QUANDO O CANTO VENCEU O CANHÃO (1)

Naquela noite de consoada, a neve não escolheu lado.

Caiu sobre capacetes alemães, sobre botas inglesas, sobre o medo francês e sobre o silêncio russo que ainda não chegara ali. A neve não conhecia fronteiras, nem mapas, nem ordens superiores.

Era a noite de 24 de dezembro de 1914.

Nas trincheiras alemãs, um soldado jovem, de nome Friedrich, começou a cantar. Não cantava por coragem, nem por desafio. Cantava porque já não suportava o ruído da guerra dentro do peito. Cantava porque por baixo da sua farda ainda ecoavam no seu coração os ecos das cancões de natal e na retina a imagem do Anjo que anunciava “Paz na Terra aos homens de boa vontade”:

Stille Nacht, heilige Nacht… (Noite feliz, noite santa…)

A canção atravessou o ar gelado do campo de batalha como uma vela acesa no meio do inferno. Do outro lado, um inglês, o Thomas, reconheceu a melodia antes mesmo de reconhecer o inimigo e também ele entoou.

Silent night, holy night…

As armas hesitaram. O ódio, treinado e ensinado, não sabia o que fazer com aquela língua comum que nenhuma propaganda conseguira destruir.

Os soldados saíram lentamente das trincheiras, como crianças que aprenderam a andar de novo. No terreno neutro, coberto de geada que naquela noite se tornou terreno humano, trocaram pão, cigarros, nomes, fotografias de filhos que ainda não sabiam o que era uma guerra.

Enterraram juntos os mortos.

Foi então que, cem anos depois, Teófilo, um professor desejoso de uma cultura da paz, fechou a página do jornal alemão HNA onde se fazia referência ao acontecimento e suspirou:

“Se eles conseguiram cantar na guerra, por que nós não conseguimos cantar na paz?”

Na sala estavam outros.

Miguel, o sindicalista, apoiou os cotovelos na mesa e protestou:

“Hoje gastamos o PIB em armas que não criam pão. Se distribuíssemos fábricas como se distribuem batalhões, criaríamos riqueza onde hoje só há desespero e nos povos que designamos de subdesenvolvidos.”

“Utopia”, interrompeu Germano, defensor da guerra. “A guerra sempre fez avançar a história. Tecnologia, indústria, poder. Sem conflito, não há progresso.”

A diaconisa Clara, com um lenço simples sobre os ombros, falou baixinho, mas a sua voz atravessou a sala e o olhar de todos:

“O Natal não é progresso. É encarnação. Deus não veio em exércitos, veio na fragilidade. A guerra promete futuro matando o presente.”

Germano riu-se:

“Palavras não detêm tanques.”

Teófilo respondeu:

“Mas canções já detiveram canhões.”

Houve silêncio. Um silêncio frio semelhante ao de 1914.

Clara levantou-se e começou a cantar, com voz trémula:

“Noite feliz…”

Ninguém a acompanhou de imediato. Estavam desacostumados. O mundo moderno ensinara-lhes a gritar, não a cantar juntos.

Mas Miguel, de voz mais forte acompanhou-a. Seguiu-se Teófilo e até Germano, desconcertado, murmurou a melodia que aprendera na infância.

Naquele instante, compreenderam:

a voz do povo não instrumentalizado não divide, une.

E aquilo que divide, mesmo quando se chama progresso, carrega o nome antigo do diabo.

As trincheiras não desapareceram naquela noite.

Mas algo começou a ruir.

Talvez um dia, pensou Teófilo, as trincheiras da Europa, da Rússia, da Ucrânia e do mundo

sejam niveladas não por bombas, mas por vozes.

E talvez, então, a humanidade volte a cantar, não porque venceu, mas porque finalmente aprendeu a viver sem inimigos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Natal de 2025

(1) A Trégua de Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial, onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em partes da Frente Ocidental.

O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e cantaram “Stille Nacht”. Os aliados responderam cantando “Silent Night” em inglês. Encorajados, ambos os lados saíram desarmados para a “terra de ninguém”, onde confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus mortos e até jogaram futebol improvisado.

Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em cartas, diários e relatos dos próprios soldados.

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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