Eis-me: duas almas num só sulco.
A primeira, em ventre húmido, caverna sem eco.
A segunda, desgarrada no grito,
pelo choque da luz que me gravou o berro.
Trago o segundo currículo escrito a ferro:
busco a origem da chama que me fere.
Na minha procura, segue-me o gemido
da mãe primeira, da que é tudo e começo,
rumo ao pai que a luz me há-de dar.
Não me tragam a verdade em bandeja.
Ela não se entrega: nasce.
E todo o nascimento é demora,
é rasgão e fidelidade à dor.
Conhecer é isto: gestação no escuro.
A ideia revira no silêncio,
inquieta, áspera, incompleta,
um fósforo à espera de calor.
O não entender ainda não é falha:
é contração. Anúncio.
O fósforo acende na mente,
mas precisa do calor do ventre
para não se apagar.
Pensar é raspar. Educar é segurar
a mão no escuro, confiar
que a chama amadurece no seu tempo.
Não se força o parto. A mãe sabe:
ela sustém, espera, respira, colabora.
Educar é ser parteira da consciência.
Não criar a vida do outro,
mas ajudá-la a vir à luz,
sem temer o primeiro clarão.
A luz que nasce fere antes de iluminar.
Mas é essa dor breve que salva
da longa noite da caverna.
Aprender, pois, é acto de coragem:
raspar o próprio fósforo, suportar
as dores de parto interiores.
Aceitar que o pensamento verdadeiro
nasce pequeno, frágil, trémulo,
mas destinado a crescer,
até aquecer o coração
e incendiar a vida.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo