A Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente
Vivemos um daqueles raros momentos da história em que a ordem mundial não se limita a adaptar-se, mas sofre uma transformação fundamental. Trata-se de uma crise de eixo – um ponto de viragem épico, no qual as estruturas de poder, os modelos económicos e as grandes narrativas civilizacionais são abalados. O Ocidente, outrora arquiteto incontestado da ordem global, permanece hoje numa espécie de paralisia emocional e estratégica – e, com isso, promove involuntariamente exatamente o mundo multipolar que procura impedir.
A Ascensão da Irracionalidade e a Falência das Elites
O mal-estar ocidental não é apenas de natureza económica ou geopolítica; é, acima de tudo, uma crise da razão e da cultura. As elites dominantes, alienadas do povo e do desenvolvimento orgânico e qualitativo do indivíduo e da sociedade, abandonaram os padrões da razão, da ponderação crítica e do espírito de cooperação e complementaridade. A liderança sóbria foi substituída por uma emocionalização perigosa e tóxica da comunidade.
Esta estratégia, que recorre a instintos sociais baixos, é um sintoma de pânico. As elites, movidas pelo medo de perderem o controlo da narrativa e o seu lugar privilegiado, intoxicam o espaço público. Isso resulta numa sociedade hipersensível e depressiva, incapaz de compreender as causas profundas da sua miséria e que se contenta em lamentar as suas consequências. O caso alemão é paradigmático: enquanto se desviam verbas incomensuráveis para a guerra e se acumula dívida nacional, as desigualdades sociais que atingem brutalmente idosos e jovens são ignoradas. O discurso público, em vez de tematizar estas opções, prefere o conforto da emoção.
O Palco Geopolítico: A Revolução Multipolar
Esta convulsão interna coincide com uma mudança histórica de proporções épicas. Talvez seja comparável à transição do feudalismo para o capitalismo nos séculos XV e XVI.
O capitalismo, fruto da revolução industrial, foi durante muito tempo um projeto exclusivamente ocidental. Hoje, porém, o Sul Global despertou do seu «sono medieval». Os países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros – estão a reformular as suas economias, sob o signo do capitalismo estatal. Este modelo, apesar das suas contradições, prova-se formidável na concorrência com o capitalismo ocidental de carácter fundamentalmente privado e financeirizado. O subsídio ocidental ao capitalismo liberal turbo não só enfraquece a espinha dorsal de uma classe média saudável, como também favorece formas artificiais de empresas, cujo único fundamento é o próprio capital. Nesta situação paradoxal, as elites destroem a sua própria base para satisfazer as exigências do sistema que elas mesmas criaram noutras paragens. Nesta situação as nossas elites autodestroem-se para conseguirem dar resposta ao sistema que impuseram ao submundo.
Perante este desafio, a resposta anglo-saxónica (EUA/UK) e europeia, canalizada através da NATO, não é de adaptação, mas de renitência e confronto. Em vez de reconhecerem os sinais dos tempos e buscarem uma colaboração Norte-Sul, agarram-se a velhas doutrinas belicosas da Guerra Fria. A insistência em ver o mundo através da lógica do “amigo-inimigo” e a camuflagem de interesses imperialistas sob o pretexto de “defesa de valores” só consegue uma coisa: fomentar a afirmação do mundo rival em termos de rivalidade, e não de colaboração.
A Esquerda Europeia: Perdida entre o Verde e a Guerra
A esquerda europeia, outrora garantidora de uma política social e humanista, perdeu a sua bússola; o centro político tem receio de revelar as suas próprias raízes. O caso do SPD alemão é sintomático: a sua associação à ideologização verde prejudicou a sua imagem de partido anchor da justiça social.
O movimento ecológico, originalmente com raízes locais e pacifista, também foi cooptado e transformado numa força moralmente belicista da geopolítica. Esta «ecologização» da política, longe de salvar a natureza, tornou-se um instrumento de emocionalização que cega ainda mais a sociedade. A esquerda, dependente desta agenda, tornou-se num parceiro involuntário de políticas que negam o seu próprio projecto de justiça social e paz.
A direita, por sua vez, perdeu a sua firmeza ao abandonar os seus fundamentos culturais. Seduzida pelas tentações da globalização liberal, escolheu o caminho da agressão em vez da cooperação entre os povos.
A União Europeia faz parte da Eurásia e se considerarmos o tempo em épocas, e não em períodos eleitorais de quatro anos, teremos que concluir que a Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente.
A Única Saída é a Razão e a Colaboração
O surgimento de figuras como Trump nos EUA não é a causa, mas sim um sintoma deste processo histórico em curso acelerado. São as dores de uma transição inevitável para um mundo multipolar.
O Ocidente tem apenas uma saída: afastar-se da mera emocionalidade e voltar à razão e ao senso comum político:
– Reconhecer a nova constelação de poder e negociar com o Sul Global de igual para igual.
– Abandonar a doutrina do confronto da NATO em favor da diplomacia e da cooperação económica.
– Reafirmar um discurso público objectivo, onde os media e os partidos priorizem o bom senso sobre a histeria.
– Reencontrar uma esquerda que volte a tematizar as causas da desigualdade sem abandonar o humanismo cristão, em vez de se limitar a gerir as suas consequências da desigualdade com emotividade.
A crise do eixo não marca um fim, mas sim um doloroso recomeço. O Ocidente pode revelar-se um obstáculo obstinado e, assim, acelerar o seu próprio declínio – ou pode redescobrir a razão e encontrar o seu lugar num mundo que já não é exclusivamente seu, mas que pode ser mais justo e equilibrado para todos. A depressão das sociedades ocidentais é o reflexo da doença das suas elites. A cura começa com a coragem de pensar com clareza.
A União Europeia faz parte da Eurásia. E se não medirmos o tempo em mandatos eleitorais de quatro anos, mas em épocas, então temos de concluir: a Eurásia é o palco decisivo que se torna a ponte entre o Oriente e o Ocidente.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
Li com cuidado, interesse e gosto o teu texto de agora colocado no TriploV, texto esse bem escrito e claro, como é teu timbre.
Vejo sinceridade nele – quer dizer, as conclusóes e proposições que expendes não são fruto de habilidades ou velhacaria crítica. Mas tenho a ideia de que não levas em conta factos indubitáveis e que, portanto, corres o risco de estar a ser prejudicial, sem o quereres, para com o geral dos leitores: assim, por exemplo, não falas/analisas num dos aspectos importantíssimos e nucleares: a arrancada islamita, que condiciona já o global. E enganas-te gravemente ao atribuires à NATO um papel que não é o que está patente, pois ela é apenas um oponente à real agressividade do bloco que contem a Rússia, a China, a Bielorrússia, a Coreia e o Irão (fiquemos por estes).
No que diz respeito ao Brics, nota que eles são apenas e tão-só a face digamos industrial-financeira do totaliterismo mais expresso, o que nunca levará a nada mais que violência e engodo.
Creio que a tua posição, que no fundo visa a melhoria do mundo, está claramente tributária do que – mas aí de uma forma cínica de claro turiferário jesuíta, que sempre o foi com todas as consequência de embuste – das teses do Bergóglio, de quem ao que me parece ainda não te conseguiste libertar, vendo-o como aquilo que era: um consumado compagnon de route dos neo-estalinistas e neo-comunistas de agora.
Sem decerrto o quereres, pois és um homem honesto – corres o risco de te agregares ao leste crapuloso de agora. Pois tanto a Rússia, como a China (parceiros maiores do nefando Brics) têm apenas como visão não a cooperação e a paz mas o domínio total do seu – esse real – imperialismo completo e dominante.
Vai o abraço firme do teu de sempre
n.
Caro amigo, entendo o teu texto e compreendo-o mas no meu espírito surge uma resposta humorosa e como és poeta aí vai a resposta a meu jeito:
Resposta a uma Crítica de espectro fino
Caro Poeta, meu crítico de escol,
Que lês meu texto com jeito de esquadra,
E achas que lhe falta um núcleo solar
A arrancada do Islão que é farol de cartilha.
Se não falo do que falas, é pecado,
E a minha pena, ingénua, fica a dever.
Falta-lhe o facto indubitável e sagrado
Que só os muito lúcidos conseguem ver.
Quanto à NATO, explicas com primor
(Eu, cego, não via tanta fineza):
Não é agressora, é um puro amor,
Uma irmandade em prol da Natureza.
E o BRICS? É a face mais torpe do Inferno,
Só traz violência, engodo e treva.
É um totalitarismo moderno
Que a tua prosa vigilante eleva.
E sim, confesso: essa foi a gota
A culpa é do Bergóglio, o jesuíta!
A sua sombra em mim ainda remoça
A seiva de um ingénuo que medita.
Tu vês-me à beira do Leste crapuloso,
Onde o imperialismo é real e feroz.
Eu, que julgava o meu tom bondoso,
Vejo que afinal sou um pobre atroz.
Obrigado, Poeta, pelo alerta,
Pela lição de geopolítica.
A tua visão, certeza e aberta,
É de uma clareza angélica, prática.
Levo o teu abraço firme, como um guia,
E prometo: na próxima escrita,
Falarei do Islão, da NATO, de um outro dia,
Com a mesma isenção de um que acolita.
Cordialmente,
O Teu Justo, sempre aberto a críticas que esclareçam.
António da Cunha Duarte Justo