O JARDIM DOS ESPELHOS PARTIDOS  

A Queda

No princípio, havia o Jardim. Não um jardim qualquer, mas aquele onde cada árvore conhecia o nome dos seus avós, onde as fontes murmuravam histórias de séculos e os caminhos de pedra guardavam a memória dos passos de quem partira. As crianças nasciam já segurando um fio invisível que as ligava às raízes mais profundas, e os anciãos morriam plantando sementes que só germinariam quando os seus bisnetos fossem velhos.

Mas algo mudou quando descobriram que podiam cortar os fios.

Primeiro foi Lúcia, a estudante de quinze anos, que um dia olhou para o cordel prateado que lhe prendia o pulso e pensou: “Isto é pesado”. Com uma tesoura de prata que lhe ofereceram na escola, onde agora ensinavam que libertar-se era o mesmo que ser livre, cortou o fio num gesto seco. Sentiu-se leve como nunca e ao mesmo tempo sentiu-se também a flutuar, como se tivesse perdido a gravidade.

Os vendedores de tesouras chegaram em caravanas coloridas, com ecrãs luminosos nas costas e promessas nos lábios. “O passado é uma âncora”, gritavam nas praças. “O futuro é um rio sem margens, e vocês são os surfistas da eternidade!” Vendiam tesouras de todos os tamanhos: pequenas para crianças, grandes para pais que queriam cortar os fios dos filhos “por amor”, industriais para as instituições que desejavam cortar todos de uma vez, “por eficiência”.

A linguagem começou a decompor-se como fruta esquecida ao sol. As palavras antigas, aquelas que continham dentro de si séculos de significado, como “dignidade”, “sacrifício”, “comunhão”, começaram a apodrecer. Em seu lugar nasceram palavras-fantasma: “impacto”, “relevância”, “visualizações”. Palavras que pareciam dizer tudo, mas não diziam nada, como espelhos que refletem apenas outros espelhos.

João, o pai de Lúcia, era professor. Ou fora. Agora era “facilitador de conteúdos”. Passava as noites a preencher formulários sobre “competências transversais” e “indicadores de performance”. Quando chegava a casa, já não tinha palavras para falar com a filha. Ela também não tinha palavras para ele. Entre eles erguia-se uma Muralha sem portas,alta, lisa, sem frinchas onde pudesse passar sequer um sussurro.

“Pai, não percebes”, dizia Lúcia, olhando para o ecrã onde dezenas de rostos idênticos desfilavam. “Vocês viveram numa prisão e chamavam-lhe tradição.”

“Filha, tu não vês”, respondia João, olhando para ela, mas vendo através dela, como se ela fosse de vidro. “Estão a vender-vos liberdade e a entregar-vos correntes.”

Mas um não ouvia o outro. As suas vozes ricocheteavam na Muralha e voltavam para trás, transformadas em eco que cada um interpretava como confirmação do que já pensava.

No jardim onde fora feliz em criança, João descobriu enterrado, coberto de ervas daninhas, um Relógio de Sol. Já ninguém se lembrava de que existira. O tempo agora era ditado pelos algoritmos, pelas notificações, pelo intervalo de dopamina entre um like e o seguinte. O relógio de sol, que um dia marcara os ritmos das estações, das colheitas, das orações, jazia morto sob a terra. Como se pudessem enterrar o tempo e assim tornarem-se imortais.

O Labirinto

A cidade transformara-se num Labirinto. Não daqueles com corredores de pedra e minotauros escondidos, mas um labirinto líquido, onde os caminhos mudavam de forma de hora a hora. Na segunda-feira defendias uma coisa, na terça-feira o algoritmo mostrava-te o oposto e na quarta já não sabias o que pensavas. A única certeza era a incerteza, e chamavam a isso “pensamento crítico”.

Miguel tinha vinte e um anos e um plano perfeito: tornar-se célebre. Não como os antigos, que escreviam livros em vinte anos, compunham sinfonias ou plantavam bosques. Ele queria a fama imediata, espetacular e irrevogável. Estudara todos os casos: o número de vítimas, as armas, os locais. Nos fóruns escuros da internet, trocava mensagens com outros iguais a ele, todos em busca da mesma coisa: visibilidade absoluta. Mais do que ser, importava estar. No seu mundo, ser visto era existir. Tudo o mais era o vazio.

Nunca ninguém lhe perguntara: “Para onde vais, Miguel?” Nem na escola, nem em casa, nem na sociedade. Todos estavam demasiado ocupados em caminhar, viviam numa marcha frenética sem destino, um marcar passo qualitativo disfarçado de progresso. Miguel sentia-se como um ponto num mapa sem coordenadas, numa caminhada sem bússola.

A mãe de Miguel, Ana, trabalhava num escritório de vidro onde todas as divisórias eram transparentes. “Transparência”, diziam os chefes, “gera confiança”. Mas Ana sentia-se permanentemente exposta, como se vivesse num aquário onde até os seus pensamentos pudessem ser auditados. As métricas eram o novo evangelho: números de produtividade, estatísticas de satisfação, gráficos de eficiência. Nunca se perguntava “porquê?”, apenas “quanto?”.

À noite, via na televisão o mesmo espetáculo em todos os canais; era como ter vinte janelas abertas para o mesmo quarto vazio. Políticos que criavam crises para depois se apresentarem como salvadores. Comentadores que gritavam uns com os outros, não para dialogar, mas para dominar. Programas onde a humilhação pública era entretenimento. Tudo sangue e violência, literal ou metafórica.

O seu filho de catorze anos, Pedro, passava horas a jogar um jogo onde o objetivo era desmembrar corpos digitais. A satisfação máxima vinha quando conseguia cortar o pescoço e o sangue virtual saltava em chafariz. Ana tentava protestar, mas o marido, que já não era bem marido, apenas coabitante, dizia: “É só um jogo. É melhor isto do que estar na rua.”

Mas Pedro já não distinguia bem entre o jogo e a rua. Quando a mãe lhe pedia para estudar mais, para desligar os ecrãs, para falar com ela, sentia a mesma raiva que sentia no jogo quando um inimigo o bloqueava. Era uma raiva limpa, justificada, que pedia resolução imediata sem necessidade de deambular pelas curvas do sentimento ou da relação.

Na escola de Pedro ensinavam-lhe que todas as opções eram igualmente válidas. Que não havia certo ou errado, apenas “perspetivas”. Davam-lhe a liberdade de escolher entre opções idênticas e isso causava-lhe desespero quando necessitava de motivos de esperança. Era como estar num restaurante infinito onde todos os pratos tinham o mesmo sabor: o sabor a nada.

Os novos sacerdotes da humanidade, os influenciadores, os gurus de autoajuda, os vendedores de cursos online, pregavam o evangelho do sucesso rápido e da realização sem esforço. Queriam fazer da realidade um rio fluente sem margens, onde todos pudessem flutuar eternamente sem nunca ter de escolher uma direção. Mas um rio sem margens não é um rio, é uma inundação.

O Espelho de Água

Foi numa manhã de fins de outubro, quando o outono começava a dourar as folhas que ainda restavam no Jardim abandonado, que algo mudou.

Lúcia, agora com vinte anos, estava farta. Farta da liberdade que a prendia, farta das escolhas que não significavam nada, farta de si mesma que se via reflectida em mil ecrãs sem nunca se reconhecer. Voltou ao Jardim, aquele onde cortara o fio cinco anos antes e sentou-se no meio das ruínas.

As árvores tinham crescido de maneira selvagem. A fonte estava quebrada. Mas no centro, onde antes havia apenas terra seca, formara-se um espelho de água, pequeno, quieto, perfeitamente imóvel.

Lúcia aproximou-se com medo. Não olhava para o próprio rosto há muito tempo, na realidade, não. Estava habituada ao filtro de Instagram, ao ângulo perfeito, à versão editada de si mesma. Mas ali, no espelho de água, não havia filtros.

Viu-se. Viu também, refletida na água, a sombra de uma árvore muito antiga que pensava estar morta. E viu uma coisa estranha: na árvore havia um fio prateado a balançar ao vento, como se a esperasse.

Não era o mesmo fio que cortara. Era diferente, mais fino, mais frágil, mas também mais luminoso. Percebeu então que o fio não era uma prisão. Era uma conversa. Um fio que ligava perguntas a respostas, presente a passado, que a ligava ela e a algo maior que ela mesma.

João, o pai, também voltara ao Jardim. Procurava o relógio de sol. Quando o encontrou, começou a desenterrá-lo com as próprias mãos. Demorou horas num acto de esforço e sacrifício como se estivesse a desenterrar o passado. As mãos sangravam. Mas quando finalmente o libertou da terra, algo extraordinário aconteceu: o relógio ainda funcionava. A sombra da haste vertical ainda marcava as horas: as horas reais, as horas que não podiam ser aceleradas por notificações nem interrompidas por anúncios. (Afinal a ancora não prende, é fundamento que orienta e há verdades que resistem às modas!)

Pai e filha encontraram-se junto ao espelho de água. Não falaram logo. Primeiro, olharam, ela para ele e ele para ela, ambos para os seus reflexos na água. E nos reflexos viram algo que tinham esquecido: que eram parte da mesma história. Que entre eles não havia apenas uma Muralha, mas também portas, pequenas, escondidas, mas portas.

“Pai”, disse Lúcia, e a palavra soou diferente desta vez, “acho que cortei algo que não devia.”

“Filha”, disse João, e também a sua voz era outra, “acho que enterrei algo que não devia.”

Não foi um momento de solução mágica. A Muralha não caiu. O Labirinto não desapareceu. Miguel ainda estava lá fora, e Pedro ainda jogava os seus jogos, e Ana ainda preenchia os seus relatórios. A sociedade ainda estava adolescente, ainda marchava sem direção, ainda trocava sacerdotes por vendilhões.

Mas junto ao espelho de água, pai e filha começaram a fazer algo revolucionário: começaram a escutar. Não para responder, não para vencer, mas para ouvir verdadeiramente. (Afinal o diálogo entre gerações pode ser retomado quando recuperamos instrumentos de medida comuns)

E no silêncio entre as palavras, algo antigo acordou. Uma pergunta que todas as gerações tinham feito, mas que esta geração esquecera: “Para onde vamos?” Não “para onde eu vou”, mas “para onde vamos”, juntos, ligados, responsáveis uns pelos outros.

O espelho de água tremeu ligeiramente com o vento. Na superfície, os reflexos misturaram-se, árvore e céu, pai e filha, passado e futuro. E nessa mistura, por um momento, viram não uma resposta, mas uma possibilidade: a de que pudessem tecer novos fios. Não os fios antigos que cortaram, mas fios que eles próprios escolhessem tecer, conscientes de que um fio só existe porque liga duas pontas.

Lúcia pegou numa pedra pequena e atirou-a ao espelho de água. As ondulações expandiram-se em círculos perfeitos, cada vez maiores.

“E agora?”, perguntou.

“Agora”, disse João, “esperamos que as ondas cheguem às margens. E depois, construímos margens que sejam dignas das ondas.”

Era uma resposta imperfeita. Mas era uma resposta que não vinha de um algoritmo, nem de um influenciador, nem de um gráfico estatístico. Vinha deles, da decisão de acreditar que o rio precisava de margens não para prender a água, mas para lhe dar forma, direção, sentido.

No Jardim dos Espelhos Partidos, onde os fragmentos de mil reflexos jaziam na erva, começava a germinar algo pequeno, mas teimoso: não a esperança fácil dos vendedores de ilusões, mas a esperança difícil de quem planta sabendo que talvez não veja a colheita. A esperança de quem tece sabendo que o fio pode partir. A esperança de quem pergunta “para onde?” mesmo sabendo que a resposta demorará uma vida inteira a construir.

E isso, pensou Lúcia olhando para o reflexo do pai ao lado do seu, era mais do que tinham tido em muito tempo. Era o começo de um abraço.

No jardim, o relógio de sol voltava a marcar as horas. Na água, os reflexos continuavam a dançar. E na árvore antiga, o fio prateado balançava ao vento, esperando (1).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Reflexão:

A regeneração da sociedade, simbolizada no conto, é possível, mas exige um esforço activo:

Relógio de Sol: Representa a necessidade de recuperar um tempo autêntico, reconciliando-nos com o passado como fundamento e não como amarra. Mostra que verdades permanentes resistem às modas.

Espelho de Água: Simboliza o reconhecimento de que a vida e a identidade são um processo fluido, reconstruído através das relações. Pequenas ações individuais (como uma pedra atirada à água) criam ondas de transformação.

Árvore Antiga e o Fio: A árvore simboliza a esperança e a resistência das raízes (valores, civilização). O novo fio prateado representa uma reconexão possível, mas frágil e não automática. Ele espera por uma escolha consciente.

Conclusão: A regeneração não é garantida. As estruturas permanecem (relógio) e a vida flui (água), mas a reconexão final (o fio) depende de uma decisão activa de cada um de nós. É uma esperança que pergunta: “E tu, vais pegar no fio?”

 

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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