A RESSONÂNCIA DO “OBRIGADO”

O outono pintava de ocre e carmesim os jardins do antigo sanatório, agora convertido em residencial para seniores. O Dr. Eduardo Almeida, neurologista aposentado, observava a paisagem da varanda do seu quarto. O seu mundo, outrora palco de diagnósticos certeiros e intervenções precisas, reduzia-se agora àquele espaço e àquela vista. Um frio interior, um “cortisol” da alma, como ele próprio, irónico, definia, mantinha-o num estado perpétuo de luta surda contra a irrelevância. A sua mente, treinada para o cepticismo científico, via a vida como uma sucessão de reações bioquímicas, onde conceitos como “gratidão” lhe pareciam placebos para mentes fracas.

A sua rotina era solitária. Até que, numa tarde, um novo habitante chegou à residencial. Apresentou-se como António. Trazia consigo uma serenidade palpável, uma luz nos olhos que contrastava com a penumbra do lugar. António fora educado num mosteiro na sua juventude, e trazia consigo hábitos antigos.

Todas as noites, pontualmente às nove, António parava à porta do Dr. Almeida. Não impunha a sua presença, mas simplesmente ali ficava, com um sorriso tranquilo.
– Boa noite, Doutor – dizia ele, com uma voz que era uma carícia.
O Dr. Almeida limitava-se a anuir com a cabeça, num gesto seco. Mas António insistia, gentilmente.
– Hoje, o sol entrou pela minha janela e aqueceu o chão. Fui grato por esse momento de graça. E o Doutor, teve algum instante pelo qual se sinta agradecido?

Eduardo revirava os olhos. “Instantes de graça?”, pensava. “A única coisa pela qual poderia ser grato é que a minha artrose não doeu tanto hoje.” Mas a persistência serena de António começou a criar uma fenda na sua armadura. Ele lembrava-se do texto que lera sobre gratidão, daquelas ideias que considerara “pensamento positivo”. No entanto, algo no tom de António ecoava aquelas palavras: “a energia da gratidão dá saúde e amplia os nossos próprios horizontes”.

Uma semana depois, num dia particularmente cinzento, o Dr. Almeida, movido por um impulso que não conseguiu decifrar, murmurou em resposta:
– Bom, a sopa… a sopa estava quente. – Soou ridículo aos seus próprios ouvidos.
O rosto de António, porém, iluminou-se.
– Que belo motivo! O calor que nutre o corpo e a alma. Boa noite, Doutor. Durma em paz e grato.

Naquela noite, pela primeira vez em anos, Eduardo adormeceu sem a habitual ruminação de pensamentos negativos. A simples admissão de um pequeno conforto, por mais ínfimo que fosse, operara uma magia subtil. Era como se uma serotonina espiritual, daquelas de que falava Emmons, lhe tivesse sido ministrada.

Os dias transformaram-se. A prática do “Boa Noite” tornou-se um ritual. Eduardo começou a procurar, conscientemente, motivos de agradecimento: o canto de um pássaro, a memória remota de um caso médico bem-sucedido, a gentileza de uma enfermeira. A sua “antena” interior, até então sintonizada na frequência estática do desdém, começou a captar os “sinais electromagnéticos e espirituais” de beleza à sua volta. A sua perceção da realidade alterava-se, reescrevendo, como sugeria o texto, uma memória ancestral que sempre o inclinara para o pessimismo.

O clímax desta transformação deu-se numa manhã de Natal. O salão comum estava decorado, mas o ambiente era da melancólica obrigatoriedade. O Dr. Almeida, sentado num canto, observava os outros residentes, muitos deles mergulhados no seu isolamento. Então, viu António. Com a mesma serenidade de sempre, António aproximava-se de cada um, não para oferecer um presente material, mas para lhes sussurrar algo ao ouvido. Em cada pessoa que ouvia aquelas palavras, observava-se uma mudança: os ombros relaxavam, um sorriso tímido brotava, os olhos marejavam. A gratidão tornava-se presente como uma lua que ilumina o caminho na noite.

Intrigado, Eduardo esperou que António se aproximasse.
– O que estás a dizer-lhes? – perguntou, em voz baixa.
António fitou-o, e os seus olhos pareciam conter a luz de todas as estrelas da noite de Natal.
– Estou apenas a agradecer-lhes.
– Agradecer? O quê? Mal os conheces!
– Agradeço-lhes simplesmente por existirem. Por fazerem parte deste todo. Por estarem aqui e me permitirem partilhar este espaço e este momento com eles. É o meu exercício do “Dia da Boa Morte” (1): agradecer a vida que nos é dada, hoje, agora, intensamente.

António pousou a mão no ombro de Eduardo.
– E a si, Doutor, quero agradecer profundamente.
Eduardo ficou estupefacto. Surpreendido por ter sido agradecido. Ele, que se considerava um fardo, um homem amargo no outono da vida.
– A mim? Pelo quê, pelo amor de Deus?

António sorriu, num gesto de pura e simples fraternidade.
– Por me ter ouvido. Por ter aceitado o meu “Boa Noite”. Por ter permitido que eu praticasse a minha gratidão consigo. A gratidão, para ser completa, precisa de ser partilhada. Precisa de um outro para quem se direcionar. Você, ao aceitar o meu agradecimento, tornou-o real. Foi o recipiente que permitiu que a minha gratidão se manifestasse no mundo. Por isso, sinto-me em dívida consigo. Obrigare (2). Sinto-me ligado a si.

O Dr. Almeida não conseguiu conter as lágrimas. Compreendeu, naquele instante, a dimensão espiritual daquela virtude. Não era uma mera transação de favores; era uma força de ligação, uma ressonância do amor que unia as almas. Ele não era um mero recebedor, mas um elemento vital no circuito da graça. A gratidão de António não o colocava numa posição inferior, mas elevava-os a ambos, criando um laço de fraternização inexplicável.

Naquela noite, o Dr. Eduardo Almeida foi quem procurou António. Parou à sua porta, e com uma voz embargada, mas firme, disse:
– António, boa noite. Hoje… hoje sou grato por ti. Sou grato por teres surpreendido esta alma velha e céptica com o teu “obrigado”. Iluminaste a minha noite.

E, sob a luz prateada da lua, que como uma lâmpada divina clareava as sombras da dúvida, os dois homens trocaram um olhar. Não havia juízo, não havia análise, não havia bem nem mal. Havia apenas, tal como o texto previra, a calorosa, luminosa e amorosa ressonância energética que tudo inundava. Eram, finalmente, gratos e portanto, finalmente, felizes, por lhes ser dada a graça do reconhecimento de interdependência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Alusão ao hábito que tínhamos nos Salesianos de uma vez por mês fazermos o “Exercício da Boa Morte”. O “Dia da Boa Morte” refere-se ao “Exercício da Boa Morte”, uma prática espiritual mensal introduzida por São João Bosco para preparar a comunidade e cada um para o encontro com Deus no momento da morte.  Isto incentivava a revisão da vida através do exame de consciência, a organização pessoal de modo a deixar o nosso interior e exterior em ordem.

(2) A palavra “obrigado” deriva do latim obligatus, particípio do verbo obligare, que significa “ligar”, “atar” ou “ficar preso por uma obrigação”. A palavra dirigida uma pessoa que é com que um comutador que liga, “estar ligado”

Gratidão além de virtude é um remédio eficaz: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/gratidao-alem-de-virtude-e-um-remedio-eficaz

A VILA E O OCEANO: UM BRAMIDO NOS AREAIS (Conto filosófico)

Numa pequena vila de pescadores, três amigos discutiam à beira-mar.

Pedro, o Poeta, olhando o horizonte:

– Para mim, o mar é tudo. O mar é os peixes, as ondas e até a areia molhada. Se tudo é mar, então tudo é divino. Isso é o panteísmo: não há fora, só há mar.

Joana, a Céptica, balançou a cabeça:

– Mas se o mar é tudo, até o peixe podre seria divino. Isso não pode ser certo.

António, o Velho Pescador, sorriu e respondeu:

– Eu penso diferente. O peixe vive no mar, mas não é o mar. O mar é maior que ele. O peixe está no mar, o mar está no peixe, mas o mar não se reduz ao peixe. Isso é o panenteísmo: tudo está em Deus, mas Deus é mais que tudo.

Joana arregalou os olhos:

– Então o mar envolve e sustenta, mas não se confunde com os peixes?

Pedro repensou:

– E nós, onde ficamos?

O silêncio dos três era uma concha que ampliava o rugir do mar, e naquele som das vagas mergulharam numa epifania muda de que Deus é o mar, mas é também o além-mar; um oceano sem margens onde todos os significados se dissolvem e renascem. A noite, encimada por uma lua solene, tecia claros e escuros não apenas na paisagem, mas nos recônditos dos três corações, ainda assombrados pelo bramido que confundia a criação com o Criador, deixando-os a balancear os seus espíritos entre o divino no mundo e o mundo no divino. E, ainda que o diálogo lhes houvesse trazido alguma claridade, Pedro sentiu naquela noite uma maré de ideias em redemoinho, que arrebatou consigo o seu sono.

No dia seguinte, à tardinha, os amigos voltaram a conversar.

Pedro, insistiu:

– Mas se o mar é Deus, eu sou só uma gota sem importância.

António, sorriu e respondeu:

– Não, Pedro. Para nós cristãos o mar verdadeiro é trinitário. Ele não é solidão sem forma, mas comunhão viva. O Pai é como a fonte que gera as correntes, o Filho é o rio que mergulha no mar e nos leva de volta, e o Espírito é a água que circula em todos os peixes e ondas.

Joana, refletiu:

– Então cada um de nós é peixe vivo nesse mar, único, mas ligado aos outros. O mar envolve-nos, mas não apaga a nossa forma. Não somos gotas perdidas, mas pessoas chamadas pelo nome.

António concluiu:

– Exato. Se a Joana fosse apenas gota dissolvida, não haveria amor, nem responsabilidade. Mas porque é pessoa em inter-relação, tem valor e dever. O oceano trinitário não apaga quem és, faz de ti parte de uma dança maior, sem perderes a tua voz.

Os três calaram- se diante das ondas.

Já não era apenas um mar (1).

Era um mistério de amor que os chamava pelo nome e os envolvia, sem jamais os apagar.

António da Cunha Duarte Justo

 

Pegadas do Tempo

(1) Assim, o panenteísmo cristão mostra-se como uma visão do mundo em que Deus está em tudo, mas tudo é chamado a viver em comunhão pessoal com Ele. Diferente do panteísmo, que apaga a pessoa na totalidade, o panenteísmo trinitário preserva a liberdade, a dignidade e a responsabilidade humana diante do cosmos. O mistério trinitário pode ser visto como a chave de leitura da existência: uma “fórmula da realidade” que sustenta o mundo, valoriza a pessoa e orienta a história para a plenitude em Cristo. Para os cristãos, Cristo é como a ponte: Ele mergulha no mar connosco e leva-nos para o coração do oceano infinito. E o Espírito é como a água que circula em cada peixe, mantendo-o vivo.

Ver artigo sobre o assunto: O OCEANO EM NÓS em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10306

PEGADAS DO TEMPO

Não sou só um núcleo, um simples ser,
Sou um verso que o mundo veio escrever.
Antes do berro, no silêncio uterino,
Jazia o fado, um destino divino.

O tempo-espaço, primeira masmorra,
Que liberta a alma e a segura por fora.
Dois seres, um laço, um íntimo desvelo,
Plantaram em mim o futuro no efémero.

Depois veio o mundo, com seus muitos braços,
Normas, culturas, risos e embaraços.
A educação, tecedora de grilhões,
Moldou meus contornos, cosendo opiniões.

Sou Geografia, sou História e Arte,
Sou um mapa de sinais a abrir-se em parte.
Sou Filosofia, sou Política e Mística,
Uma teia de campos que me classifica.

Leio os sinais de trânsito do enquadramento,
As barreiras do corpo, do social lamento.
E aprendi que não basta a inteligência pura,
É preciso esperteza na seara escura.

Para ser a onda que do mar se ergueu,
A rosa única que o jardim teceu.
Há uma tensão no que é tido por normal,
No aceitável, no posto no jornal.

Quem questiona, na margem fica,
Mas sem margem, o centro nada significa.
É no conflito, por mais que doa,
Que a vida avança, que a alma brota e voa.

Não se confunda a Alma com a paisagem,
Não se reduza o Eu a uma miragem.
Que o Ego sozinho é grão de areia fina,
Que o vento leva e nada determina.

A verdadeira essência, sabedoria antiga,
É partir do Eu, mas rumo ao divino
Do Nós, da comunidade, do chão compartilhado,
Onde o ser é Pessoa, em amor entrelaçado.

E assim se forma, na luz e na sombra,
A Pegada do Tempo que me assombra.
Sou eu mesmo e o outro, circunstância e vontade,
Na vastidão do ser, buscando a liberdade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

 

AS FRONTEIRAS QUE NOS FORMAM: ENTRE O SER E O ESTAR EM SOCIEDADE

O Paradoxo das Limitações que libertam

Vivemos numa época de profunda desorientação identitária. Muitas pessoas sentem-se perdidas entre o que são verdadeiramente e o que a sociedade espera delas, oscilando entre a conformidade absoluta e a revolta sem rumo. Esta tensão existencial não é acidental, é o reflexo de uma questão fundamental: como poderão as limitações que nos cercam, paradoxalmente, tornar-se a chave para a expressão autêntica da nossa personalidade?

As fronteiras/limites que nos enquadram não são apenas obstáculos a superar, mas sim as próprias condições que tornam possível a nossa existência única e a nossa capacidade de nos relacionarmos com o mundo de forma consciente e criativa.

A Ipseidade como Núcleo do Ser em Construção

A nossa identidade, aquilo a que podemos chamar “ipseidade “forma-se na intersecção entre o núcleo mais íntimo do nosso ser e as circunstâncias que nos envolvem desde a concepção. Não somos seres abstratos, flutuando num vazio existencial, mas criaturas incarnadas, situadas no tempo e no espaço, condicionadas por uma miríade de factores que começam a moldar-nos antes mesmo do primeiro suspiro.

O espaço-tempo constitui a primeira e mais fundamental dessas fronteiras. Nascemos numa época específica, num lugar determinado, fruto do encontro íntimo entre dois seres que carregam consigo não apenas genes, mas toda uma herança cultural, psicológica e social. Este não é um limite empobrecedor, mas sim o solo fértil onde a nossa singularidade pode germinar. Não somos nem pura essência nem mera circunstância, somos a dança criativa entre ambas e a que a alma dá consistência.

As Circunstâncias como Possibilidades

Após o “berro” do nascimento – essa primeira afirmação sonora da nossa existência – começamos a ser moldados pela educação, pela cultura, pelas estruturas sociais que nos acolhem ou nos rejeitam. Estas influências penetram em múltiplas dimensões da nossa experiência: desde a arte que apreciamos até à forma como nos relacionamos politicamente com o mundo, passando pela linguagem que falamos, pela música que nos emociona, pelos códigos visuais que interpretamos.

Seria tentador ver estas influências como limitações que nos aprisionam numa identidade pré-fabricada. Contudo, elas funcionam antes como “sinais de trânsito” que nos orientam no complexo território social. Reconhecer estas fronteiras, sejam elas físicas, culturais, psicológicas e sociais, não significa submeter-nos cegamente a elas, mas compreender o mapa do território onde podemos mover-nos com maior ou menor adequação.

A Inteligência da Adaptação crítica

Não basta ser inteligente no sentido puramente cognitivo; é preciso desenvolver uma forma de “esperteza humana” que nos permita navegar conscientemente entre as normas estabelecidas e as nossas aspirações pessoais. Esta capacidade implica reconhecer que as fronteiras são simultaneamente limitações e possibilidades, tal como a margem de um rio, que ao mesmo tempo contém as águas e lhes dá direção. De facto, não há liberdade sem resistência, nem personalidade sem delimitação.

A tensão entre o ser profundo (o “mar infinito” da nossa essência) e a personalidade que as circunstâncias nos levam a desenvolver (a “onda personalizada”) não é um problema a resolver, mas uma dinâmica criativa a abraçar. É desta tensão que nasce a nossa capacidade de expressão autêntica, como o botão da rosa que desabrocha precisamente devido às condições específicas que o rodeiam.

O Questionamento como Força vital

A questionação do que é considerado normativamente aceitável pode, efectivamente, conduzir alguns à marginalização social. Mas esta aparente ameaça revela uma verdade profunda: sem margem não há centro, sem tensão não há vitalidade relacional. O espírito crítico, mesmo quando desconfortável, constitui parte essencial daquilo a que Henri Bergson chamava “élan vital”, a força criativa que impulsiona tanto o desenvolvimento individual como o progresso social sustentável.

Os questionadores, mesmo quando designados de travessos ou atravessados porque incompreendidos, desempenham uma função vital: impedem que a sociedade se cristalize em formas rígidas e moribundas. A sua aparente “desadaptação” pode ser, na verdade, uma forma superior de adaptação, não ao que existe, mas ao que pode vir a existir.

Do Eu ao Nós: A Reciprocidade fundamental

A individuação autêntica não acontece no isolamento, mas na relação. É essencial partir do “eu” através do “nós”, reconhecendo que a comunidade não é apenas o contexto onde aparecemos, mas a própria condição que torna possível o nosso aparecer e o nosso caminhar consciente.

Esta perspectiva contrasta com duas tendências problemáticas da modernidade: por um lado, o individualismo exacerbado que ignora as condições comunitárias da existência; por outro, a identificação total com as circunstâncias envolventes, que reduz a pessoa a mero produto do meio.

O Perigo da Redução da Alma às Circunstâncias

O grande equívoco contemporâneo consiste em identificar completamente o eu – a ipseidade – com as circunstâncias que o rodeiam. Quando isto acontece, corremos o risco de ter um ego inflado, mas vazio, em vez de um eu substancial, reduzindo-nos a meros elementos funcionais numa engrenagem social que perdeu o sentido tanto da pessoa individual como da comunidade autêntica.

Esta redução empobrece simultaneamente a experiência pessoal e a vida social. Perdemos a capacidade de contribuir genuinamente para o bem comum porque perdemos contacto com aquilo que, em nós, é verdadeiramente nosso e, portanto, verdadeiramente próprio para os outros.

Abraçar as Fronteiras como Condição de Liberdade

As fronteiras que nos delimitam não são prisões, mas sim as condições necessárias para que possamos existir como seres únicos e relacionais. Como um instrumento musical precisa de cordas tensionadas entre pontos fixos para produzir música, também nós precisamos das limitações que nos constituem para podermos expressar a sinfonia única da nossa existência.

O desafio não é eliminar estas fronteiras, que seria uma tarefa impossível e empobrecedora, mas aprender a habitá-las criativamente, reconhecendo nelas tanto as possibilidades como as responsabilidades que definem o nosso lugar no mundo.

Para aqueles que se sentem perdidos entre as expectativas sociais e os anseios pessoais, a resposta não está na fuga nem na submissão total, mas na compreensão de que somos precisamente o resultado criativo da tensão entre o infinito do nosso ser e o finito das nossas circunstâncias. É nesta tensão, abraçada conscientemente, que encontramos tanto a nossa identidade mais autêntica quanto o nosso contributo mais valioso para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

As fronteiras que nos delimitam são, afinal, as próprias condições que tornam possível a expressão da personalidade do nosso ser. Não apesar delas, mas através delas, descobrimos quem somos e como podemos estar no mundo de forma plena e responsável.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil. O que mais preocupa não é só o crescimento: é o facto de que, ano após ano, a sociedade se habitua à estatística e não se indigna como deveria.

A realidade portuguesa

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1).

Um problema global, não apenas alemão ou português

Ainda que estes números se refiram especificamente à Alemanha e a Portugal , é fundamental sublinhar que o abuso sexual infantil é uma realidade mundial. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 5 mulheres e 1 em cada 13 homens afirma ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante a infância.

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado.

A cegueira da sociedade e a responsabilidade dos media

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas.  Muitos casos de abuso sexual com crianças dão-se no ambiente familiar e de amigos. É mais fácil fingir que não vemos. É mais cómodo acreditar que são “casos isolados” e não um fenómeno estrutural.

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores. Cada omissão, cada desvio de olhar, cada desculpa serve de escudo para que crimes continuem a ser cometidos.

Também o jornalismo não pode fugir à sua responsabilidade. Com demasiada frequência, a cobertura mediática do abuso infantil transforma-se em mais uma notícia de choque que dura 24 horas e desaparece no rodapé. O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação. O resultado é uma sucessão de títulos que chocam, mas pouco transformam.

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos.

Uma questão de dignidade e urgência de uma mudança

O combate ao abuso infantil não se resume a estatísticas nem a reportagens esporádicas. É preciso investir em mecanismos de prevenção e de denúncia eficazes e acessíveis, em programas de educação que ajudem crianças a reconhecer situações de risco, e em apoio psicológico que não revitimize quem já sofreu.

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares.

Enquanto a sociedade preferir olhar para o lado e continuar a tratar o abuso sexual infantil como uma vergonha escondida em vez de um crime hediondo a ser combatido, estaremos todos, sociedade, política e comunicação social, a falhar com aqueles que menos se podem defender. Precisa-se de uma mudança de consciência colectiva. É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O número, porém, vai muito além das estatísticas policiais. O mesmo estudo do INE estimou que cerca de 176 mil adultos entre os 18 e 74 anos sofreram abuso sexual antes dos 15 anos. Destes, mais de 70% nunca falaram com ninguém sobre o que aconteceu; apenas 6,6% chegaram a recorrer a entidades oficiais.

“Os números mostram que continuamos a ter um problema de subnotificação gravíssimo. A criança muitas vezes não encontra um adulto em quem confie para revelar o que sofreu”, afirmou a diretora executiva da UNICEF Portugal, Beatriz Imperatori. Segundo estatísticas policiais (INE): Em 2024, registraram-se 3.237 crimes contra menores, com 1.041 denúncias de abuso sexual infantil (32,2%) e 1.033 casos de violência doméstica (31,9%)

Cerca de 176 mil pessoas entre 18 e 74 anos relataram ter sido vítimas de abuso sexual na infância (até 15 anos); entre as mulheres, prevalência de 3,5%; homens 1,1% ine.ptDiário de Notícias.

A UNICEF Portugal calcula que até 140 mil crianças podem ser vítimas de abuso sexual infantil, segundo projeções com base nos dados da OMS Observador.

Portugal está entre os piores da Europa em proteção jurídica às vítimas. Os prazos de prescrição são considerados inadequados, comparativamente a países com medidas mais protetivas ObservadorExpresso.