Mudou-se o nome da coroa,
não o brilho.
O rei aprendeu a chamar-se presidente
e desceu do trono
apenas para subir ao ecrã.
Disseram ao povo:
agora és soberano.
E entregaram-lhe uma urna,
caixa sagrada
onde cada um deposita a sua voz
para nunca mais a reclamar.
A soberania individual
entra dobrada em papel,
selada,
arquivada
no silêncio solene do voto.
Sai de lá dissolvida,
anónima
sem direito a recurso.
O povo vota.
E ao votar, ausenta-se.
Ergue a cabeça como lhe ensinaram,
não para escolher o caminho,
mas para reconhecer a aura
com nova gramática.
Já não há sangue azul,
há protocolo e mandato.
Já não há corte,
há gabinete e plenário.
O gesto é o mesmo:
mão que promete,
voz que absolve,
olhar que nunca responde.
O eleito sobe
e com ele sobe a imunidade.
Quanto mais alto o cargo,
mais leve a culpa.
A responsabilidade cai,
não acompanha a ascensão.
O poder perdeu a coroa
para ganhar inviolabilidade.
E o povo ganhou um nome antigo
Cidadão
para continuar sem rosto.
Chamam-lhe democracia
como quem muda a moldura
e mantém o retrato.
Há eleições como havia aclamações,
há discursos onde antes havia éditos,
há fé civil
onde antes havia fé divina.
Os anjos reciclam as asas,
os arcanjos mudam de fato,
e o povo continua chão
agora constitucional.
Figura central do quadro,
mas apenas como primário da pintura.
Autor do poder,
mas excluído da autoria dos seus actos.
E assim, o cidadão,
com a cabeça erguida por decreto
e a soberania arquivada por rito,
aprendeu a arte mais moderna
e mais antiga:
entregar-se inteiro
em nome da escolha
e assistir, liberto de si,
à irresponsabilidade dos eleitos!
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) Escrevi estes versos no crepúsculo dourado de uma era politicamente anémica, onde os nossos digníssimos governantes se contorcem como marionetas de um teatrinho particularmente reluzente. Oh, que esplendor, ver-se figurinos mais que eleitos! Talvez banhados por uma luz celestial ou quiçá por um brilho menos divino, oriundo de certas bebidas modernas ou das lentes enviesadas das câmaras de televisão. Quem saberá? A fronteira entre a inspiração sublime e a pura extravagância é, afinal, tão ténue como a linha que separa o discurso político do murmúrio néscio.
Mas eis o facto, cru e deliciosamente patético: quando se reúnem no sagrado palco de Bruxelas, erguendo as mãos em gestos coreografados, a Europa inteira mergulha num estado de sonambulismo colectivo. Que espetáculo! Não são governantes, não, são figurinos de encomenda, manequins de gravata, arautos de um vazio retórico tão amplo que nele cabem, confortavelmente, as esperanças de um povo agora reduzido a plateia. E nós, pobres mortais, aplaudimos ou bocejamos perante a mesma comédia repetida, enquanto eles, lá no alto, tecem os fios do nosso delírio comum.
Que época sublime, irónica, e dolosa figura fazem os nossos figurinos à frente das capitais!