TRUMP E A TENTAÇÃO CONSTANTINIANA

Um artigo recente publicado na plataforma InfoCatólica (1) afirmou que o presidente dos Estados Unidos Donald Trump teria convocado um “Terceiro Concílio de Niceia” para ocorrer em março na cidade turca de Iznik, antiga Niceia, conhecida por sediar o histórico Primeiro Concílio Ecuménico em 325 d.C.

A alegação, baseia-se numa interpretação sensacionalista, porque carece de fontes oficiais verificáveis dado no artigo não terem sido apresentados comunicados da Santa Sé, de líderes ortodoxos ou da Casa Branca confirmando uma convocatória formal de “concílio”, como historicamente se entende no direito canónico católico.

Historicamente, o Concílio de Niceia de 325 foi convocado pelo imperador Constantino num contexto irrepetível. O cristianismo acabara de ser legalizado, a Igreja ainda não possuía a estrutura canónica atual e o imperador via-se como garante da unidade civil e religiosa do Império. Mesmo assim, Constantino não definiu a doutrina: fê-lo o episcopado. A partir da Idade Média, e com maior clareza na modernidade, a Igreja Católica afirmou a sua autonomia face ao poder político. Concílios tal como o Vaticano II só podem ser convocados pelo Papa.

Neste contexto, a ideia de um líder político contemporâneo “convocar” um concílio não pode ser entendida em sentido estrito. O que estará em causa não é um evento eclesial, mas talvez um gesto simbólico: a evocação de Niceia como mito fundador de uma identidade cristã do Ocidente.

Donald Trump tem recorrido com frequência à linguagem religiosa, não como expressão teológica, mas como marcador civilizacional. O cristianismo surge menos como fé e mais como fronteira cultural: aquilo que define “quem somos” contra “quem ameaça”. É uma lógica que encontra eco em setores do nacionalismo cristão norte-americano.

No modelo russo, o Estado e a Igreja Ortodoxa caminham juntos na construção de uma identidade nacional: a fé legitima o poder, e o poder protege a fé, ou, pelo menos, a sua versão oficial. Trata-se de uma simbiose eficaz do ponto de vista político, mas problemática do ponto de vista do Evangelho.

A Igreja Católica, sobretudo após o Vaticano II, desconfia profundamente desse modelo “constantiniano”. A fé perde a sua liberdade profética quando se torna instrumento do poder. O cristianismo deixa de converter consciências para passar a organizar fronteiras.

Mais relevante do que discutir se Trump pode ou não convocar um concílio, algo que, evidentemente, não pode,  é compreender por que o imaginário de Niceia, de Constantino e da cristandade imperial reaparece hoje no discurso político. Num mundo fragmentado e inseguro, a perceção de que, no modelo islâmico, a identificação de religião com política permite a existência de uma comunidade supranacional coesa, a Ummah, pode exercer forte fascínio. Para um líder que se percebe à frente de um “império” em crise de identidade, numa situação que evoca a fragilidade do Império Romano nos tempos de Constantino, a religião tende a ressurgir como instrumento privilegiado de unidade simbólica, alimentando projetos e fantasias de recomposição civilizacional. A luta do nosso tempo desencadeada na Europa por políticas, directrizes e agendas contra o cristianismo parece querer agora moderar a ideologia Woke e o dogmatismo secularista de laivos jacobinos.

O risco é antigo: quando César fala em nome de Deus, Deus acaba por falar com a voz de César.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1)              https://www.infocatolica.com/?t=noticia&cod=54128&utm_medium=email&utm_source=boletin&utm_campaign=bltn251228#formComentario

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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