A guerra na Ucrânia expôs as contradições do Ocidente e revelou que o mundo já não se organiza em torno de uma única hegemonia. Entre velhas potências e novos polos, o futuro exigirá reconciliação, complementaridade e coragem política.
A narrativa que se desmorona
Quando o conflito geopolítico na Ucrânia acabar, a classe política e o jornalismo europeus enfrentarão um sério embaraço. Terão de reconhecer que a narrativa que ajudaram a construir foi parcial, simplista e, em muitos casos, manipuladora e enganosa. Portugal, infelizmente, não escapa a esse enredo de formatação da opinião pública que foi conduzida a uma visão distorcida dos factos.
Durante anos, o discurso político-mediático formatou o pensamento coletivo, condicionando a perceção popular dos factos. Mas a realidade factual, uma Europa em declínio, subordinada a uma NATO e a uma burocracia de Bruxelas cada vez mais distantes dos valores humanistas, acabará por impor-se.
Portugal e o peso da submissão diplomática
O Palácio das Necessidades, símbolo da diplomacia portuguesa, tornou-se quase numa “casa de necessidades”, administrando interesses externos em vez de defender a identidade nacional. Portugal, com a sua experiência multicultural e o seu histórico de convivência entre povos, poderia exercer um papel exemplar na diplomacia internacional, defendendo, para isso, uma política externa baseada na irmandade e complementaridade dos povos, e não na submissão a blocos.
Washington e Bruxelas perdem credibilidade à medida que o mundo se reorganiza em torno de novos polos, como os BRICS, que representam uma alternativa concreta à hegemonia anglo-americana. A Europa, porém, insiste num modelo de dependência militar e ideológica que a prende ao passado.
A guerra como instrumento geopolítico
O que se apresenta como uma “guerra entre a Ucrânia e a Rússia” é, na verdade, um conflito instrumentalizado, um tabuleiro geopolítico em que a Ucrânia é usada como “cavalo de Troia” de um mundo velho, por potências que pretendem prolongar a sua influência global. O povo ucraniano, composto por diversas etnias que antes viviam em paz, tornou-se vítima de uma guerra que serve mais os mercados e as indústrias militares do que a justiça ou a democracia.
Países como Estónia, Letónia e Lituânia enfrentam idêntico destino: são peças menores num jogo de hegemonias. Historicamente, o Ocidente tem sido o mais agressivo nas suas políticas expansionistas, fomentando desestabilizações internas para justificar a sua intervenção. Trata-se de um expansionismo refinado e hipócrita, que utiliza as fragilidades dos pequenos para ampliar o poder dos grandes.
O vazio moral da Europa tecnocrática
Enquanto líderes como Viktor Orbán, em Budapeste, afirmam uma visão alternativa de soberania europeia, a União Europeia mostra-se incapaz de responder à mudança histórica em curso. Enredada em contradições, aposta na indústria militar e compromete o seu próprio futuro económico.
A prosperidade europeia floresceu quando predominavam governos social-democratas e conservadores moderados que eram os herdeiros do humanismo cristão e do capitalismo social que nasceram do Iluminismo e da doutrina social da Igreja Católica. Essa herança ética e filosófica foi sendo substituída por um tecnocratismo sem alma, afastado da experiência humana real.
A nova ordem multipolar
A nova geopolítica já não se organiza em torno de um único poder. O futuro do mundo será moldado por hegemonias partilhadas, em que Estados Unidos e China se reconhecerão mutuamente como parceiros e rivais necessários. A paz não virá da imposição de blocos, mas da interligação das economias e da complementaridade entre regiões.
Nesse cenário, a Europa e a Rússia só terão futuro se compreenderem que a reconciliação entre elas é condição de sobrevivência. Ou se reconciliam e colaboram, ou se tornam irrelevantes na nova ordem bipartida que se desenha. O mundo está a tornar-se bipolar, mas ainda há espaço para uma terceira via, a via da lucidez, da dignidade e da paz.
Há momentos em que se torna imprescindível interrogar a legitimidade das decisões proferidas em contextos de profunda incerteza, sob o prisma cultural e político-social, de modo a enriquecer o debate e integrar visões até então marginalizadas.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
Meu Caro:
É indesmentível que foi a Russia do psicopata Putin que invadiu a Ucrânia, a pretexto de uma ” desnazificacao”.
Pode conjecturar o que quiser, que aqui houve mais uma violação do Direito Internacional, que continua e com ataques diários a alvos civis.
A Ucrânia tem todo o direito de se defender.
Cumprimentos,
Prezado amigo,
agradeço muito o seu comentário. Ele sintetiza de forma clara e poderosa a posição que é, com toda a justiça, majoritária: a de condenação moral e jurídica de uma invasão que viola a soberania e a paz na Europa.
1. Ponto de Partida: Não Há Equívoco sobre a Agressão
Em primeiro lugar, é importante afirmar que o seu ponto de partida é correto e indesmentível. A Rússia de Putin é a parte agressora que violou o direito internacional ao invadir um país soberano. Os pretextos de “desnazificação” são, de facto, uma distorção grosseira da realidade e uma ferramenta de propaganda de guerra. Os ataques a civis são crimes de guerra que devem ser condenados sem reservas e investigados. A Ucrânia tem, sem sombra de dúvida, o direito legítimo de se defender…
2. O Objetivo do Meu Artigo: Compreender as Causas, Não Justificar a Agressão
Onde o meu artigo tenta acrescentar valor é num plano diferente: o da análise das causas profundas que criaram o terreno fértil para esta tragédia. Em direito, estabelecer a culpa (neste caso, da Rússia) é uma coisa. Em política e história, compreender como se chegou a este ponto catastrófico é outra, e é essencial para se encontrar uma solução duradoura.
A minha tese não é que a NATO ou o Ocidente “forçaram” a Rússia a invadir. Isso seria abdicar da agência e responsabilidade de Putin. A minha tese é que as políticas ocidentais, particularmente a expansão contínua da NATO para Leste, foram percebidas pela elite de segurança russa (não apenas por Putin) como uma ameaça existencial e um cerco estratégico, alimentando um ciclo de desconfiança e hostilidade que remonta ao fim da Guerra Fria. Isto sem me referir aqui à necessidade de a Europa ter de ter um plano próprio a nível geopolítico, o que implicaria a não subjugação cega à geopolítica dos USA.
3. Exemplos da “Não Inocência” Ocidental (a complexidade de que falo):
A Quebra de Promessas? Embora não formalizadas, há múltiplos testemunhos de figuras como o então secretário-geral da NATO, Helmut Kohl, e até do embaixador dos EUA em Moscovo na época, de que foram feitas ao líder soviético Gorbachev garantias verbais de que a NATO não se expandiria “um centímetro para leste” em troca da reunificação alemã. A expansão subsequente para 14 países do antigo Pacto de Varsóvia foi vista em Moscovo como uma traição estratégica.
A Geopolítica do Convite à Ucrânia: A declaração da Cimeira de Bucareste de 2008, onde a NATO afirmou que a Ucrânia e a Geórgia “se tornarão membros” no futuro, foi um ponto de viragem. Para o establishment de segurança russo, foi acionado um “limite vermelho” absoluto. Foi uma declaração que alimentou as tensões sem oferecer à Ucrânia os mecanismos de defesa concretos da aliança, deixando-a num limbo perigoso.
O Golpe de 2014 e a Anulação de Acordos: A queda do presidente Yanukovych em 2014, apoiada pelo Ocidente, foi vista por Moscou como um golpe de estado ilegítimo. O acordo mediado pela UE, que Yanukovych assinou com a oposição, foi ignorado após a sua fuga. Para a Rússia, isto confirmou que o Ocidente fomenta “revoluções coloridas” para instalar governos antirrussos, anulando a esfera de influência que Moscou considera vital.
Conclusão: Duas Verdades Podem Coexistir
Em suma, a resposta ao seu comentário pode ser resumida assim: sim, a Rússia é a agressora criminosa, E sim, o Ocidente (com políticas por vezes míopes ou triunfalistas) contribuiu decisivamente para criar o contexto de insegurança e paranoia em que um agressor como Putin pôde florescer e justificar a sua agressão.
Reduzir a narrativa à versão da NATO é ver o filme a partir do segundo ato. O meu artigo tenta recuar ao primeiro ato, para mostrar que os personagens não surgiram do nada. Compreender isto não é desculpar o crime, é essencial para que, no futuro, se evite cometer os mesmos erros que, somados, levam a catástrofes.
O importante verificar que compreender as causas não é o mesmo que justificar o ato.
A Ucrânia paga o preço final desta teia de erros de cálculo do Ocidente e da vontade de um homem de reconstruir um império à força.
Os meus melhores cumprimentos