No jardim secreto da alma
onde o silêncio aprende a florir
o Natal não chega:
nasce.
Não é data,
é chama antiga
a arder no coração do mundo,
estrela interior
a abrir o céu por dentro.
Num estábulo mínimo
onde o divino se inclina,
terra e céu tocam-se.
E a Luz entra na História
no corpo frágil de um Menino,
Seu nome é Jesus.
Nele a humanidade inteira
se entregue como dom.
Presente sem preço,
sem embrulho,
oferta nua
no berço da Terra.
Nele o mistério abre-se:
Não somos apenas quem recebe.
Somos o presente.
Eu-Tu-Nós,
existimos para ser dados:
como pão, abraço,
como palavra justa que salva,
ou silêncio que ampara.
Quando o sabemos,
tudo se torna dádiva
e a gratidão aprende a cantar.
Estamos embrulhados em Deus:
feitos de musgo e estrela,
poeira e infinito,
ligados com fios invisíveis
a tecer-nos em pessoas verdadeiras.
Até o sol é oferta,
coração em fogo
a aquecer a pele do planeta
e a erguer o olhar da alma.
A estrela não guia só à Belém da História,
mas à que dorme em nós,
no fundo fértil do ser
onde a Luz ensaia nascer.
Ali, Deus dança.
Energia em êxtase,
desejo puro,
movimento de ascensão
contra o peso do medo
e da cinza.
A voz divina ecoa:
no mar, no vento,
na sede dos pobres por justiça,
no olhar dos animais
quando a madrugada recomeça o tempo.
Que este Natal nos acorde
para o assombro de sermos oferenda viva,
continuação da Luz
num mundo ferido.
Feitos de terra e céu,
embrulhados para a vida,
somos chamados a dançar,
a oferecer,
a crescer em humanidade.
Mesmo sob as cinzas e o ruído
de uma sociedade cansada,
governada pelo útil
e pelo passageiro,
o Natal resiste,
Brilha e espera.
Ele nasce
sempre
que alguém
se oferece.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
Nota do Autor
Este poema nasce da impressão, tantas vezes inquietante, de habitarmos um mundo que, apesar do seu progresso técnico e organizativo, parece agir contra o humano: um mundo orientado pelo útil, pelo imediato e pelo descartável, onde a vida corre o risco de perder profundidade, sentido e ternura.
Diante dessa experiência, a figura de Jesus surge aqui não como pertença exclusiva de um credo, mas como protótipo do humano pleno e sinal de uma criação inteira a caminho. Nele reconheço uma síntese viva do que o humano pode vir a ser: relação, entrega, consciência, compaixão, natureza humano-divina. Por isso, a sua luz ultrapassa fronteiras religiosas e também as negações ateias, não para as negar, mas para as iluminar a partir de dentro.
Jesus aparece, assim, como estrela interior, não imposta, mas oferecida, capaz de orientar cada pessoa no seu próprio percurso de humanização. Uma luz que não divide, mas convoca; que não domina, mas inspira; que não se impõe como dogma, mas se propõe como caminho e sentido.
O Natal, neste horizonte, deixa de ser apenas memória ou tradição: torna-se apelo permanente a uma humanidade mais autêntica, reconciliada consigo mesma, com a Terra e com o mistério que a atravessa.