CAVADOR DE SI MESMO

O homem passa a vida a cavar a sua campa,
cova forrada de conceitos, teias de aranha
e ali deposita, em ânsia cega e vã,
a própria alma, antes que o corpo desça à terra.

Ah, quantas vezes, perdido em carreiros da mente,
se esquece da luz, do vento, da folha que dança,
e trilha veredas estreitas, labirinto de espinhos,
sem ver que a vida, em surdina, lhe beija a face!

Cego ao sol que desfia ouro nos trigais,
surdo ao rio que canta histórias às margens,
enterra-se em palavras vazias, números frios,
enquanto o mundo, em flor, lhe escapa das mãos.

Oh, cavador, ergue os olhos do chão!
Não te contentes com a sombra que fabricas.
Antes que a morte te cubra com seu manto,
rasga a prisão das ideias mortas,
e deixa que a alma respire
o ar puro do sonho que não tem muros.

Não vês que Deus, quando sonhou o mundo,
não o fez por dever ou cálculo,
mas por puro arrebatamento
e em teu peito, esse mesmo sonho ainda pulsa,
ainda te chama, ainda te espera
para além de todos os mapas da razão.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

9 comentários em “CAVADOR DE SI MESMO”

  1. Vítor Lopes, é realmente assustador perceber como as nossas próprias escolhas nos podem levar a lugares sombrios. Mas também é nessa consciência que a gente encontra a chance de mudar o caminho. Às vezes, cavamos buracos sem perceber, mas o importante é que é sempre tempo de se poder escolher sair deles e que ninguém fique preso no próprio buraco para sempre. O que acaba de dizer faz-me lembrar Fernando Pessoa que creio dizer: “É realmente doloroso quando a gente vê que foi o próprio arquiteto da própria armadilha. Mas a boa notícia é que dá pra reconstruir.”

  2. António Cunha Duarte Justo, eu vi o buraco do burro a ser enterrado e quanto mais enterravam o burro mais ele subia até ficar vivo.

  3. Vítor Lopes , o burro fez como a rã caída ao vaso de leite e que não desistiu de crer na vida, e esse desejo prolongou-lhe a energia de maneira a ter podido transformar o leite em manteiga e deste modo ter ainda suporte para saltar para fora do vaso que a tornava cativa. O que valeu ao burro não ter a sorte do burro foi a sua esperança ou sonho.

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