Sentado à beira do abismo líquido,
vejo-me dissolver no ventre das ondas
corpo que se entrega ao ciclo perpétuo,
espuma ascendente em génesis de nuvens.
Cada crista que rompe é umbral do mundo,
alimentando o céu num esforço titânico
de evadir o círculo que nos aprisiona,
respondendo ao chamamento do além-mar.
No rugido ancestral das águas primordiais
a eternidade desvela seu íntimo sentimento:
aplauso e lamento tecidos num mesmo canto,
dança dialética entre ser e não-ser.
Entrelaçam-se na voragem existencial
estes dois fios do mesmo cordão umbilical
aspiração ao eterno, âncora no efémero,
paradoxo que nos mantém suspensos no tempo.
Sofro em carne as intempéries do devir,
no embate rítmico das vagas sobre vagas
cada impacto uma afirmação da vida,
cada recuo uma preparação do assalto seguinte.
Meu corpo que és mar onde tudo se move,
arquivo vivo onde a memória inscreve,
escreves e reescreves a história cósmica,
translação perpétua do alfa ao ómega.
És alegoria, corpo meu, dos ciclos vitais:
maré que avança e reflui no compasso do ser,
enquanto a alma, esta testemunha vigilante
toma consciência de si mesma em ti.
Corpo-templo, sacrário do gene criativo,
onde a Palavra, logos primordial, atravessa
a espuma efervescente do pensamento,
buscando a consciência de si no mundo.
Em ti procura o espírito optimizar-se,
caminhando rumo ao estado supremo
onde tudo é consciência translúcida,
relação amorosa tecida no divino.
Em mim, na sociedade, na meteorologia celeste,
no movimento perene das marés,
celebra-se a liturgia infinita de Deus
um Deus pessoal que se revela na relação.
Trindade que se expressa no encontro,
personalização que no fundamento do divino
tudo move em dança de amor eterno,
conduzindo cada ser à sua plenitude pessoal.
Na espuma que ascende ao céu,
no sal que arde na pele,
no horizonte que nunca alcançamos,
celebra-se o mistério:
Somos o mar que se conhece a si mesmo,
a onda que busca transcender seu próprio círculo,
o corpo onde o cosmos se faz consciência,
o templo onde Deus se personaliza em amor.
Da contemplação à beira-mar nasce a sabedoria:
somos simultaneamente a água, a onda, a espuma e o céu,
eternidade expressa no tempo,
consciência a emergir do abismo (1).
António da Cunha Duarte Justo
© Pegadas do Tempo
(1) A Gênese do Poema
Do Chamamento inicial, um sussurro no éter,
Surge a Voz da Eternidade, ecoando no ser.
Ela flui por este Corpo-Mar, veículo de dor e ventura,
E mergulha no Arquivo do Tempo, à procura.
Lá, decifra a Alegoria dos Ciclos, a dança sem fim,
No Templo da Palavra, onde o verbo se faz carne e em mim.
A sua respiração é uma Meteorologia do Sagrado clarão e nevoeiro,
Até desaguar no silêncio, na Síntese Ómega do mundo inteiro