Não nasceu do decreto
nem do voto contado ao entardecer.
Não se ergueu em parlamentos
nem aprendeu a linguagem das maiorias.
A fé, essa da consciência,
nasceu onde o poder não entra:
no silêncio em que o homem
se sabe mais do que função.
As fés seculares constroem-se em andaimes:
supraestruturas de sentido calculado,
máquinas de consenso,
pedagogias da obediência feliz.
Prometem liberdade administrada,
direitos garantidos por sistemas
que pedem, em troca,
a rendição íntima do olhar.
Mas a consciência não se assina.
Não obedece à geometria dos regimes
nem ao tempo curto das ideologias.
Atravessa impérios,
sobrevive a constituições,
assiste, paciente,
à queda sucessiva das formas
que juraram ser eternas.
Por isso a fé pessoal incomoda.
Porque não depende do Estado,
nem da técnica,
nem do aplauso moral do tempo.
Ela subsiste como brasa
sob a cinza das épocas,
esperando apenas
que o tempo mude de voz.
Até na Igreja, feita de Pedra e história,
há trono e há limite.
Há autoridade,
mas há um santuário que nem o Papa habita:
a consciência, esse espaço inviolável
onde Deus fala sem intermediários
e o homem responde sem delegar.
É aí que o cristianismo se torna constitucional
antes de o ser político:
quando afirma que nenhuma ordem,
nem mesmo sagrada,
pode substituir o juízo último
do coração iluminado.
Por isso os regimes desconfiam.
Os de ferro, como o chinês,
e os de veludo, como a nossa democracia.
Ambos toleram a fé
desde que domesticada,
desde que aceite ser cultura
e não critério,
rito e não resistência.
Mas a luz interior,
como a de Luzia,
prefere perder os olhos
a perder a visão.
E lembra ao mundo, século após século,
que a verdadeira soberania
não se governa: testemunha-se.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo