O ÚLTIMO JARDIM

No alto de uma colina esquecida, existia uma quinta com muitas árvores, destacando-se nela ciprestes antigos. Chamavam-lhe “O Último Jardim”. Lá vivia Aurélio, um velho filósofo que passara a vida a estudar o espírito das máquinas e o silêncio do Homem.

Durante décadas, o mundo lá em baixo transformara-se numa rede cintilante de luzes, ecrãs e promessas. As pessoas comunicavam mais do que nunca, mas já não se olhavam. Trabalhavam, produziam, votavam, seguiam tendências e, no entanto, ninguém parecia saber porquê nem para onde ia a sociedade.
A cada ciclo eleitoral, a multidão subia à praça, esperando um novo messias político que prometia “liberdade”, “progresso”, “crescimento” e “inovação”. Mas o que recebiam era sempre o mesmo: um novo modelo da mesma prisão.

Aurélio observava a sociedade como quem contempla um doente que se recusa a aceitar o diagnóstico. Na quietude do monte, ele procurava um fio de esperança no tear desfeito do mundo. Olhando para o vasto latifúndio cultural à sua frente, um pensamento ecoou dentro de si, claro e frio como o ar da noite:
“A humanidade não padece de falta de liberdade, mas da falta de limite. E quando o limite desaparece, a fronteira entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, o essencial e o supérfluo, o eu e o outro desaparece e a alma evapora-se.

Certa noite, uma jovem de nome Íris, sob um manto de estrelas, subiu a colina. Seus pés, pesados da poeira das cidades-mercado em ruínas, arrastavam o desaponto de uma busca. Outrora, aquelas terras foram um mosaico vibrante, um caleidoscópio de vozes e cantos. Agora, sentia o mundo achatado, reduzido a um deserto uniforme, um latifúndio estéril onde só germinavam as sementes da economia e do poder, ceifadas por um punhado de mãos. Em   Aurélio ela buscava uma resposta que o mundo lá em baixo já não sabia dar.
“Mestre, disseram-me que compreendes as máquinas. Elas agora decidem quase tudo! Decidem o amor, o trabalho e até o que devemos pensar. E a vida do dia-a-adia tornou-se em rotina aborrecida! Vive-se num mundo desarraigado, nutrido pelas miragens enganosas do liberalismo e de outras ideologias sem solo, que prometem um céu e entregam um deserto. Haverá ainda esperança?”

Aurélio sorriu com ternura.
“A inteligência artificial é o espelho mais nítido que agora tivemos. Mas o que ela reflete é a nossa própria sombra. Não temas o espelho, teme o vazio de quem não ousa ver-se nele.”

Íris um pouco confusa insistiu:
“Então a saída está em rejeitar a tecnologia? Em voltar ao passado?”

O sábio sorriu com brandura.
“Não, filha. A solução não está em voltar atrás, mas em relembrar. A tecnologia deve ser a continuação da nossa alma, não um deus faminto que a devora. O perigo nunca esteve no poder da tecnologia ou das máquinas, mas na nossa incapacidade de ver nelas a nossa própria humanidade refletida ao criá-las. Doutro modo torna-se num ídolo que devora os seus criadores.”

Aurélio e Íris desceram juntos ao jardim. Lá, entre árvores e pedras cobertas de musgo, crescia um pequeno altar com três palavras gravadas em pedra:
Limite. Relação. Responsabilidade.

Aurélio explicou:
“O limite é o contorno do ser; sem ele, tudo se dissolve.
A relação é o tecido invisível que faz do indivíduo um nós.
A responsabilidade é o amor tornado ação.”

Íris esforçou-se por suster as lágrimas.
“E quem ensinará isso às cidades?”

O filósofo sentiu em si as lágrimas de Íris correr-lhe pelo pensamento e olhando o horizonte eletrificado pensou para si: a vasta teia luminosa que conecta o mundo, o homem, na sua solidão essencial, nutre-se das próprias vibrações que o mantêm cativo, até que, insensivelmente, se transforma no sustento do labirinto que o envolve! Depois respirou fundo e respondeu:
“As cidades não se transformam por decretos, mas por contágio. Quando um coração desperta, tremem mil algoritmos. Quando duas pessoas se olham e se reconhecem, hesita o sistema inteiro. É assim que começa a cura.”

No dia seguinte, Íris desceu a colina. Levava consigo o sofrimento do mundo e no peito as três palavras que a levaram à autoconsciência.
Por onde passava, desligava um ecrã, escrevia um poema num muro, ensinava uma criança a plantar uma semente.
E em cada gesto simples, nascia o rumor de um novo tempo, de um tempo em que a sociedade deixava de ser máquina e voltava a ser jardim.

Epílogo

Aurélio morreu em paz, certo de que o seu nome seria esquecido.
Mas o Último Jardim floresceu como uma lenda: falava-se de um velho e de uma jovem que semearam uma revolução sem bandeiras; esta verdadeira revolução é feita de consciência, compaixão e silêncio.

E, pela primeira vez em séculos, o mundo não perguntava “para onde vai a sociedade”,
mas para onde vai a alma do homem

e essa, enfim, voltava a caminhar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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