A missão da Igreja é transumana transcendente e não pode ser reduzida a mais uma voz no debate partidário
Por António da Cunha Duarte Justo
A presença pública de responsáveis eclesiásticos tem vindo a adquirir um tom crescentemente politizado nos últimos anos. Entre a pandemia, a guerra na Ucrânia e a ascensão de partidos da direita na Europa, setores da Igreja parecem inclinados a alinhar-se com posições partidárias, muitas vezes repetindo o discurso dominante.
Esse caminho, porém, é um erro que prejudica a própria Igreja e os cristãos que, na sua liberdade e soberania, participam na vida política. Na comunidade cristã, “não há estrangeiros”, mas também não há partidos.
Em alguns países, como a Alemanha, chegaram mesmo a existir instituições ligadas à Igreja que evitavam contratar pessoas com filiação partidária “desconforme” ou desalinhada com o poder instituído. Hoje, como ontem, assiste-se à tentativa de afastar certos grupos, ontem comunistas, hoje membros de partidos populistas da função pública. Este tipo de práticas, para além de dúbias do ponto de vista democrático, torna a Igreja cúmplice de exclusões que não lhe competem. Na prática, este tipo de comportamento político-punitivo fragiliza o próprio sistema democrático e a dignidade humana.
A missão transcendente da Igreja
A Igreja não é um poder temporal, deve ser o sal da terra. A sua missão é espiritual, moral e universal. Não lhe cabe indicar “o partido certo”, nem avaliar programas de governo. O espaço específico da sua ação é outro: formar consciências à luz do Evangelho.
Os leigos, esses sim, são chamados a participar ativamente na vida política.
A eles cabe filiar-se, debater, negociar e propor soluções.
Aos clérigos cabe iluminar com princípios, não “dar o voto” nem deixar-se utilizar por interesses partidários.
Quando sacerdotes ou bispos criticam publicamente partidos específicos, mesmo quando movidos por boa intenção, arriscam-se a:
– partidarizar a fé,
– alienar fiéis que pensam de forma diferente,
– transformar a Igreja num ator político previsível e parcial.
E isso contradiz a própria natureza da Igreja, que é casa para todos.
Princípios são uma coisa; programas partidários são outra
A Doutrina Social da Igreja não propõe soluções técnicas, mas sim princípios: dignidade da pessoa humana, bem comum, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade.
Estes princípios não se traduzem automaticamente numa única proposta política. Muito menos num único partido.
Dois cristãos igualmente sérios podem, a partir dos mesmos princípios, chegar a opções partidárias diferentes sem perder fidelidade à fé.
E isso é saudável.
O que não é saudável é a Igreja tratar como erro doutrinal aquilo que, na realidade, é apenas uma opção política legítima.
Confundir o Evangelho ou princípios universais com aplicações políticas contingentes (com um programa partidário) é reduzi-lo e instrumentalizá-lo, pois, torna-se fonte de conflitos.
O risco do reducionismo moral
Quando a Igreja entra demasiado no debate político, tende a reduzir a moral a dois ou três temas, esquecendo o conjunto mais amplo da sua mensagem: justiça económica, paz, cuidados dos mais frágeis, ecologia integral, liberdade religiosa, dignidade da pessoa em todas as etapas da vida.
O Evangelho exige uma visão integral.
Não existe um partido que encarne todos os valores cristãos e não compete à Igreja escolher um.
Profetismo, sim. Partidarização, não.
A Igreja tem, sem dúvida, o dever de denunciar tudo o que fere gravemente a lei de Deus: aborto, eutanásia, xenofobia, violência, corrupção, injustiças estruturais.
Mas deve fazê-lo partindo dos princípios, não dos partidos.
Há uma enorme diferença entre afirmar “O partido X está errado”
e afirmar “Toda política que viola a dignidade humana está errada”.
Na primeira formulação, a Igreja torna-se um ator político.
Na segunda, cumpre a sua missão e deixa aos fiéis a tarefa de discernir.
O papel central dos leigos
A transformação política da sociedade não é missão dos padres.
É missão dos leigos. A própria Igreja ensina que o sujeito principal da ação política são os leigos.
A eles pertence o debate político; à Igreja pertence a formação das consciências.
Quando esta ordem se inverte, ambos perdem:
a Igreja perde a sua universalidade; os fiéis perdem a sua autonomia. Os fiéis, bem formados, julgarão por si mesmos os programas partidários e evitarão entrar na polémica divisionista própria de estratégias partidárias.
Uma Igreja livre para todos
A Igreja deve ser uma consciência crítica da sociedade, e não um lobby disfarçado. Deve ser incómoda para todos os partidos quando necessário e dependente de nenhum.
Se cair na tentação de se transformar num “superpartido”, perderá a força profética e a capacidade de unir todos os que procuram Deus.
A política passa. Os partidos mudam e o Evangelho permanece.
E é a partir dele e não das lógicas partidárias que a Igreja deve continuar a iluminar a vida pública.
Pegadas do Tempo