O ATLAS DE FUMO E O FIO DE OURO

Introdução: A Biblioteca das Épocas (1)

Na vastidão do não-tempo, onde as épocas se dissolvem em névoa e os mapas do mundo se redesenham a cada expiração do cosmos, existia uma biblioteca infinita. Não era feita de pedra ou madeira, mas do próprio tecido da memória humana. As suas estantes, labirínticas, guardavam não livros, mas painéis luminosos onde cintilavam as constelações de ideias, paixões e ambições de cada época. Era o reino do pai do tempo Cronos (2), o velho Tecedor, um ser de aparência serena, mas com olhos que reflectiam a fadiga de milénios. Ele não era um deus, mas um arquivista, o Narrador silencioso da história. Tinha entre mãos um tear dourado onde tentava entrelaçar os fios caóticos do destino humano num padrão coerente.

Os seus dois principais assistentes, ou antagonistas, eram Dogma e Providência.

Dogma era um homem de rosto anguloso e vestes impecáveis, sempre carregando uma bússola de aço e um livro das regras da sustentabilidade. Acreditava que o painel do Ocidente, aquele erguido após a última grande convulsão, a que chamaram Renascimento e depois Iluminismo, era a obra final, perfeita e inalterável até aos finais dos tempos. Para ele, a luz daquela constelação, embora já pálida, era a única verdadeira a brilhar no céu de Bruxelas. Uma luz teimosa, sustentada por combustíveis grosseiros, guardados em tanques enferrujados.

Providência, por sua vez, era uma figura etérea, de olhos que pareciam ver não o que é, mas o que poderia ser. Usava um manto bordado com os símbolos de todos os povos e sussurrava sobre conexões, complementaridades e um novo painel a surgir do Sul, mais colorido e complexo. Era a voz da intuição racional, do bom senso que vê além do horizonte imediato.

E havia Caos (o espaço vazio, abismo (3), a força primordial que Dogma mais temia. Não era uma pessoa, mas uma energia turbulenta que emanava dos painéis: a emotividade irracional, o medo, o ódio tribal que fermentava nas sociedades quando se sentiam perdidas.

(O mundo da História encontrava-se assim dividido em painéis representados em várias áreas da biblioteca)

O Painel Ocidental e as Fendas

O painel do Ocidente brilhava intensamente. Nele, via-se a catedral do poder: torres de marfim onde as elites, representadas por uma figura etérea e arrogante chamada O Inquisidor (4), admiravam a sua própria obra. Tinham construído um sistema engenhoso, um capitalismo de tipo bússola e privilégio privado. Mas, como notava Cronos com um suspiro, tinham cometido o erro fatal: confundiam o seu painel com o universo inteiro.

“O padrão está completo!” proclamava Dogma, ajustando o compasso. “Todos os outros painéis devem calibrar-se pelo nosso. E para nós os valores válidos são os da nossa Constituição”.

Porém, o Tecedor apontava para as rachaduras. O brilho intenso do painel não iluminava os seus cantos mais sombrios: os desfavorecidos, os idosos e os jovens, representados por uma figura colectiva e cansada, O Povo, que, na penumbra, viam os fios dourados da sua prosperidade serem desviados para alimentar uma grande forja de armas reluzentes e magnates globais, fora do painel. O Povo não entendia os desígnios do Inquisidor; sentia apenas um frio crescente e uma ansiedade surda, um mal-estar que era o combustível de Caos.

O Inquisidor, sentindo o controlo a escapar, não apelava à razão. Em vez disso, sussurrava para o painel. Murmurava medos antigos, alimentava suspeitas, pintava o mundo exterior de cores ameaçadoras. Era mais fácil unir O Povo pelo temor do que pela esperança. A emotividade, como um vinho forte, entorpecia a capacidade de questionar.

O Novo Mosaico e a Renitência

Enquanto isso se dava, noutra ala da biblioteca, um novo painel ganhava forma. Era um mosaico vibrante de cores terrosas, verdes luxuriantes e azuis profundos: O Sul Global. Não seguia o mesmo desenho. As suas torres não eram de marfim, mas de bambu e aço, erguidas por mãos estatais e colectivas. Era um capitalismo diferente, menos privado, mais comunitário na sua origem, unido por fios de tradição e soberania que o Ocidente julgara obsoletos.

Providência observava, fascinada. “Vê, Cronos? É a mesma transição que ocorreu quando o feudalismo deu lugar aos nossos reinos comerciais. É a História a repetir a sua dança, noutro palco.”

Dogma, contudo, olhava para aquele painel e não via inovação, viu apenas uma heresia. “Eles não seguem as regras! O compasso não se aplica nem tem sentido! É uma afronta à nossa constelação!”.

O Inquisidor, ecoando Dogma, começou a gritar. Em vez de buscar dialogar com o novo mosaico, começou a apontar para ele as suas armas reluzentes, a tentar cercá-lo com um anel de fogo. A renitência em aceitar a mudança tornou-se a própria semente do conflito. A NATO, nessa narrativa, era o seu exército de sombras, a tentar conter a maré com velhos mapas.

A Torre de Babel da Esquerda e o Profeta

No próprio painel ocidental, uma guerra silenciosa corroía a base. O Centro da polis temia que os ventos fortes vindos da direta lhe desabrigassem as raízes. A Esquerda, que outrora pretendia ser a voz de O Povo, estava dividida. Dois grupos lutavam. Os Jacobinos Verdes, discípulos involuntários do Inquisidor, tinham trocado o vermelho pelo verde escuro num pacto de poder. A sua ecologia tornara-se dogmática, belicista e distante das necessidades terrenas de O Povo. Eram a ala moralizadora e emocional, úteis ao Inquisidor para manter a narrativa de medo.

Do outro lado, uma voz mais calma, mas persistente tentava fazer-se ouvir. Era O Profeta, não um adivinho, mas um pragmático com alma. Representava aqueles que viam a loucura do momento. “Não podemos defender O Povo fomentando o seu medo!” clamava. “Precisamos de um meio termo, de uma razão integral que una a justiça social à pragmática colaboração com o novo mosaico. A nossa luta não é contra o Sul, é contra a injustiça de uma desigualdade que nos consome por dentro!”

Mas a sua voz era abafada pelo ruído ensurdecedor de Caos, amplificado pelo Inquisidor e pelos Jacobinos Verdes.

O Grande Tear Eurasiático

Cronos, o Narrador, cansado da cacofonia, decidiu agir. Não com força, mas com lembrança. Ele projectou uma visão sobre os painéis em conflito.

Era a imagem de um Grande Tear Eurasiático. Mostrava a Rússia não como um inimigo, mas como uma ponte vasta e antiga entre a Europa e a Ásia. Mostrava rotas não de invasão, mas de comércio, de cultura, de energia e de ideias fluindo de Lisboa a Xangai, unindo províncias e continentes num novo padrão.

“Olhem”, sussurrou Cronos, sendo a sua voz pela primeira vez audível para todos. “O espírito do Renascimento não era de isolamento, era de redescoberta através do encontro. A mesma coragem que vos fez navegar para ocidente é necessária agora para navegar para oriente, não com naus de guerra, mas com a ânsia de aprender e colaborar. O mundo virtual que criaram pode ser esta nova rota da seda, se o desejarem.”

O Povo, intoxicado pelo medo, começou a esfregar os olhos. A visão era estranha, mas fazia um sentido profundo que a emotividade do Inquisidor nunca lhe proporcionara.

O Fio de Ouro

A batalha não terminou. Dogma e o Inquisidor ainda gritam e Caos ainda sussurra.

Mas a visão plantou uma semente. O Profeta encontrou ouvidos mais atentos. Providência sorriu, vendo que o novo painel do Sul (propriamente formatado pela Europa) não pretendia apagar o Ocidental, mas sim conectá-lo, oferecendo-lhe novas cores para o seu padrão.

Cronos voltou ao seu tear. Entre todos os fios de prata do poder, de ouro do capital, de carmesim da paixão e de sombra do medo, ele começou a entrelaçar um novo fio, que era fino, mas incrivelmente resistente. Era um fio de razão serena, de bom senso histórico, de colaboração necessária.

Era o fio que O Profeta defendia, o fio que O Povo instintivamente desejava, o fio que poderia costurar os pedaços do atlas partido num novo mapa, não de um mundo unificado sob um único dogma, mas de um mundo multipolar, unido pela aceitação da sua própria diversidade e pelo desejo final de um destino comum.

A história, afinal, não se repetia como uma tragédia ou uma farsa, mas como uma oportunidade de correcção. A crise axial era, assim, o doloroso e necessário parto de uma consciência nova. (Teilhard de Chardin resumiria: o despertar de uma consciência cósmica na convergência de todo o mundo para o Ponto Ómega!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Uma macro análise da encruzilhada da História

(1) Cronos, o pai do tempo, um dos Titãs da mitologia grega, filho de Urano (o céu) e Gaia (a terra), conhecido por destronar seu pai e tornar-se o rei dos deuses, governando durante a chamada Idade de Ouro.

(2) Khaos (ou Caos), na mitologia grega, é a primeira entidade primordial a surgir no universo, o espaço vazio e primordial do qual tudo se originou, segundo a obra do poeta Hesíodo. O termo significa “abismo”, “vazio” ou “imensidão”, e Khaos é uma força que gera o cosmos por meio da cisão, sendo o oposto de Eros, que representa a união. De Khaos, surgiram outras divindades primordiais como Gaia (a Terra), Érebo (a Escuridão) e Nix (a Noite).

(3) Livro 1984 de George Orwell critica o totalitarismo e a manipulação da verdade, algo que começou a ficar em evidência após a Segunda Guerra Mundial (vigilância em massa e da lavagem cerebral na sociedade).

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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