o corpo para responder a ameaças concretas. Este medo é pré-moral e funcional. O problema surge quando deixa de responder a perigos objetivos e passa a ser alimentado por narrativas, cenários projetados e imaginação ansiosa, transformando-se num estado permanente de suspeita.

O medo social e a tirania da imagem

Existe um medo mais subtil mas igualmente poderoso: o receio do julgamento alheio. Tememos perder reconhecimento, estatuto e pertença social. Este medo já não protege o corpo, mas sim uma máscara identitária que construímos. Ele gera conformismo, silêncio e cumplicidade passiva, explicando por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente reconhecem como frágeis. Discordar exige mais coragem do que obedecer, e o pensamento crítico torna-se doloroso quando a dignidade depende do aplauso externo.

A dimensão teológica: da confiança à idolatria

Na perspectiva bíblica, o medo surge quando se rompe a confiança ontológica fundamental. Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro e na justiça, substitui essas âncoras pela segurança absoluta, que se transforma em ídolo. O diferente, o estrangeiro e o dissidente deixam de ser pessoas para se tornarem símbolos do caos. O medo deixa de perguntar “o que é verdadeiro?” para apenas questionar “o que me protege?”.

O medo como ferramenta de poder

As elites políticas, económicas e mediáticas reconhecem o medo como instrumento eficaz de governo porque ele simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excecionais. Em contextos como a guerra na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções, transformando cidadãos em espectadores emocionais dispostos a aceitar sanções, censuras e sacrifícios sem debate proporcional. O medo deixa de ser reação pontual para se tornar condição permanente de governação.

Pensar o medo como acto de libertação

O verdadeiro problema não é sentir medo, mas não o interrogar. Pensar o medo exige perguntar: é proporcional ao perigo? Quem beneficia dele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe? Quem pensa criticamente o próprio medo não se torna violento, mas livre. E essa liberdade é sempre incómoda para quem governa através da ansiedade coletiva.

A parábola do vale enevoado

O autor conclui com uma parábola ilustrativa: num vale cercado por montanhas, uma névoa desceu e alguns começaram a falar de monstros invisíveis. Uma torre foi erguida por quem prometia segurança. As gerações seguintes cresceram temendo atravessar o vale, não pela névoa em si, mas pelas narrativas que a rodeavam. Um idoso que se lembrava do caminho ensinou que “a névoa não mata; o que mata é esquecer para onde se ia”. Os que ousaram atravessar descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. A torre permanecia de pé, mas vazia, funcionava apenas enquanto todos acreditavam na sua necessidade.

Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE

Medo, confiança e o sagrado da infância

O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.

A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.

O medo como experiência originária

Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta, prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.

Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde fantasia e realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.

A infância como lugar do sagrado

A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.

Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.

Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.

Uma memória: rezar no escuro

Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro: sombras, ruídos, imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas, de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.

Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo mudava: o espaço deixava de ser vazio, o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.

São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.

Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.

Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar. funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.

Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida

A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.

Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.

Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.

Quando a confiança desaparece, o medo governa

Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.

Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.

Acender a luz sem destruir a noite

A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.

A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O MEDO NO ÂMBITO TEOLÓGICO-FILOSÓFICO E EXISTENCIAL

O medo como matéria teológica: entre a queda e a idolatria

Na tradição bíblica, o medo surge muito cedo. A primeira vez que o ser humano diz “tive medo” (Gn 3,10) não é diante de um inimigo externo, mas diante de Deus e esse medo nasce da ruptura da relação, não da ameaça real. Teologicamente, o medo não é apenas uma emoção: é um sintoma de desconfiança ontológica. Quando a confiança fundamental se quebra, o mundo torna-se hostil.

O medo raramente é medo de Deus; é antes o medo de perder o lugar, o nome, a segurança, a identidade. Aqui, o medo torna-se idolátrico: absolutiza bens relativos (território, cultura, economia, pureza) e transforma-os em deuses a proteger. O outro, o estrangeiro, o diferente, deixa de ser próximo e passa a ser ameaça sacrificial.

Por isso, teologicamente, grande parte do medo contemporâneo não é santo temor, mas medo que nasce da idolatria da segurança. E tudo o que se idolatra exige vítimas.

O medo como problema filosófico: o outro como espelho do vazio

Filosoficamente, o medo raramente é proporcional ao perigo real. Ele revela mais sobre quem teme do que sobre o que é temido.

Desde Hobbes, sabemos que o poder aprende rapidamente que o medo é um instrumento de governo: o medo gera obediência, simplificação do pensamento, desejo de muros. Mas esse medo só funciona porque encontra terreno fértil: uma identidade frágil.

Nas nossas terras, o medo do estrangeiro, do migrante, do “outro cultural” não nasce apenas de factos empíricos. Nasce de algo mais profundo: o medo de já não sabermos quem somos.

Quando uma comunidade tem uma identidade viva, histórica e criativa, ela dialoga. Quando essa identidade se esvazia, ela defende-se agressivamente. O outro torna-se insuportável porque revela o nosso próprio vazio. Assim, o medo torna-se irracional não por ser infundado, mas por ser deslocado: teme-se fora o que não se consegue enfrentar dentro.

O medo como experiência existencial: herança, memória e inconsciente colectivo

Existencialmente, nenhum medo nasce do nada. Há medos herdados: invasões passadas, pobreza, humilhações históricas, colonizações, ditaduras, crises económicas. Estes traumas ficam gravados no corpo social e reaparecem quando a estabilidade vacila.

Nesse sentido, o medo não é pura xenofobia nem puro racismo, embora facilmente se transforme neles. Ele é muitas vezes memória não elaborada. Quando não se pensa o trauma, ele pensa por nós.

Mas aqui surge o ponto decisivo: compreender a origem do medo não o justifica eticamente.

O medo pode ser explicável; não é, por isso, inocente. Ele torna-se moralmente problemático quando se converte em critério de decisão política, em narrativa identitária ou em desculpa para desumanizar.

Há justificação palpável para este medo?

Sim, há riscos reais: tensões sociais, desafios económicos, dificuldades de integração, falhas políticas graves. Negá-los seria ingénuo.

Mas a pergunta honesta não é “há risco?” A questão a pôr-se é: o medo que sentimos é proporcional, orientado para soluções ou instrumentalizado para controlo?

Na realidade, quando o medo, generaliza indivíduos em massas, transforma exceções em regra e oferece muros em vez de pensamento, então sim, ele deixou de ser prudência e tornou-se ferramenta de poder.

Hoje forças globalistas tentam destruir tudo o que é capaz de dar estabilidade:  pessoas soberanas, família, pátria e especialmente Deus porque dá consistência interna a tudo isto, para lá das instituições.

O medo como lugar de decisão espiritual

Teológica e existencialmente, o medo é sempre um cruzamento: pode levar ao fechamento ou à conversão. A tradição cristã não promete ausência de medo, mas insiste numa frase recorrente: “Não tenhais medo”, não como anestesia, mas como acto de resistência espiritual.

Nas nossas terras, talvez não temamos tanto o outro. Talvez temamos não sermos capazes de hospedar o futuro.

E os poderosos sabem: um povo com medo aceita quase tudo. Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso, não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

QUANDO A CRÍTICA SE TORNA «POPULISMO»

Imigração, Democracia e a Crise da Honestidade política na Europa

O debate sobre imigração na Europa entrou numa fase preocupante. Não porque faltem dados, experiências comparadas ou alertas internos e externos, mas porque a crítica deixou de ser discutida e passou a ser deslegitimada. Hoje, questionar a política migratória da União Europeia é, com demasiada frequência, rotulado como “populismo”, “extremismo” ou “ameaça à democracia”. Esta estratégia não resolve problemas, apenas os silencia.

A imigração em larga escala é um fenómeno complexo, com impactos profundos na coesão social, na segurança, nos sistemas de bem-estar e, sobretudo, na arquitetura constitucional dos Estados. Tratar estas questões como tabu não é sinal de maturidade democrática, mas de fragilidade política.

A União Europeia tem adotado decisões estruturais em matéria migratória, como o Pacto sobre Migração e Asilo, sem um mandato democrático claro dos povos europeus. Não houve referendos, o debate nacional foi frequentemente marginalizado e as objeções foram apresentadas como moralmente suspeitas. Este afastamento entre decisão política e soberania popular é um dos sinais mais claros do défice democrático em curso.

O problema agrava-se quando relatórios oficiais sobre o “Estado de Direito” passam a insinuar que a contestação destas políticas constitui, em si mesma, uma ameaça à democracia. Esta inversão é perigosa. Numa democracia constitucional, o dissenso não é um problema: é uma condição de funcionamento. Questionar políticas públicas não enfraquece o Estado de direito; pelo contrário, fortalece-o.

O uso do termo “populismo” tornou-se particularmente problemático. Não se trata de um conceito jurídico nem de uma categoria científica precisa. Na prática, funciona como rótulo político destinado a desqualificar posições incómodas sem responder aos seus argumentos. Quando conceitos vagos substituem o debate racional, o espaço público empobrece e a confiança nas instituições deteriora-se.

A mesma lógica aplica-se à reação europeia às críticas vindas dos Estados Unidos. Advertências norte-americanas sobre imigração em massa, fragmentação social ou erosão da democracia são frequentemente descartadas como ingerência ideológica ou atraso cultural. Esta atitude é, no mínimo, intelectualmente desonesta. Os EUA têm uma longa experiência histórica com imigração, sucessos e fracassos, e uma tradição constitucional que valoriza fortemente a liberdade de expressão e o pluralismo político. Ignorar estas advertências não é sinal de autonomia europeia, mas de recusa em aprender.

O mais preocupante é que, ao difamar sistematicamente a crítica, a União Europeia corre o risco de se transformar numa democracia apenas formal: eleições existem, instituições funcionam, mas o debate real é condicionado por barreiras morais e simbólicas. As decisões são apresentadas como tecnicamente inevitáveis ou moralmente superiores, e não como escolhas políticas discutíveis.

A imigração não é, em si, um problema. Torna-se problemática quando é descontrolada, quando ignora capacidades reais de integração e quando entra em tensão com ordens constitucionais existentes. Discutir estes limites não é xenofobia nem populismo; é responsabilidade democrática.

Se a Europa quiser preservar os valores que afirma defender, concretamente, democracia, pluralismo, Estado de direito, terá de abandonar a política da estigmatização e regressar à política do argumento. Terá de aceitar que a soberania popular não é um obstáculo moral, mas o fundamento da legitimidade. E terá de compreender que silenciar a crítica não elimina os problemas: apenas os empurra para um futuro mais conflituoso.

O verdadeiro risco para a Europa não é o populismo. É a normalização de um défice democrático disfarçado de virtude moral.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: