O Tecelão de Névoas

Diziam os antigos, entre um gole de vinho e outro de memória, que, lá para os lados de Bruxelas,  em tempo de brumas e esquecimento, havia um homem que sabia tecer o ar.
Chamavam-lhe o Tecelão de Névoas, porque das palavras fazia véus, e dos silêncios, correntes. O povo jurava que o céu lhe obedecia, pois onde ele passava, o horizonte encolhia-se, como se o mundo tivesse medo de ver-se inteiro.
Com a sua voz de abrigo e olhar de promessa, o tecedor tinha o dom de transformar o invisível em prisão, e o povo, fatigado de ver e de pensar, acolheu-o como a um líder de cidadãos cansados.

Falava com voz mansa, que parecia vir do alto como um murmúrio de rio ondulado em várzea plana.
Dizia que pensar demais era ferida, que duvidar era doença de quem não sabia agradecer e que a verdade pesava mais do que o que o coração podia suportar.
E o povo, sedento de certezas, acreditava.
Acreditava porque o cansaço e o peso do dia a dia, quando se torna costume, é parente da confiança e da obediência.

Com o tempo, o Tecelão já não se bastava a si próprio.
Chamou a si alguns discípulos, jovens de olhar vazio e mãos leves, e entregou-lhes flautas de névoa, instrumentos finos, forjados com sopros de engano.
A cada toque, essas flautas derramavam melodias brandas que se infiltravam no pensamento como chuva em terra seca.

E quem as ouvia, esquecia.
Esquecia o sabor da dúvida, o brilho do discernimento, a alegria de criar o próprio som.
A melodia parecia arte, mas era feitiço: adormecia o espírito e paralisava os areais do pensamento.
As mentes tornavam-se dóceis, como rebanhos embalados por música alheia.
E cada nota, em vez de libertar, amarrava.

O povo passou a seguir o som das flautas como quem segue uma estrela.
Não sabia que caminhava em círculos, que dançavam dentro de uma gaiola de bruma.
As suas vozes, antes cheias de vida, calaram-se.
Os poetas deixaram de cantar, os pintores esqueceram as cores, e até os sinos soavam mais lentos, como se o ar tivesse ficado pesado.

Mas havia uma criança, de olhar aberto e passo curioso, que ainda não aprendera a obedecer ao som e ainda tinha a alma por domar.
Gostava de correr pela manhã, quando o frio ainda mordia o chão, e de tentar adivinhar as formas escondidas na névoa. Para ela, o mundo era um jogo: o nevoeiro, um lençol de sonho onde tudo podia morar: um castelo, um rio, um gigante adormecido.
Certo dia, aproximou-se do Tecelão e perguntou:

– Senhor, porque é que o sol nunca toca o chão do nosso vale?

O homem sorriu, com ternura estudada.
– O sol, pequena, é um fardo. Eu guardo-vos da sua luz. É melhor assim, mais suave, mais seguro.

A menina quis acreditar. Mas o vento, que dormia há muito, acordou ao ouvir aquelas palavras.
Soprou primeiro devagar, apenas para ver se ainda podia. Depois, com saudade de ser brisa livre, soprou com força.

E então, as flautas desafinaram.
A música, outrora doce, quebrou-se em sons dissonantes, e o povo estremeceu.
A névoa começou a desfazer-se, fio a fio, como mentira diante da claridade.

O Tecelão tentou refazer o tear, mas os seus dedos, habituados ao engano, já não encontravam os fios.
O povo olhou em redor e viu-se: sujo, pálido, atordoado, mas ainda vivo.
Todos ouviram, pela primeira vez em muito tempo, um som diferente: o riso da criança, cristalino e novo, como nascente em pedra seca.

Alguns choraram, outros ficaram em silêncio.
A menina correu para o alto da colina e gritou:
– O sol afinal não dormia! Só esperava que abríssemos os olhos!

E o vento, satisfeito, levou consigo o último fio de engano para além das colinas, onde as névoas já não ousavam voltar.

Dizem que, desde esse dia, ninguém mais tocou as flautas do Tecelão.
Mas de vez em quando, quando a alma se distrai e o cansaço parece doer demais, ouve-se ao longe um sopro que vem de cima, tentando adormecer o mundo.
É então que se deve lembrar: a música que salva nasce de dentro e a névoa só domina quem esquece o próprio som. Mas há sempre uma criança, em algum lugar, pronta a perguntar pelo sol.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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