(Feminilidade e Masculinidade sob as Circunstâncias
entre o Suspiro e o Canto )
Tu, noite minha — manto de silêncio e estrelas,
o céu se curva sobre meu corpo em ruína.
Sou o deserto que clama por rios,
a sede infinita, na gramática do universo.
Meu coração é um vaso de argila rachada:
o infinito a escorrer em gotas de desejo.
Busco-te na sombra que me habita (1),
na carne que arde e não se ateia.
Somos véus do mesmo mistério rasgado,
tu, o rio que afoga, eu, o fogo que invade.
Mas vivemos como sóis apartados,
órbitas cegas, danças do acaso.
Ah, se fôssemos mapa e bússola,
o masculino e o feminino entrelaçados
como tinta e pergaminho, brasa e lenha!
Mas somos dois cântaros vazios,
ecoando a mesma canção quebrada.
O amor não é só véu, não é só prece:
é o dedo que traça o sulco das costas,
o sopro que desata o nó do tempo.
É o corpo que se faz altar,
a encarnação em cada movimento.
(Quem nos ensinou a temer a chama?
Quem secou os rios, quem apagou a fogueira,
deixando-nos sombras de um nome antigo?)
Em ti, mulher, não busco só o ventre,
sonho a união que Maria anunciou,
espírito e matéria fundidos,
vinho e água no cálix da aurora.
Somos o cosmos em miniatura,
dois pavios na mesma labareda,
dois rios no mesmo leito.
Deixa-me ser a lança que fende o abismo
e nele se perde,
para que enfim sejamos inteiros.
No fim, restará apenas o Silêncio,
aquele em que Deus diz o nome
que tu e eu não ousámos chamar.
Até lá, seguimos escrevendo
com lábios de sal e mãos trémulas
o poema que só juntos poderemos assinar.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) Somos a sombra de Deus.
Em nós, as circunstâncias são o cadinho onde alma, corpo e espírito, feminilidade e masculinidade se podem fundir.