Não sou só um núcleo, um simples ser,
Sou um verso que o mundo veio escrever.
Antes do berro, no silêncio uterino,
Jazia o fado, um destino divino.
O tempo-espaço, primeira masmorra,
Que liberta a alma e a segura por fora.
Dois seres, um laço, um íntimo desvelo,
Plantaram em mim o futuro no efémero.
Depois veio o mundo, com seus muitos braços,
Normas, culturas, risos e embaraços.
A educação, tecedora de grilhões,
Moldou meus contornos, cosendo opiniões.
Sou Geografia, sou História e Arte,
Sou um mapa de sinais a abrir-se em parte.
Sou Filosofia, sou Política e Mística,
Uma teia de campos que me classifica.
Leio os sinais de trânsito do enquadramento,
As barreiras do corpo, do social lamento.
E aprendi que não basta a inteligência pura,
É preciso esperteza na seara escura.
Para ser a onda que do mar se ergueu,
A rosa única que o jardim teceu.
Há uma tensão no que é tido por normal,
No aceitável, no posto no jornal.
Quem questiona, na margem fica,
Mas sem margem, o centro nada significa.
É no conflito, por mais que doa,
Que a vida avança, que a alma brota e voa.
Não se confunda a Alma com a paisagem,
Não se reduza o Eu a uma miragem.
Que o Ego sozinho é grão de areia fina,
Que o vento leva e nada determina.
A verdadeira essência, sabedoria antiga,
É partir do Eu, mas rumo ao divino
Do Nós, da comunidade, do chão compartilhado,
Onde o ser é Pessoa, em amor entrelaçado.
E assim se forma, na luz e na sombra,
A Pegada do Tempo que me assombra.
Sou eu mesmo e o outro, circunstância e vontade,
Na vastidão do ser, buscando a liberdade.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo