O Eros e a Busca da Integridade: Entre o Mito e o Sagrado

Em Diálogo com Platão, Jung e a Trindade no Contexto do Sexo como Ritual sagrado

A humanidade é um rio que corre entre duas margens: a espiritualidade, que busca resposta para o sentido da existência, e o desejo sexual, que obedece ao impulso primordial da perpetuação. Mas será que essas duas correntes são verdadeiramente distintas? Ou serão antes expressões de uma mesma sede — a ânsia de perfeição, o retorno a um estado perdido de harmonia primordial (ou a necessidade de envolvimento no processo “mítico” de encarnação e ressurreição)?

Na origem de tudo, está o Eros — não como mero instinto, mas como energia cósmico-divina que move o homem e a mulher em direção à sua metade ausente. Platão, no Banquete, narra o mito do Andrógino, essa criatura esférica, duplamente sexuada, que outrora caminhava em plenitude até que a inveja dos deuses a dividiu em duas partes, condenando-nos à eterna busca um do outro (e ou do Outro). Desde então, o amor terreal não é senão a sombra desse paraíso perdido, um eco da unidade original. Cada abraço, cada entrega carnal, é uma tentativa desesperada de reencontrar a esfera perfeita, de fundir-se outra vez no Todo.

Mas o Eros é mais do que a simples junção de corpos. Ele é um ritual sagrado, uma liturgia em que homem e mulher, ao se unirem, repetem simbolicamente o gesto divino da Criação. Nele, o masculino — voltado para o exterior, para a ação, para o domínio — dissolve-se no feminino, que é receptividade, interioridade, mistério. E a mulher, por sua vez, encontra no homem o seu ânimus, a força que a projeta para além de si mesma. Ambos buscam, no outro, aquilo que lhes falta, não para aniquilar-se, mas para transcender-se, não extinguindo-se na dualidade, mas complementando-se de forma exuberante num processo de relação trinitária ou do eu-tu-nós.

No entanto, a sociedade, moldada por séculos de patriarcado, distorceu esse diálogo intersubjetivo criativo. (Não compreendeu o mistério da relação expresso na fórmula trinitária. Em vez de afirmar a relação vital complementar dividiu-a em relações funcionais de necessidade e de interesse – manietando homem e mulher a seres objectivados). Reduziu a mulher a objeto, enfeite do desejo masculino, e aprisionou o homem numa máscara de domínio, negando-lhe a própria feminilidade interior. O ato sexual, em vez de celebração, tornou-se funcionalidade; em vez de rito tornou-se folclore. A repressão do sagrado no Eros é sintoma de uma cultura que exalta a conquista, a violência, a cisão — esquece que a verdadeira vocação humana é a complementaridade.

Que aconteceria se, libertas dos tabus, as mulheres reivindicassem plenamente a sua dupla natureza — tanto a força do ânimus como a profundidade do feminino? E se os homens, por sua vez, não temessem acolher a ânima, essa interioridade tantas vezes negada? Talvez então vislumbrássemos uma cultura não da competição, mas uma cultura da paz, da comparticipação; não da guerra, mas do encontro.

(Quando chegará o momento em que a política reconhecerá que masculinidade e feminilidade são princípios vitais e complementares em cada ser humano – e deixará de impor a todos a mesma matriz arcaica (esmagando todos no mesmo molde masculino), reduzindo até as mulheres a meras peças funcionais de uma máquina social desumanizada, ao serviço de uma norma masculina exacerbada? Até quando se continuará deste modo a destruir a alma da sociedade – e a reduzir o feminino a engrenagem de um sistema sem rosto? (1)

O sexo é, na sua essência, um limiar. Realiza-se no adro do templo, na fronteira entre o humano e o divino. Nele, homem e mulher não são apenas amantes, mas celebrantes de um mistério maior: a reconciliação das metades, o reencontro com o círculo perfeito e a unidade do três no um, como bem manifesta a dinâmica relacional do mistério da Trindade. E assim, no êxtase que os une, eles tocam, ainda que por um instante, o Paraíso.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

(1) Encontramo-nos num processo de homogeneização moderna que leva à perda do dualismo vital!

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

11 comentários em “O Eros e a Busca da Integridade: Entre o Mito e o Sagrado”

  1. Rosa , sim, o essencial não é reduzível nem limitável a uma época ou tempo. A alma humana e oinconsciente social transcende o tempo, mas nós, muitas vezes, em vez de a escutarmos deixamo-nos levar pela aragem do tempo ou da circunstância. Obrigado pelo teu comentário!

  2. Quem assim vivenciou, essa tão sublime relação, sabe da verdade de sua análise e questionamento.
    Ultimamente, até parece não mais fazer sentido verdades tão essenciais.
    julgo mesmo, que por delas fazermos tábua rasa, nos percamos no caminho da procura!
    Acentua-se cada vez mais esta luta, de um contra o outro.
    De uns contra os outros.
    E andamos assim perdidos, em relações de poliamismor, relações abertas, a fugir de nós, quando tudo está em nós…

  3. Manuela Silva, obrigado pela resposta que ecoa como um sino no vale da alma – faz-me intuir que a Manuela emergiu no sentido mais profundo do texto onde a verdadeira união nasce de um abraço mais que de corpos, de paradoxos. Se bem analisamos, Masculino e feminino não são géneros, mas linguagens do mesmo mistério: um fogo que aquece (o princípio que delimita, que penetra, que protege) e um rio que acolhe (o princípio que dissolve, que nutre, que abre) no reflexo da fórmula trinitária divina (mistério da santíssima trindade: a verdadeira relação do três no um e um no três).
    A Manuela tem toda a razão ao ver nessa cisão a raiz da nossa sede colectiva. O ‘poliamor’ moderno, muitas vezes, não passa de fuga à vulnerabilidade que a verdadeira intimidade exige – uma tentativa desesperada de possuir o infinito sem nunca se deixar possuir por ele. E as ‘relações abertas’, quando não brotam de plenitude, mas de vazio, tornam-se espelhos partidos a reflectir a mesma solidão. (Sobre isto estou a escrever um conto!)
    Mas há esperança: cada vez que dois seres se encontram além dos papéis, no território cru da presença (onde ela é receptividade activa, e ele é força que escuta), o Éden ressurge e Adão e Eva deixarão de se atribuírem culpas um ao outro. A sexualidade sagrada não é técnica, mas arquitectónica – move placas inteiras da psique e do Espírito quando o gozo é entrega, não conquista; quando o corpo é altar, não instrumento.
    Fico-lhe grato por me lembrar que a cura está no regresso: àquele ponto silencioso onde já não há ‘eu contra ti’, mas apenas o nosso sopro dividido pelo mesmo fôlego.
    Naturalmente tudo isto permanece um ideal que a vida diária precisa como orientação para que o real possa ser mais verdadeiro e apontar para o mais além. Somos mais do que parecemos (dia e noite) com o Sol a despertar-nos.

  4. António Cunha Duarte Justo, humanamente falando o três nessa relação é uma multidão, mas nesse mistério, sim o três é perfeito.
    “a verdadeira relação do três no um e um no três”.
    É aí sim, que reside o encontro.
    Não tenho a arte de tão bem dizer, mas agradeço o privilégio de viver, sentir e reconhecer sua reflexão!
    Muito obrigada, por com tanta beleza, rigor e profundidade, abordar um tema tão importante na construção do ser humano.
    Ah, vou querer ler esse conto, que agora escreve. Vou gostar certamente!

  5. Ó Senhor António Cunha Duarte! Não tenho palavas para lhe agradecer Tocou-me na alma e no coração . Deus pelas suas palavras , falou ….. maravilhosas tão belas, e tão ricas ! Como diz : O ato sexual, é um ato de amor, uma celebração na relação humana , divina é tão bom haver esse entender para quem tem esse conhecimento, o conheci, quando não gostei do que á minha frente vi. em tudo Deus está porque quando Deus não está tudo é fel e amargoso . Ele nunca se mostra ausente mas, sempre presente ! ! Um bem haja

  6. meu querido amigo António Justo, estive a ler com pormenor alguns dos últimos textos. Muito interessantes, principalmente na sua reivindicação de uma sã espiritualidade – que é paralela ao que, na minha incursão estudiosa pela vida e condição dos índios norte-americanos, neles encontrei!

    E quer saber a que conclusão eu cheguei, com muito respeito pela sua postura? No fundo, o meu caríssimo António Justo é, muito limpidamente, um ateu que se desconhece, ou melhor: que cultivando um espiritualismo são e real, não pode na sua alma mais profunda acreditar nas patacoadas propostas pelos oligarcas “religiosos”, que de facto não são partidários de uma ligação ao sagrado e sim praticantes de burlas tão desconchavadas como as do antigo antístene Chico Bergoglio, que sem rebuços afirmava a um jornal italiano “Eis, são estas as cinco Nossas Senhoras de que sou devoto”. Cinco!!! Um belo exemplo de politeísmo. pois como se percebe o Chico era sim um ateu mas do lado negro, não do luminoso que será, na prática, o do caríssimo amigo Justo.

    Como podia este confrade a quem carteio, honesto intrinsecamente, crer a sério na burla fantasista de uma pobre senhora nazarena que teve filhos sem deixar de ser virgem, ou na patacoada de um Deus jeovah criador dos milhares de galáxias & etc e depois vir ao planeta Terra para estabelecer um pacto (testamento) com uma parte duma tribo de pastores, a quem prometeu mundos e fundos sem nunca ter concedido nada que eles não conquistassem esterminando rivais, madianitas, amalequitas e muitos outros que a História guardou?

    O caro Justo tem um senso do sagrado inteiramente de respeitar e partilhar, pois esse é que é o verdadeiro e real signo do Homem – mortal mas digno, credor de amor e consideração – que em geral os “religiosos” não têm, pois estão é presos a monomanias, quando não mesmo a psicoses que lhe são incutidas pela religião mal assimilada e falsa como “ouro dos doidos”.

    Um bom domingo, meu bom confrade e amigo, o abraço firme do seu de sempre,

    n.

  7. Meu caro confrade N.

    Li a tua mensagem com a atenção que merece um pensamento tão denso como o teu, tão cravejado de lampejos literários que tanto podem iluminar quanto queimar as asas de quem voa perto do sol. E, no entanto, é nesse voo — entre o que chamamos sagrado e o que nomeamos como pó do humano — que nos encontramos, tu e eu, cada qual com o seu mapa de navegação desenhado a carvão sobre a pele da existência.

    Dizes que sou um ateu que se desconhece, e sorrio, porque talvez tenhas razão — se por “ateu” entendes aquele que nega os deuses de barro que os homens vendem em feiras de ilusões. Mas eu creio — ou descreio — de outro modo: Deus é povo, escrevi uma vez e numa poesia escrevi Não creio em Deus Deus crê em mim” e isso vem-me de uma certa vivência. É essa multidão de sombras e luzes que caminha na margem do rio, com os pés no alcatrão do tempo e os olhos fitos no reflexo do que não pode nomear. O sagrado que tu viste nos índios norte-americanos e eu busco nas dobras do quotidiano é o mesmo: um espelho partido onde cada fragmento revela (e esconde) o rosto do mistério. Certamente tiveste um encontro místico com a realidade tal como eu em tempos de estudante de filosofia tive um encontro vivencial com Cristo. Talvez isso crie muito de comum em nós e seja o fundo da nossa liberdade!

    Quanto às “patacoadas” das religiões — ah, meu caro, quem as defenderá? Não defendo a sua parte sombria mas reconheço que a sombra se deve ao sol. Todas as instituições humanas não são mais que resposta às necessidades humanas e testemunham da sua identidade. As instituições são gaiolas de ferro forjadas em torno do canto livre dos pássaros. Jesus não era cristão, mas para mim é o protótipo não só do homem mas de toda a realidade porque toda ela se resume nele; foi o filho do Homem que falou de um Reino onde os últimos seriam primeiros, e os primeiros, desmascarados. O que fizeram da sua mensagem é obra dos homens — esses eternos fabricantes de ídolos, seja com ouro de altar seja com as moedas de Judas. Mas há uma diferença, meu caro: entre o “ouro dos doidos” e o ouro verdadeiro, só o fogo decide. E o fogo, como sabes, é o mesmo que arde no teu espírito crítico e na minha fé desarrumada.

    Quanto ao Deus do Antigo Testamento, aos pactos tribais e às virgens impossíveis: sim, são narrativas que por vezes escandalizam a razão. Mas eis o paradoxo — o mesmo que faz do teu ateísmo luminoso e do meu espiritualismo aparentemente desconfiado dois lados da mesma moeda: ambos recusamos a idolatria do óbvio. Se eu insisto em ver no Nazareno um protótipo do humano divinizado, e tu vês apenas o mito, concordamos num ponto: o sagrado (ou a sua ausência) habita no chão que pisamos, não nos céus das doutrinas nem das opiniões.

    Por fim, dizes que o signo do homem é ser mortal e digno. Aqui, nossas mãos se encontram no escuro. Porque no fim das contas, o que nos salva não é a crença ou a descrença, mas a capacidade de amar o rosto concreto do outro, seja ele um santo, um herege ou um confrade que escreve cartas demasiado lúcidas para este mundo adormecido.

    Um abraço firme, tão firme quanto a tua honestidade e a minha gratidão por ela.

  8. Perfeito. No entanto, os sons emitidos vão em sentido contrário ao que o amigo fala, infelizmente. Ainda ontem, observando os diversos comentários sobre um artigo do jornal Público, sobre a crescente onda de ataques virtuais a mulheres, com o intuito de perseguição e ódio às mesmas; as respostas ao mesmo artigo, iam no sentido de culpabilizar, não o infrator, mas as próprias mulheres. Isso revela, para mim, que o Homem, ainda é bem assustado e medroso do seu próprio sexo e sexualidade, lembrando o tal homem que se esconde de Deus nas moitas e cobre-se de folhas. Para finalizar, vejo ainda que tal, não é só perpetuado pelos homens, como é perpetuado pelas próprias mulheres, mas digo que não é generalizado.

  9. Nelson Luis Carvalho Fernandes, a sua reflexão aponta com justeza para um problema profundo e estrutural que se manifesta tanto nos comportamentos individuais como nas reações coletivas — e o exemplo que referes sobre os comentários ao artigo do jornal Público, infelizmente, é ilustrativo disso mesmo e da onda em que nos encontramos.
    Não surpreende, contudo, a posição ou a linha editorial do Público ou de outros órgãos de comunicação social, quando nos situamos ainda numa sociedade fortemente enraizada numa matriz de governo e mentalidades afirmadoras da masculinidade e instrumentalizadoras da feminilidade. Este contexto histórico e cultural criou, e continua a alimentar, padrões político-sociais profundamente machistas, que não se limitam à ação consciente dos chamados “machos”, mas que decorrem, sobretudo, de uma estrutura masculinista que organiza a forma como o poder, o discurso e os papéis sociais estão distribuídos e pretendem continuar a ser distribuídos.
    É fundamental compreender que essa estrutura não é exclusiva dos homens nem diretamente proporcional ao número de homens em cargos de poder. Trata-se de uma lógica, de uma arquitetura social que favorece a masculinidade como padrão normativo e dominante, ao mesmo tempo que reduz e instrumentaliza o feminino, não raras vezes com a cumplicidade involuntária — ou até activa — de mulheres socializadas dentro dessa mesma lógica e formatadas de maneira a assumirem elas mesmas os papeis masculinos que elas mesmas interiorizam. Isto explica porque, como refere, há mulheres que perpetuam estas mesmas dinâmicas. Não é uma questão de biologia, mas sim de interiorização de normas e valores estruturais, muitas vezes de forma inconsciente.
    A reação de culpabilização das mulheres, em vez de responsabilização dos infratores, que menciona, encaixa precisamente neste quadro. Trata-se de um mecanismo de defesa socialmente aprendido que visa proteger o status quo, atribuindo a responsabilidade não a quem ataca, mas a quem ousa desafiar as regras não escritas da ordem vigente — neste caso, as mulheres que se expõem, que se afirmam, que existem publicamente especialmente aquelas que se sentem completas com o princípio da masculinidade e da feminilidade em equilíbrio nelas.
    É aqui que importa sermos claros: o problema não reside apenas nos “machos” enquanto indivíduos, mas sim no edifício sociopolítico que, de forma velada ou explícita, legitima e reproduz a supremacia de um ideal de masculinidade — muitas vezes tóxico — em detrimento da igualdade real. Enquanto essa estrutura não for desmontada, enquanto não repensarmos profundamente as nossas instituições,as nossas mentes, os nossos discursos e até os nossos quotidianos, estes fenómenos vão continuar a emergir, sejam eles ataques virtuais, violência simbólica ou desigualdades quotidianas.
    É por isso que importa continuar a expor, discutir e desconstruir estas realidades. Só assim poderemos aspirar a uma sociedade em que género não seja sinónimo de hierarquia ou de destino.
    Alegra-me pelo facto de o Nelson ver para além do que a imprensa e os políticos nos querem convencer!

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