MARIA DEUSA ENCOERTA DO CRISTIANISMO

Reflexões para o Dia da Imaculada Conceição

No dia 8 de dezembro, a Igreja Católica celebra a Imaculada Conceição de Maria. Além da recordação de um acontecimento do passado, trata-se de uma experiência simbólica e espiritual que aponta para uma realidade que ultrapassa o meramente histórico, factual ou biológico. Os símbolos religiosos, como afirma a fenomenologia da religião, não se esgotam no que representam: remetem sempre para além de si próprios, para uma dimensão do real que não se deixa reduzir à materialidade nem ao pensamento lógico-linear.

O símbolo e a verdade

Em filosofia costuma-se distinguir entre três tipos de verdade:

– a verdade em si mesma,

– a verdade para nós,

– e a nossa verdade.

O ser em si não coincide com o modo como o apreendemos. Por isso, no acto do conhecimento, não é legítimo identificar a realidade com a sua aparência. O conhecimento implica sempre uma dualidade: há algo que é percebido e alguém que percebe. Como recordava Immanuel Kant, “o conhecimento começa com a experiência, mas não se esgota nela”. A facticidade oferece apenas o campo onde se manifestam condições mais profundas do conhecer.

Aplicado à fé cristã, isto significa que as verdades religiosas não podem ser tratadas apenas como factos históricos nem como proposições científicas. Elas pertencem a uma ordem experiencial e relacional, intemporal, que a tradição bíblica chama kairos: um tempo que não passa, mas acontece sempre.

Maria, Mãe de Deus e Mãe da Humanidade

Maria recebeu o título de Theotókos (Mãe de Deus) no Concílio de Éfeso, em 431, não por exaltação pessoal, mas por aquilo que o título afirma sobre Jesus: o Verbo feito carne. Ao confessar Maria como Mãe de Deus, a Igreja confessa simultaneamente que Deus entrou plenamente na história humana.

O dogma da Imaculada Conceição, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX, afirma que Maria foi preservada do pecado original para ser morada do Filho de Deus. Este dogma não pretende oferecer uma explicação biológica, mas expressar simbolicamente um novo começo da humanidade, uma criação recriada pela graça. Maria é a nova Eva, aquela que diz “sim” à vida como dom, unindo céu e terra.

Virgindade: sinal de transcendência, não negação da vida

Num mundo de matriz materialista e utilitarista, a virgindade é frequentemente reduzida a tabu, repressão ou mito. No entanto, biblicamente e teologicamente, a virgindade aponta para o Reino de Deus, para uma realidade não esgotável no imediato nem no instinto. Leonard Boff afirma:

“A virgindade cristã é maternal: gera filhos para o Reino.”

A virgindade de Maria não nega o valor da sexualidade, mas relativiza a sua absolutização. Liberta o feminino de ser mero apêndice do masculino e revela, em Maria, os traços maternais do próprio Deus. Neste sentido simbólico profundo, pode falar-se de Maria como a “deusa encoberta do cristianismo”: não uma deusa concorrente, mas o rosto materno do divino revelado na história.

Encarnação e superação da dualidade

No nascimento de Jesus reconhece-se a superação da grande polaridade que marca o pensamento humano: espírito e matéria. Em Jesus Cristo, o divino e o humano tornam-se compatíveis de modo pleno. Karl Rahner lembrava que a virgindade ocupa um lugar secundário na hierarquia das verdades, mas exprime de forma intensa que a salvação é dom gratuito, não produção humana.

Também a ciência contemporânea, particularmente a física quântica, aponta para uma realidade menos mecânica e mais relacional do que o paradigma clássico permitia supor. Matéria e energia, observador e observado, encontram-se em interação. Tal aproxima-se surpreendentemente da visão cristã da realidade como processo relacional, expressa simbolicamente na fórmula trinitária: unidade na diferença, comunhão sem fusão.

A linguagem do mito e da poesia

Para falar de Deus, do amor e da vida, a linguagem puramente racional revela-se insuficiente. A linguagem poética e simbólica é mais adequada, porque não pretende esgotar o real, mas abri-lo. Uma sociedade excessivamente colada ao texto literal tende a petrificar a realidade, confundindo símbolo com facto e mito com mentira.

Também a ciência recorre a símbolos: quando fala de “Lucy” como mãe da humanidade, não faz história factual, mas usa uma imagem para facilitar a compreensão. Do mesmo modo, os dogmas não são fórmulas matemáticas, mas janelas para o mistério.

Maria como apelo ético e espiritual

A Imaculada Conceição recorda-nos o princípio da criação, quando tudo era original e bom, mas também a responsabilidade de continuar essa criação. O nascimento do novo Adão aponta para um Jesus que deve renascer em cada ser humano, tornando cada pessoa presépio vivo, laboratório divino onde o céu continua a tocar a terra.

Num tempo marcado por dualismos, culpa instrumentalizada e manipulação do pecado ao serviço do poder, Maria permanece como figura de esperança, liberdade interior e fidelidade ao essencial. A consciência, como recordava Newman, é o primeiro vigário de Cristo.

Conclusão

Reduzir a realidade ao que é mensurável equivale a reduzir o universo ao sistema solar. O sentido da vida não se esgota no caminho, porque o caminhante e a caminhada transcendem o próprio caminho. A fé e a esperança permanecem como raios de sol que nos levantam a cabeça para vermos mais além.

Na Imaculada Conceição, céu e terra unem-se uma vez mais para afirmar que a última palavra não é da matéria nem da morte, mas da Vida como dom.

Parabéns a todas as mães.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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