Ensaio literário sobre o tear do medo, tecido com os fios da máscara e o nó da denúncia
Era uma vez uma cidade já velha chamada Ânfora, cujas casas eram como ânforas gregas, belas, mas ocas, destinadas a guardar um vinho que já ninguém bebia. O ar, outrora preenchido pelo murmúrio das fontes e pelas risadas nas praças, tornara-se pesado, saturado de um silêncio que era menos paz e mais ausência provocadora.
Um dia, sem que se visse o inimigo, os Oleiros da Cidade, que outrora moldavam a vida comum, decretaram o Grande Recolhimento Domiciliário. Um “Cuidado Invisível” pairaria sobre todos, alegavam. Para nos proteger, disseram, é preciso que cada ânfora se feche sobre si mesma.
E assim foi; decretou-se estado de emergência e recolher obrigatório. As portas cerraram-se. Os rostos, outrora mapas de emoções, foram cobertos por véus de linho branco. Os olhos, as únicas janelas que restavam, aprenderam a desconfiar. Um sorriso, um cumprimento, um abraço, um aperto de mão, actos outrora inocentes, tornaram-se suspeitos, possíveis veículos do tal Cuidado Invisível.
O Oleiro-Mor, de seu nome Governância, em conluio com os Arautos, os contadores de histórias oficiais, começou a tecer uma narrativa de medo. O seu tear era a repetição, e o fio que usavam era o pavor. “Dividir para reinar”, sussurravam os sábios mais anciãos, recordando os velhos compêndios de poder e das elites. E a divisão veio: o vizinho denunciava o vizinho por não trazer o véu corretamente ou por o não trazer, desobedecendo assim ao regulamento de agendas globais e de seus administradores que em nome do globalismo tinham renunciado a ser governantes; o amigo afastava-se do amigo, temendo o hálito que outrora partilhava em confidências e em encontros sociais.
Até os Guardiães das Almas, os Sacerdotes do Deus-Homem, quebraram o seu próprio cânon. Acreditando servir a um deus maior, a Ciência dos Oleiros, fecharam os templos e proibiram o consolo do rito, esquecendo que a alma, essa verdadeira soberana, definhava de fome e solidão. A ânfora humana, fechada, começou a rachar.
Nesse tempo de exílio interno, uma jovem jardineira de almas, chamada Serena, começou a reunir um pequeno grupo no jardim abandonado da cidade. Não protestavam com gritos, mas com silêncio. A sua arma era a meditação, a sua bandeira era uma flor. Ofereciam crisântemos aos guardas de armadura que os observavam, e estes, por vezes, sorriam, confundidos por tal gentileza.
Num dia particularmente sombrio, Serena, para que as suas palavras chegassem mais claras aos corações, baixou o véu de algodão. Foi o suficiente para mover a trama institucional contra o peado cidadão. Dois guardas, outrora receptores das suas flores, avançaram. A alegoria da compaixão foi quebrada pela literalidade do decreto. Serena foi levada, acusada de “mau exemplo”. A sua ânfora pessoal foi violada pela mão do regulamento.
A multa foi pesada, mas um fio de solidariedade, tecido nas teias de uma Rede de Fios de Luz (que os Arautos desdenhavam), juntou o povo para pagar a dívida. Contudo, o estrago estava feito. A praça jardim onde Serena ensinava a respirar foi-lhe retirada e os manifestantes da meditação obrigados a debandar. A lição era clara: até o acto mais pacífico de reconexão comunitária seria tratado como um crime de insubordinação.
Os Oleiros de toda a Europa sob o comando da feiticeira de Bruxelas, vendo a facilidade com que as ânforas dos seus reinos se isolaram e se voltaram umas contra as outras, aprenderam uma lição perigosa: o povo era de barro mais maleável do que julgavam. Tendo testado com sucesso os limites do seu poder em tempos de peste, sentiram-se habilitados a novos projectos. A máquina do poder unido untado com o brilho do medo tornara-se eficiente.
Assim, quando um novo conflito eclodiu nas terras distantes do Leste, os mesmos Oleiros, que nos privaram do abraço, começaram a falar em forjar armaduras para toda a cidade, transformando a Ânfora numa Fortaleza. O medo do vírus foi habilmente substituído pelo medo do estrangeiro. A linguagem tornou-se opaca, uma névoa que impedia o discernimento. A agressividade, cultivada durante anos de tensão doméstica, transbordou para as famílias, rachando jantares e envenenando laços.
A cidade de Ânfora nunca mais recuperou o seu riso. As pessoas haviam-se desabituado de confiar, de tocar, de partilhar o mesmo ar. A Democracia, outrora um mercado de ideias vivas, transformara-se num regime autoritário de gestão de crises, onde a única soberania que restava era a do medo. E as ânforas, cada vez mais ocas, ressoavam apenas com o eco sombrio de uma verdade que todos sentiam, mas que ninguém ousava pronunciar: que o maior contágio não fora o do vírus, mas o do poder absoluto, e que a mais nefasta das sequelas foi a perda da própria humanidade que alegavam proteger.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
Complemento crítico:
Esta alegoria sobre as Medidas anti pandemia Corona Vírus toca em pontos críticos analisados por filósofos e cientistas sociais durante e após a pandemia (aqueles que não eram permitidos à luz das Câmaras de Televisão):
- A “Sociedade da Desconfiança”: O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, com o seu conceito de “medo líquido”, previu como o temor pode corroer os laços sociais. A alegoria dos vizinhos que se denunciam ecoa directamente os mecanismos de controle em estados totalitários, onde o cidadão é transformado em extensionista da vigilância estatal.
- A Biopolítica: O filósofo Michel Foucault forneceu o conceito de “biopoder”, o controle estatal sobre a vida biológica das populações (saúde, natalidade, etc.). As medidas COVID representaram um exercício sem precedentes de biopoder, onde os governos passaram a ditar como os corpos se podiam ou não relacionar. A submissão da Igreja na sua narrativa é um exemplo claro: até a autoridade espiritual foi suplantada pela autoridade biopolítica.
- A “Cognição Embodied”: A neurociência e a filosofia da mente mostram que o nosso “eu” não está apenas no cérebro, mas é construído através da interação com o mundo e com os outros, além da impregnação indelével do selo branco espiritual. A privação do toque, do contacto, do rosto inteiro, do riso partilhado, não foi uma mera inconveniência; foi uma mutilação do nosso ser-no-mundo. A alegoria da ânfora rachada representa este dano psíquico profundo.
- A Exploração da “Crise”: A politóloga Naomi Klein, na sua “Doutrina do Choque”, argumenta que elites políticas e económicas frequentemente exploram crises (reais ou percebidas) para impor políticas impopulares que, em tempos normais, seriam rejeitadas. A pandemia e, subsequentemente, a guerra, funcionaram como esses “choques”, permitindo uma reengenharia social acelerada e uma centralização de poder, tal como descreve.