A IGREJA NÃO PODE TORNAR-SE UM SUPERPARTIDO

A missão da Igreja é transumana transcendente e não pode ser reduzida a mais uma voz no debate partidário

A presença pública de responsáveis eclesiásticos tem vindo a adquirir um tom crescentemente politizado nos últimos anos. Entre a pandemia, a guerra na Ucrânia e a ascensão de partidos da direita na Europa, setores da Igreja parecem inclinados a alinhar-se com posições partidárias, muitas vezes repetindo o discurso dominante.
Esse caminho, porém, é um erro que prejudica a própria Igreja e os cristãos que, na sua liberdade e soberania, participam na vida política. Na comunidade cristã, “não há estrangeiros”, mas também não há partidos.

Em alguns países, como a Alemanha, chegaram mesmo a existir instituições ligadas à Igreja que evitavam contratar pessoas com filiação partidária “desconforme” ou desalinhada com o poder instituído. Hoje, como ontem, assiste-se à tentativa de afastar certos grupos, ontem comunistas, hoje membros de partidos populistas da função pública. Este tipo de práticas, para além de dúbias do ponto de vista democrático, torna a Igreja cúmplice de exclusões que não lhe competem. Na prática, este tipo de comportamento político-punitivo fragiliza o próprio sistema democrático e a dignidade humana.

A missão transcendente da Igreja

A Igreja não é um poder temporal, deve ser o sal da terra. A sua missão é espiritual, moral e universal. Não lhe cabe indicar “o partido certo”, nem avaliar programas de governo. O espaço específico da sua ação é outro: formar consciências à luz do Evangelho.

Os leigos, esses sim, são chamados a participar ativamente na vida política.
A eles cabe filiar-se, debater, negociar e propor soluções.
Aos clérigos cabe iluminar com princípios, não “dar o voto” nem deixar-se utilizar por interesses partidários.

Quando sacerdotes ou bispos criticam publicamente partidos específicos, mesmo quando movidos por boa intenção, arriscam-se a:

            – partidarizar a fé,

–  alienar fiéis que pensam de forma diferente,

– transformar a Igreja num ator político previsível e parcial.

E isso contradiz a própria natureza da Igreja, que é casa para todos.

“A Igreja não se confunde de modo algum com a comunidade política e não está vinculada a nenhum sistema político.” (Concílio Vaticano II, GS 76)

“A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática.” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 571)

O Papa Francisco lembra repetidamente que a Igreja deve evitar “colonizações ideológicas”, seja de direita, de esquerda ou de qualquer tipo.

Princípios são uma coisa; programas partidários são outra

A Doutrina Social da Igreja não propõe soluções técnicas, mas sim princípios: dignidade da pessoa humana, bem comum, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade.
Estes princípios não se traduzem automaticamente numa única proposta política. Muito menos num único partido.

Dois cristãos igualmente sérios podem, a partir dos mesmos princípios, chegar a opções partidárias diferentes sem perder fidelidade à fé.
E isso é saudável.
O que não é saudável é a Igreja tratar como erro doutrinal aquilo que, na realidade, é apenas uma opção política legítima.

Confundir o Evangelho ou princípios universais com aplicações políticas contingentes (com um programa partidário) é reduzi-lo e instrumentalizá-lo, pois, torna-se fonte de conflitos.

O risco do reducionismo moral

Quando a Igreja entra demasiado no debate político, tende a reduzir a moral a dois ou três temas, esquecendo o conjunto mais amplo da sua mensagem: justiça económica, paz, cuidados dos mais frágeis, ecologia integral, liberdade religiosa, dignidade da pessoa em todas as etapas da vida.

O Evangelho exige uma visão integral.
Não existe um partido que encarne todos os valores cristãos e não compete à Igreja escolher um.

Profetismo, sim. Partidarização, não.

A Igreja tem, sem dúvida, o dever de denunciar tudo o que fere gravemente a lei de Deus: aborto, eutanásia, xenofobia, violência, corrupção, injustiças estruturais.
Mas deve fazê-lo partindo dos princípios, não dos partidos.

Há uma enorme diferença entre afirmar “O partido X está errado”
e afirmar “Toda política que viola a dignidade humana está errada”.

Na primeira formulação, a Igreja torna-se um ator político.
Na segunda, cumpre a sua missão e deixa aos fiéis a tarefa de discernir.

O papel central dos leigos

A transformação política da sociedade não é missão dos padres.
É missão dos leigos. A própria  Igreja ensina que o sujeito principal da ação política são os leigos.

A eles pertence o debate político; à Igreja pertence a formação das consciências.
Quando esta ordem se inverte, ambos perdem:
a Igreja perde a sua universalidade; os fiéis perdem a sua autonomia. Os fiéis, bem formados, julgarão por si mesmos os programas partidários e evitarão entrar na polémica divisionista própria de estratégias partidárias.

Uma Igreja livre para todos

A Igreja deve ser uma consciência crítica da sociedade, e não um lobby disfarçado. Deve ser incómoda para todos os partidos quando necessário e dependente de nenhum.

Se cair na tentação de se transformar num “superpartido”, perderá a força profética e a capacidade de unir todos os que procuram Deus.

A política passa. Os partidos mudam e o Evangelho permanece.
E é a partir dele e não das lógicas partidárias que a Igreja deve continuar a iluminar a vida pública.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo

Pegadas do Tempo

 

O JARDIM DIVIDIDO

Elegia sobre o Século amnésico

Reflexão poética sobre o conflito na Ucrânia e os descaminhos da civilização ocidental

O Senhor do Jardim Ocidental

Nas alamedas de Bruxelas, o velho jardineiro conta moedas de ouro sobre terra estéril, esquecido de quando plantava e agora apenas colhe o que outros semearam com suor e esperança.

Os seus olhos, tornados cataratas de memória selectiva, já não veem rebentos novos nem flores no jardim alheio: só enxergam ervas daninhas onde florescem ciprestes, invasores onde crescem raízes milenares.

O atlas nas suas mãos trémulas mostra fronteiras desenhadas à régua sobre rios vivos, cercas onde antes corriam crianças e muros onde o vento dançava livre.

Ávido de poder diz ele aos seus parceiros: “Expandamos o canteiro! Que toda a seara se torne nossa quinta!” Mas a terra, velha mãe, recusa-se a parir para quem só conhece o arado da conquista.

A Casa do Leste

Do outro lado do jardim, a casa de pedra resiste. Velha também, cicatrizes de invernos que ninguém recorda, mas com celeiros cheios e fornalha acesa, memória longa de quem sobreviveu ao degelo.

Ofereceram-lhe papéis perfumados de Bruxelas, tratados escritos em tinta que desvanece ao sol, promessas de parceria que soavam a corrente, abraços que escondiam algemas de veludo.

“Serás nosso pomar”, diziam os do Ocidente, “teus frutos para nós, tua sede para ti.” Mas a casa de pedra conhece essa canção antiga: já a cantaram outros impérios, tornados agora pó.

A Jovem entre Dois Fogos

Entre os jardins, a jovem Ucrânia, filha de ambos, reconhecida por nenhum como igual. Prometeram-lhe vestidos de seda ocidental, se renegasse a metade do sangue eslavo que corre nas suas veias.

Teceram-lhe sonhos em Bruxelas: “Serás europeia!” (Mas nunca disseram: serás família, serás irmã.) Encheram-lhe os ouvidos de melodias douradas enquanto lhe esvaziavam os celeiros e a alma.

Os seus oligarcas, corvos em pele de pomba, venderam-na em leilão a quem mais ouro oferecia. Transformaram-na em Troia, cavalo oco de promessas, prenhe não de guerreiros, mas de caros mísseis alheios.

E o seu povo? Ah, o seu povo multicultural, russo e ucraniano entrelaçado como trigo e centeio, viu-se obrigado a escolher entre metades de si mesmo, a amputar-se para caber em bandeiras emprestadas.

A Demência dos Velhos Impérios

O Ocidente, senhor outrora de luzes, razão e vontade própria, que deu ao mundo Bach e Pessoa, Newton e Cervantes, entra na charneca no século XXI como o “Rei Lear” na tragédia de William Shakespeare: coroa torta, cetro partido, memória em frangalhos.

Não reconhece os filhos que educou e cresceram, passando a gritar “traição!” quando eles querem voz própria; chama “ameaça” ao vizinho que fortifica a sua casa depois de décadas a ver cercas a aproximarem-se.

A OTAN, outrora escudo, tornou-se lança errante, procurando dragões onde há apenas orgulho ferido. Expandiu-se como mancha de óleo sobre a água, até tocar a pele do urso que tinha jurado não despertar.

A Auto-Hipnose Colectiva

Nos écrans luminosos, a verdade dança distorcida: “Defendemos a liberdade!” (Mas quem lucra com as armas?) “Protegemos a democracia!” (Mas quem escolheu esta guerra?) “Salvamos a Europa!” (Mas quem paga a factura de sangue?)

Os contribuintes ingénuos, ovelhas tosquiadas, financiam foguetes com o pão dos seus filhos, aplaudem discursos de líderes em palácios aquecidos enquanto o povo europeu treme de frio e dívida.

A máquina mediática, coesa como formigueiro, repete o mantra até parecer evangelho: “O inimigo está à porta! Precisamos mais armas!” (Mas ninguém pergunta: quem levou a porta à casa dele?)

O Preço da vã Glória

Como Camões cantou da “vã cobiça” que lançou naus portuguesas ao abismo, hoje a arrogância ocidental prepara não descobrimentos, mas o próprio naufrágio.

Querem transformar culturas milenares em sucursais da sua cosmovisão única, impor um globalismo sem raízes onde todos pensem com o mesmo chip implantado.

Chamam-lhe “progresso”: um mundo pasteurizado (esterilizado) a diversidade é crime de pensamento, onde o humanismo é “obstáculo à eficiência” e o cidadão é código de barras ambulante.

O Berço Traído

A Ucrânia, que poderia ser ponte, unir leste e oeste como Kiev, no passado, uniu Escandinávia e Bizâncio, foi seduzida a tornar-se fossa, trincheira onde se enterram os sonhos de reconciliação.

Traiu a sua própria multiplicidade, a riqueza de ser encruzilhada de línguas e santos, por promessas ocas de “integração europeia” que significava apenas: seja nosso posto avançado.

E o povo ucraniano, esse é o verdadeiro mártir: não dos russos nem dos americanos, mas dos seus próprios traidores domésticos que venderam pátria em troca de iates e mansões.

A Credibilidade Desmoronada

O povo europeu, de cabeça baixa, começa a não reconhecer no espelho mediático a realidade que palpa com as próprias mãos: inflação galopante, futuro hipotecado, inverno gelado.

A fé nas instituições esfarela-se como pão velho. A UE, catedral sem fiéis, soa oca. A NATO, gigante de pés de barro, sustém-se apenas no medo que semeia.

Mas um povo que ainda estima a honra não pode viver indefinidamente de joelhos. A dor acumula-se, combustível lento, até ao dia em que a pilha de mentiras desmorona.

O Olhar Benigno Ausente

Falta ao Ocidente o que outrora possuiu: a compaixão nascida da própria vulnerabilidade, a humildade de quem sabe que civilizações ascendem, brilham e fenecem como estrelas.

Substituíram a sabedoria pelo militarismo, o diálogo pelo chicote económico, a parceria pela subjugação, o amor pelo medo como ferramenta de controlo.

Mas não se constrói paz sobre terror, nem ordem sobre ressentimento acumulado. O império mental que tentam erigir será prisão também para os seus carcereiros.

Elegia pelo Bem Comum

É preciso um regresso ao princípio esquecido: que cada pessoa, de Vladivostok a Lisboa, é soberana em sua dignidade inerente, e que as instituições existem para servir, não para dominar.

Que a Ucrânia seja novamente berço, não sepultura de uma geração sacrificada. Que o Ocidente recupere a memória de quando era farol e não aríete que arromba portas e muralhas.

Que o Oriente não repita os erros dos impérios que um dia condenou. Que todos reconheçam a humanidade comum que precede fronteiras, bandeiras, credos.

O jardim da humanidade é um só, embora cada canteiro tenha flores diferentes. É tempo de jardineiros que cultivem com amor, não de senhores que cerquem com arame farpado.

Pois enquanto houver quem veja no outro
não um inimigo, mas um filho da mesma terra,
haverá esperança de que a vã glória
não arraste toda a humanidade ao abismo.

E que as instituições, despertando da demência,
recordem que servem algo sagrado:
a vida, simplesmente a vida,
em toda a sua diversidade irredutível.

António da Cunha Duarte Justo
© Pegadas do Tempo

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O ÚLTIMO JARDIM

No alto de uma colina esquecida, existia uma quinta com muitas árvores, destacando-se nela ciprestes antigos. Chamavam-lhe “O Último Jardim”. Lá vivia Aurélio, um velho filósofo que passara a vida a estudar o espírito das máquinas e o silêncio do Homem.

Durante décadas, o mundo lá em baixo transformara-se numa rede cintilante de luzes, ecrãs e promessas. As pessoas comunicavam mais do que nunca, mas já não se olhavam. Trabalhavam, produziam, votavam, seguiam tendências e, no entanto, ninguém parecia saber porquê nem para onde ia a sociedade.
A cada ciclo eleitoral, a multidão subia à praça, esperando um novo messias político que prometia “liberdade”, “progresso”, “crescimento” e “inovação”. Mas o que recebiam era sempre o mesmo: um novo modelo da mesma prisão.

Aurélio observava a sociedade como quem contempla um doente que se recusa a aceitar o diagnóstico. Na quietude do monte, ele procurava um fio de esperança no tear desfeito do mundo. Olhando para o vasto latifúndio cultural à sua frente, um pensamento ecoou dentro de si, claro e frio como o ar da noite:
“A humanidade não padece de falta de liberdade, mas da falta de limite. E quando o limite desaparece, a fronteira entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, o essencial e o supérfluo, o eu e o outro desaparece e a alma evapora-se.

Certa noite, uma jovem de nome Íris, sob um manto de estrelas, subiu a colina. Seus pés, pesados da poeira das cidades-mercado em ruínas, arrastavam o desaponto de uma busca. Outrora, aquelas terras foram um mosaico vibrante, um caleidoscópio de vozes e cantos. Agora, sentia o mundo achatado, reduzido a um deserto uniforme, um latifúndio estéril onde só germinavam as sementes da economia e do poder, ceifadas por um punhado de mãos. Em   Aurélio ela buscava uma resposta que o mundo lá em baixo já não sabia dar.
“Mestre, disseram-me que compreendes as máquinas. Elas agora decidem quase tudo! Decidem o amor, o trabalho e até o que devemos pensar. E a vida do dia-a-adia tornou-se em rotina aborrecida! Vive-se num mundo desarraigado, nutrido pelas miragens enganosas do liberalismo e de outras ideologias sem solo, que prometem um céu e entregam um deserto. Haverá ainda esperança?”

Aurélio sorriu com ternura.
“A inteligência artificial é o espelho mais nítido que agora tivemos. Mas o que ela reflete é a nossa própria sombra. Não temas o espelho, teme o vazio de quem não ousa ver-se nele.”

Íris um pouco confusa insistiu:
“Então a saída está em rejeitar a tecnologia? Em voltar ao passado?”

O sábio sorriu com brandura.
“Não, filha. A solução não está em voltar atrás, mas em relembrar. A tecnologia deve ser a continuação da nossa alma, não um deus faminto que a devora. O perigo nunca esteve no poder da tecnologia ou das máquinas, mas na nossa incapacidade de ver nelas a nossa própria humanidade refletida ao criá-las. Doutro modo torna-se num ídolo que devora os seus criadores.”

Aurélio e Íris desceram juntos ao jardim. Lá, entre árvores e pedras cobertas de musgo, crescia um pequeno altar com três palavras gravadas em pedra:
Limite. Relação. Responsabilidade.

Aurélio explicou:
“O limite é o contorno do ser; sem ele, tudo se dissolve.
A relação é o tecido invisível que faz do indivíduo um nós.
A responsabilidade é o amor tornado ação.”

Íris esforçou-se por suster as lágrimas.
“E quem ensinará isso às cidades?”

O filósofo sentiu em si as lágrimas de Íris correr-lhe pelo pensamento e olhando o horizonte eletrificado pensou para si: a vasta teia luminosa que conecta o mundo, o homem, na sua solidão essencial, nutre-se das próprias vibrações que o mantêm cativo, até que, insensivelmente, se transforma no sustento do labirinto que o envolve! Depois respirou fundo e respondeu:
“As cidades não se transformam por decretos, mas por contágio. Quando um coração desperta, tremem mil algoritmos. Quando duas pessoas se olham e se reconhecem, hesita o sistema inteiro. É assim que começa a cura.”

No dia seguinte, Íris desceu a colina. Levava consigo o sofrimento do mundo e no peito as três palavras que a levaram à autoconsciência.
Por onde passava, desligava um ecrã, escrevia um poema num muro, ensinava uma criança a plantar uma semente.
E em cada gesto simples, nascia o rumor de um novo tempo, de um tempo em que a sociedade deixava de ser máquina e voltava a ser jardim.

Epílogo

Aurélio morreu em paz, certo de que o seu nome seria esquecido.
Mas o Último Jardim floresceu como uma lenda: falava-se de um velho e de uma jovem que semearam uma revolução sem bandeiras; esta verdadeira revolução é feita de consciência, compaixão e silêncio.

E, pela primeira vez em séculos, o mundo não perguntava “para onde vai a sociedade”,
mas para onde vai a alma do homem

e essa, enfim, voltava a caminhar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

O JARDIM DOS ESPELHOS PARTIDOS  

A Queda

No princípio, havia o Jardim. Não um jardim qualquer, mas aquele onde cada árvore conhecia o nome dos seus avós, onde as fontes murmuravam histórias de séculos e os caminhos de pedra guardavam a memória dos passos de quem partira. As crianças nasciam já segurando um fio invisível que as ligava às raízes mais profundas, e os anciãos morriam plantando sementes que só germinariam quando os seus bisnetos fossem velhos.

Mas algo mudou quando descobriram que podiam cortar os fios.

Primeiro foi Lúcia, a estudante de quinze anos, que um dia olhou para o cordel prateado que lhe prendia o pulso e pensou: “Isto é pesado”. Com uma tesoura de prata que lhe ofereceram na escola, onde agora ensinavam que libertar-se era o mesmo que ser livre, cortou o fio num gesto seco. Sentiu-se leve como nunca e ao mesmo tempo sentiu-se também a flutuar, como se tivesse perdido a gravidade.

Os vendedores de tesouras chegaram em caravanas coloridas, com ecrãs luminosos nas costas e promessas nos lábios. “O passado é uma âncora”, gritavam nas praças. “O futuro é um rio sem margens, e vocês são os surfistas da eternidade!” Vendiam tesouras de todos os tamanhos: pequenas para crianças, grandes para pais que queriam cortar os fios dos filhos “por amor”, industriais para as instituições que desejavam cortar todos de uma vez, “por eficiência”.

A linguagem começou a decompor-se como fruta esquecida ao sol. As palavras antigas, aquelas que continham dentro de si séculos de significado, como “dignidade”, “sacrifício”, “comunhão”, começaram a apodrecer. Em seu lugar nasceram palavras-fantasma: “impacto”, “relevância”, “visualizações”. Palavras que pareciam dizer tudo, mas não diziam nada, como espelhos que refletem apenas outros espelhos.

João, o pai de Lúcia, era professor. Ou fora. Agora era “facilitador de conteúdos”. Passava as noites a preencher formulários sobre “competências transversais” e “indicadores de performance”. Quando chegava a casa, já não tinha palavras para falar com a filha. Ela também não tinha palavras para ele. Entre eles erguia-se uma Muralha sem portas,alta, lisa, sem frinchas onde pudesse passar sequer um sussurro.

“Pai, não percebes”, dizia Lúcia, olhando para o ecrã onde dezenas de rostos idênticos desfilavam. “Vocês viveram numa prisão e chamavam-lhe tradição.”

“Filha, tu não vês”, respondia João, olhando para ela, mas vendo através dela, como se ela fosse de vidro. “Estão a vender-vos liberdade e a entregar-vos correntes.”

Mas um não ouvia o outro. As suas vozes ricocheteavam na Muralha e voltavam para trás, transformadas em eco que cada um interpretava como confirmação do que já pensava.

No jardim onde fora feliz em criança, João descobriu enterrado, coberto de ervas daninhas, um Relógio de Sol. Já ninguém se lembrava de que existira. O tempo agora era ditado pelos algoritmos, pelas notificações, pelo intervalo de dopamina entre um like e o seguinte. O relógio de sol, que um dia marcara os ritmos das estações, das colheitas, das orações, jazia morto sob a terra. Como se pudessem enterrar o tempo e assim tornarem-se imortais.

O Labirinto

A cidade transformara-se num Labirinto. Não daqueles com corredores de pedra e minotauros escondidos, mas um labirinto líquido, onde os caminhos mudavam de forma de hora a hora. Na segunda-feira defendias uma coisa, na terça-feira o algoritmo mostrava-te o oposto e na quarta já não sabias o que pensavas. A única certeza era a incerteza, e chamavam a isso “pensamento crítico”.

Miguel tinha vinte e um anos e um plano perfeito: tornar-se célebre. Não como os antigos, que escreviam livros em vinte anos, compunham sinfonias ou plantavam bosques. Ele queria a fama imediata, espetacular e irrevogável. Estudara todos os casos: o número de vítimas, as armas, os locais. Nos fóruns escuros da internet, trocava mensagens com outros iguais a ele, todos em busca da mesma coisa: visibilidade absoluta. Mais do que ser, importava estar. No seu mundo, ser visto era existir. Tudo o mais era o vazio.

Nunca ninguém lhe perguntara: “Para onde vais, Miguel?” Nem na escola, nem em casa, nem na sociedade. Todos estavam demasiado ocupados em caminhar, viviam numa marcha frenética sem destino, um marcar passo qualitativo disfarçado de progresso. Miguel sentia-se como um ponto num mapa sem coordenadas, numa caminhada sem bússola.

A mãe de Miguel, Ana, trabalhava num escritório de vidro onde todas as divisórias eram transparentes. “Transparência”, diziam os chefes, “gera confiança”. Mas Ana sentia-se permanentemente exposta, como se vivesse num aquário onde até os seus pensamentos pudessem ser auditados. As métricas eram o novo evangelho: números de produtividade, estatísticas de satisfação, gráficos de eficiência. Nunca se perguntava “porquê?”, apenas “quanto?”.

À noite, via na televisão o mesmo espetáculo em todos os canais; era como ter vinte janelas abertas para o mesmo quarto vazio. Políticos que criavam crises para depois se apresentarem como salvadores. Comentadores que gritavam uns com os outros, não para dialogar, mas para dominar. Programas onde a humilhação pública era entretenimento. Tudo sangue e violência, literal ou metafórica.

O seu filho de catorze anos, Pedro, passava horas a jogar um jogo onde o objetivo era desmembrar corpos digitais. A satisfação máxima vinha quando conseguia cortar o pescoço e o sangue virtual saltava em chafariz. Ana tentava protestar, mas o marido, que já não era bem marido, apenas coabitante, dizia: “É só um jogo. É melhor isto do que estar na rua.”

Mas Pedro já não distinguia bem entre o jogo e a rua. Quando a mãe lhe pedia para estudar mais, para desligar os ecrãs, para falar com ela, sentia a mesma raiva que sentia no jogo quando um inimigo o bloqueava. Era uma raiva limpa, justificada, que pedia resolução imediata sem necessidade de deambular pelas curvas do sentimento ou da relação.

Na escola de Pedro ensinavam-lhe que todas as opções eram igualmente válidas. Que não havia certo ou errado, apenas “perspetivas”. Davam-lhe a liberdade de escolher entre opções idênticas e isso causava-lhe desespero quando necessitava de motivos de esperança. Era como estar num restaurante infinito onde todos os pratos tinham o mesmo sabor: o sabor a nada.

Os novos sacerdotes da humanidade, os influenciadores, os gurus de autoajuda, os vendedores de cursos online, pregavam o evangelho do sucesso rápido e da realização sem esforço. Queriam fazer da realidade um rio fluente sem margens, onde todos pudessem flutuar eternamente sem nunca ter de escolher uma direção. Mas um rio sem margens não é um rio, é uma inundação.

O Espelho de Água

Foi numa manhã de fins de outubro, quando o outono começava a dourar as folhas que ainda restavam no Jardim abandonado, que algo mudou.

Lúcia, agora com vinte anos, estava farta. Farta da liberdade que a prendia, farta das escolhas que não significavam nada, farta de si mesma que se via reflectida em mil ecrãs sem nunca se reconhecer. Voltou ao Jardim, aquele onde cortara o fio cinco anos antes e sentou-se no meio das ruínas.

As árvores tinham crescido de maneira selvagem. A fonte estava quebrada. Mas no centro, onde antes havia apenas terra seca, formara-se um espelho de água, pequeno, quieto, perfeitamente imóvel.

Lúcia aproximou-se com medo. Não olhava para o próprio rosto há muito tempo, na realidade, não. Estava habituada ao filtro de Instagram, ao ângulo perfeito, à versão editada de si mesma. Mas ali, no espelho de água, não havia filtros.

Viu-se. Viu também, refletida na água, a sombra de uma árvore muito antiga que pensava estar morta. E viu uma coisa estranha: na árvore havia um fio prateado a balançar ao vento, como se a esperasse.

Não era o mesmo fio que cortara. Era diferente, mais fino, mais frágil, mas também mais luminoso. Percebeu então que o fio não era uma prisão. Era uma conversa. Um fio que ligava perguntas a respostas, presente a passado, que a ligava ela e a algo maior que ela mesma.

João, o pai, também voltara ao Jardim. Procurava o relógio de sol. Quando o encontrou, começou a desenterrá-lo com as próprias mãos. Demorou horas num acto de esforço e sacrifício como se estivesse a desenterrar o passado. As mãos sangravam. Mas quando finalmente o libertou da terra, algo extraordinário aconteceu: o relógio ainda funcionava. A sombra da haste vertical ainda marcava as horas: as horas reais, as horas que não podiam ser aceleradas por notificações nem interrompidas por anúncios. (Afinal a ancora não prende, é fundamento que orienta e há verdades que resistem às modas!)

Pai e filha encontraram-se junto ao espelho de água. Não falaram logo. Primeiro, olharam, ela para ele e ele para ela, ambos para os seus reflexos na água. E nos reflexos viram algo que tinham esquecido: que eram parte da mesma história. Que entre eles não havia apenas uma Muralha, mas também portas, pequenas, escondidas, mas portas.

“Pai”, disse Lúcia, e a palavra soou diferente desta vez, “acho que cortei algo que não devia.”

“Filha”, disse João, e também a sua voz era outra, “acho que enterrei algo que não devia.”

Não foi um momento de solução mágica. A Muralha não caiu. O Labirinto não desapareceu. Miguel ainda estava lá fora, e Pedro ainda jogava os seus jogos, e Ana ainda preenchia os seus relatórios. A sociedade ainda estava adolescente, ainda marchava sem direção, ainda trocava sacerdotes por vendilhões.

Mas junto ao espelho de água, pai e filha começaram a fazer algo revolucionário: começaram a escutar. Não para responder, não para vencer, mas para ouvir verdadeiramente. (Afinal o diálogo entre gerações pode ser retomado quando recuperamos instrumentos de medida comuns)

E no silêncio entre as palavras, algo antigo acordou. Uma pergunta que todas as gerações tinham feito, mas que esta geração esquecera: “Para onde vamos?” Não “para onde eu vou”, mas “para onde vamos”, juntos, ligados, responsáveis uns pelos outros.

O espelho de água tremeu ligeiramente com o vento. Na superfície, os reflexos misturaram-se, árvore e céu, pai e filha, passado e futuro. E nessa mistura, por um momento, viram não uma resposta, mas uma possibilidade: a de que pudessem tecer novos fios. Não os fios antigos que cortaram, mas fios que eles próprios escolhessem tecer, conscientes de que um fio só existe porque liga duas pontas.

Lúcia pegou numa pedra pequena e atirou-a ao espelho de água. As ondulações expandiram-se em círculos perfeitos, cada vez maiores.

“E agora?”, perguntou.

“Agora”, disse João, “esperamos que as ondas cheguem às margens. E depois, construímos margens que sejam dignas das ondas.”

Era uma resposta imperfeita. Mas era uma resposta que não vinha de um algoritmo, nem de um influenciador, nem de um gráfico estatístico. Vinha deles, da decisão de acreditar que o rio precisava de margens não para prender a água, mas para lhe dar forma, direção, sentido.

No Jardim dos Espelhos Partidos, onde os fragmentos de mil reflexos jaziam na erva, começava a germinar algo pequeno, mas teimoso: não a esperança fácil dos vendedores de ilusões, mas a esperança difícil de quem planta sabendo que talvez não veja a colheita. A esperança de quem tece sabendo que o fio pode partir. A esperança de quem pergunta “para onde?” mesmo sabendo que a resposta demorará uma vida inteira a construir.

E isso, pensou Lúcia olhando para o reflexo do pai ao lado do seu, era mais do que tinham tido em muito tempo. Era o começo de um abraço.

No jardim, o relógio de sol voltava a marcar as horas. Na água, os reflexos continuavam a dançar. E na árvore antiga, o fio prateado balançava ao vento, esperando (1).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Reflexão:

A regeneração da sociedade, simbolizada no conto, é possível, mas exige um esforço activo:

Relógio de Sol: Representa a necessidade de recuperar um tempo autêntico, reconciliando-nos com o passado como fundamento e não como amarra. Mostra que verdades permanentes resistem às modas.

Espelho de Água: Simboliza o reconhecimento de que a vida e a identidade são um processo fluido, reconstruído através das relações. Pequenas ações individuais (como uma pedra atirada à água) criam ondas de transformação.

Árvore Antiga e o Fio: A árvore simboliza a esperança e a resistência das raízes (valores, civilização). O novo fio prateado representa uma reconexão possível, mas frágil e não automática. Ele espera por uma escolha consciente.

Conclusão: A regeneração não é garantida. As estruturas permanecem (relógio) e a vida flui (água), mas a reconexão final (o fio) depende de uma decisão activa de cada um de nós. É uma esperança que pergunta: “E tu, vais pegar no fio?”

 

ENTRE A NOITE DAS SOMBRAS E O DIA DA LUZ

Na aldeia de São Martinho das Fontes, o tempo tinha a respiração lenta do sino. O povo, embalado por essa cadência e embebido pela maresia, guardava na pele uma languidez dourada e, nas veias, o vigor salgado do mar.

O vento, mensageiro de memórias antigas, corria os becos e punha as janelas a falar: umas, em sussurros de receio; outras, em murmúrios de prece.
Era a véspera de Todos os Santos.
E como vai acontecendo com o andar dos tempos, a aldeia já não sabia bem o que celebrava.

Nas vitrines do centro comercial da vila vizinha, abóboras ocas e bruxas sinuosas entretinham um diálogo mudo de piscares luminosos, atraindo tanto os olhos curiosos das crianças como o sorriso contido de adultos.
O riso metálico das promoções fundia-se com o alvoroço infantil, enquanto as mães, rendidas ao cansaço e à pressão da quadra, se deixavam levar entre prateleiras que sussurravam promessas de alegria instantânea.
Uma delas, Dona Amélia, segurava a mão do filho, o Tiago, de sete anos.
O menino queria uma máscara.
Ela hesitou.
Sabia que o dinheiro mal dava para o pão e o gás. Mas, ao olhar em volta, viu as outras mães comprando máscaras para os filhos. Sob o peso invisível daquela comparação, soltou um sorriso resignado e disse:
“Vá lá, Tiago, escolhe uma…”

A criança agarrou uma caveira luminosa.
E Amélia pensou, sem o dizer:

“Será que é isto que o mundo quer que eu ensine ao meu filho? Que o riso vem do medo e a alegria do disfarce?”

No regresso, o vento pareceu escutar-lhe o pensamento e murmurou-lhe ao ouvido:

“Nem tudo o que brilha é luz, minha filha. Há brilhos que apenas escondem o escuro.”

À noite (véspera de Todos os Santos), a aldeia parecia ferida ao encher-se de sombras. As crianças, enfeitadas de demónios e fantasmas, percorriam as travessas com risos que não pertenciam à infância, e batiam às portas com vozes de ameaça disfarçada:                                                                                                                                                                  “Doçura ou travessura!”

E o medo, vestido de brincadeira, passeava-se livremente.
Os risos pareciam leves, mas deixavam no ar um sabor vazio, como o de um pão sem miolo, e uma frieza reminiscente das tardes escuras de novembro.

Sentia-se uma tristeza nas casas meio adormecidas na sua caiada solidão, a contemplar as faces de abóbora que, em papel, consumiam de uma vez só o seu fogo efémero.
As velhas oliveiras da encosta, que guardavam na seiva o sal das lágrimas e da oração, estremeciam e uma delas, muito velha, sussurrou à lua:

“Tantas gerações de mãos que rezaram sob mim… e agora vejo crianças mascaradas de fantasmas, brincando com o que nunca deviam temer.”

A Lua, de rosto magro e saudoso, perguntava-se se os homens ainda se lembravam que ela também iluminava os caminhos dos anjos, mas respondeu:

“Não é o medo o problema, minha amiga, é o esquecimento. O homem esqueceu que a morte é caminho, não destino.”

Mas o tempo, que tudo transforma, caminhou sobre a noite, e quando os galos cantaram, na manhã seguinte, o sino da igreja ergueu-se sobre a aldeia como um coração que desperta.

Era Dia de Todos os Santos.
E as mesmas ruas que na véspera ecoavam gargalhadas, agora acolhiam passos lentos e vozes baixas.
As pessoas subiam ao cemitério com flores e velas, como quem sobe um monte de esperança. E as campas, antes frias, sorriram sob o toque das mãos humanas que as   vestiam de flores e velas. Ali até as almas dos finados pareciam espreitar entre as pétalas e o incenso, e as campas, que tantas vezes guardaram lágrimas, murmuraram uma melodia suave:

“Não temais a noite, que ela é apenas o véu da aurora.”

Tiago, o menino da máscara, foi com a mãe ao cemitério.
Levava na mão um raminho de crisântemos e no bolso, ainda o resto do doce da noite anterior.
Ao chegar junto da campa do avô, Dona Amélia ajoelhou-se.
Acendeu uma vela.
O lume tremia como uma oração viva.

Tiago perguntou:
“Mãe, o avô ouve-nos?”
E ela respondeu, num murmúrio que parecia também falar consigo própria:
“O avô vive noutro tempo, filho. Num tempo que não passa.”

O menino ficou a olhar o lume e, de repente, retirou do bolso o doce que tinha guardado e colocou-o junto da vela.
“É para o avô.”
E sorriu já com um sorriso leve, sem medo.

A chama comovida dançou mais alta, e o vento soprou suavemente.
Parecia aprovar o gesto.

No dia de Todos os Santos, as crianças da aldeia, já sem máscaras, saíram outra vez às ruas, mas agora, com os bolsos vazios e o coração cheio, dizendo:
Pão por Deus!”

E cada porta que se abria era uma bênção partilhada, não um negócio programado.
Quem dava, dava por amor, pelas almas dos seus.
Quem recebia, levava o pão como símbolo de amor e memória.

A aldeia parecia renascer nesse gesto simples: um gesto que a indústria não podia vender, porque não cabia em embalagem.

À tardinha, o sol desceu como um sacerdote sobre o vale e o velho padre da paróquia, sentado ao pé do cruzeiro, falava para quem quisesse ouvir:

“As sombras só assustam quem esquece o sol.
O Halloween celebra o medo da morte.
O Dia de Todos os Santos celebra a vida que não morre.
Um vende máscaras, o outro revela rostos.
Um alimenta o vazio, o outro sacia a alma.”

E acrescentou, olhando para as estrelas:

“Aqueles que brincam com a morte como se fosse um brinquedo, acabam por esquecer o valor da vida.
Mas quem contempla a morte à luz de Deus, encontra nela a porta da eternidade e vive sem medos.”

Naquela noite, Dona Amélia adormeceu em paz.
Sonhou com o avô de Tiago, sentado sob uma grande oliveira.
Ele sorria e dizia:

“Ensina o menino a escolher a luz, mesmo quando o mundo vende trevas em promoção.”

E quando o sino tocou de novo ao amanhecer, o vento levou consigo a voz do tempo:

“Entre a Noite das Sombras e o Dia da Luz, o homem escolhe o que servir: o medo ou o amor.”

Na aldeia de São Martinho das Fontes, nunca mais o Halloween teve o mesmo sabor.

As crianças continuaram a brincar, mas agora sabiam que o medo só é senhor enquanto esquecemos o Amor.

E quando chegava o “Pão por Deus”, cada pedaço de pão era uma semente de eternidade partilhada entre o céu e a terra, entre os vivos e os que já vivem noutra forma de luz.

 

António da Cunha Duarte Justo

© Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10399

 

Nota do Autor

A sociedade veste o medo de festa e chama-lhe cultura.
Mas há uma diferença profunda entre celebrar a morte e celebrar os mortos.
A primeira afasta-nos do sentido; a segunda reconcilia-nos com o mistério.
O Halloween (noite de 31 de Outubro) alimenta o comércio das sombras; o Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) alimenta a memória da luz. . O Advento do Estranho e a Memória do Sagrado.

Num tempo em que se poderia celebrar a autenticidade dos costumes locais, assiste-se à estranha ascensão do Halloween. Esta festividade importada, com o seu fascínio pelo macabro e pelo efémero, vai gradualmente ofuscando o significado profundo de uma tradição enraizada: a comemoração do Dia de Todos os Santos.

Esta, independentemente da base que a motiva, é um momento de recolhimento e de raiz. Materializa-se em reuniões familiares e nas visitas serenas aos cemitérios, gestos simples que têm por fim primordial recordar os que partiram e, assim, honrar a herança que nos define. É uma celebração que valoriza a memória afetiva e a continuidade cultural.

No entanto, o significado cristão deste feriado vê-se agora ameaçado por uma cortina de névoa e fantasia. Enquanto a fé cristã celebra a vida eterna e a santidade, que é um olhar de esperança voltado para a transcendência, o Halloween oferece um culto ao medo e a uma certa fealdade vazia. Para aqueles que anseiam por esta estética do tenebroso e do desprovido de sentido, ele representa a celebração de um feriado profundamente deprimente, um espetáculo vazio que esquece a serenidade da eternidade em favor do susto passageiro.

Ao longo do tempo, tradições e costumes diversos sobrepõem-se. A Igreja Católica, num processo de inculturação, adaptou vários costumes bárbaros à nova cultura vigente, criando rituais substitutos. Um exemplo notável é a substituição dos rituais pagãos destinados a afugentar o medo da morte pela celebração do Dia de Todos os Santos. Atualmente, contudo, são os interesses comerciais que mais proveito tiram destas tradições, ao promoverem e acentuarem os antigos ritos, como se vê na popularização do Halloween.

Talvez o desafio de cada um de nós hoje seja devolver às nossas crianças o sentido do sagrado, para que saibam que, na eternidade, a morte não é um fim, é apenas um novo começo de amor.

António da Cunha Duarte Justo