1º
Ponto de partida:
Escrevo mandatado pelo meu compromisso com a Fé católica — e por isso com o mundo, a quem sou enviado a “Anunciar”. Acredito, na Verdade, por isso falo, procurando a Verdade.
Impõe-se-me a convicção de que não posso deixar de dizer. Com fé. Portanto, também com autenticidade e clareza. Bem sei que “nem a minha pregação nem a minha vida estão à altura da missão que desempenho” (S. Gregório Magno).
2º
Não fujo:
existem vítimas de toda esta abominável história de abuso de menores. Há que dar-lhes o melhor e o devido apoio. Quanto me é possível, tenho participado concretamente, nesse dever da comunidade eclesial. Obviamente, a Igreja deverá colocar todos os seus recursos, humanos e espirituais, na luta contra esta miséria. Para um cristão não poderá haver qualquer hesitação nesta matéria.
Já não assim para o extremismo de esquerda e o esteticismo vanguardista. Os exemplos abundam.
À distância de um click descortinar políticos, jornalistas, escritores, artistas, promotores da pedofilia.
3º
A Igreja não pode cessar de se purificar. Entrou numa demorada Quaresma da qual não poderá sair quando este tema deixar a pressão mediática. Purificar é uma expressão de sabor evangélico.
4º
Mas “purificar” não significa, de modo algum, conformar-se aos ditados da comunicação social e à pressão da opinião publicada. Repudio o “travestimento” face ao mundo, que se julga dono da boa doutrina para a Igreja! Com efeito, ajustar contas com a Doutrina e a Tradição não é “purificar”.
Todavia, eis que não poucos espreitam a ocasião de pôr tudo em questão: a verdade objectiva; os sacramentos celebrados no vínculo do discipulado; o celibato associado ao sacerdócio e reservado aos homens — como amigos do Esposo, que O seguem e Lhe entregam toda a sua humanidade. Portanto, também a inteireza do seu corpo —; o casamento entre homem e mulher; a eutanásia — aí estão os temas perante os quais a pulsão “purista” pretende conformar tudo, face aos ditados do mundo.
5º
Lobos ideologicamente treinados, colocados nos melhores lugares do anfiteatro
eclesial, têm espalhado a confusão. Refiro-me, àqueles que são Poder e não abrem a boca sem projectar no Sacerdócio a sua ambição de Poder. Vejam-se os bons exemplos, de péssimos exemplos, vindos da Alemanha: os abusos sexuais percebidos como a prova de que é necessário “adaptar o ‘movimento religioso’ iniciado por Cristo” (Lamentabili, 59). Doutores plásticos face às novas exigências da sociologia e da psicologia. Pugnadores da doutrina e da pastoral decididas a votos. São os mesmos, aliás, que tentam capturar a intuição veneranda do Sínodo reduzindo-o a astúcias partidárias.
6º
Baudrillard distinguiu conceitos relevantes neste contexto: “Dissimular é fingir não ter o que ainda se tem. Simular é fingir ter o que não se tem.” Dentro da Igreja, há quem dissimule não ter poder nenhum. Excepto — repito — o de publicar nos grandes jornais e possuir jornais online, e ser aqui e ali convidado para a Corte. Ou melhor, para a TV. São quem domina a agenda eclesial. Simulam, também, docilidade ao Evangelho quando o que se ouve é apenas mundo e tudo o que o mundo projecta sobre a Igreja. Reconhecem-se nesses que têm que começar os seus discursos com actos de fé “eu que, aliás, sou católico…”. Lançam-se no típico discurso dos escribas: encontrar a salvação, não na ignominia da Cruz, mas na adesão cidadã à opinião dos Príncipes.
7º
“Pensar globalmente, agir localmente”! Se olharmos com alguma amplitude para a história recente do papado verificaremos que teve de se confrontar com poderosas operações de oposição em mesmo de perseguição. De facto, e como grandes orquestrações da opinião pública, é de referir a tentativa de colar Pio XII aos nazis. Diz-se que teria que ver com a intenção soviética de condicionar o Concílio, impedindo-o de ser agressivo com a ideologia ali originada. Depois foi Paulo VI, óptimo Papa até 1968, terrível desde que publicou a Humanae Vitae. De seguida João Paulo II, fortemente atacado por causa da fixação da opinião pública na questão do preservativo. Acresce Bento XVI, sempre colado à imagem que trazia cosida à pele, de “panzerkardinal” e inquisidor. Hoje, habilmente, os “purificadores” apresentam etereamente todo o seu amor dualístico pelo Papa Francisco (esses mesmos que sempre desdenharam a devoção do povo católico a Pedro), não tanto para que ele apareça na sua autoridade apostólica, mas, isso sim, para acusarem a cúria e os episcopados de mais não serem do que aparelho reacionário.
8º
Todavia, a grande novidade não desponta aqui, na critica a este ou àquele Papa, por causa disto ou daquilo. A estratégia de comunicação passou por internacionalizar a percepção pública da Igreja como “a” produtora da pedofilia. Por estes dias, alguém sem relevo público escrevia num jornal de referência um artigo com o título “O fim da Igreja Católica como referência moral”. Concordo! Está em acto, desde o final dos anos 90, esta operação “global” que se apresenta como anti -pedofilia e que visa cercar a Igreja. E apenas a Igreja. E é esse o propósito dos Príncipes. Simulado e dissimulado, “óbvio ululante”. Portanto, impedir que a Igreja tenha uma palavra limpa a dizer sobre o quer que seja já que, ela mesmo, é apresentada como a mais que desautorizada sede da sujeira…
9º
Em novembro de 2021 a Hierarquia da Igreja em Portugal propôs a criação de uma Comissão dita independente que realizasse um relatório sobre todos estes horrores. A Comissão é, indubitavelmente independente. Da Hierarquia. Mas isso não é, de modo algum, garantia de imparcialidade. Verdade, também aqui, que “quem semeia ventos colhe tempestades
”: aceitar a bondade inicial deste Relatório, a realizar por quem o fez, com as metodologias de que se serviram, prenunciava o que veio a suceder. Quando na passada 6ª feira, dia3 de Março, se realizou a conferência de imprensa em Fátima, os senhores Bispos tentaram dizer que teria que haver respeito por “direitos, liberdades e garanti as”. Mas as televisões e os jornais — e os Príncipes — queriam mais. Queriam guilhotina. Pasme-se que, também o senhor Presidente da República mostrou uma valentia que lhe desconhecia até ao presente momento do seu mandato, tantas os seus tangentes circunlóquios.
10º
Pena, grande pena, pois, que a mesma Comissão, não se tenha apresentado a si mesma com franqueza e rigor. Por exemplo, qual o percurso exacto dos seus membros do ponto de vista de outras manifestações da perversão pedofila na vidadas nossas instituições? Que tipo de dificuldades outros processos de índole idêntica criaram aos seus executores? Que pertenças e aprioris ideológicos os seus membros têm em relação à Igreja? Seria importante que Pedro Strech testemunhasse, em primeira pessoa, sobre as dificuldades que enfrentou no processo Casa Pia. Gostaria de saber o que o levou a abandonar tal processo. Do mesmo modo, não seria a hora da figura senatorial de Daniel Sampaio se referir às vítimas da Casa Pia com a “compaixão” que exige dos Bispos? Qual a sua intervenção cívica a favor da compaixão com as vítimas quando os tribunais deram por encerrada essa questão? Será que está agora a projectar sentimentos de culpa face ao seu silêncio nessa circunstância?
Note-se, todavia, que limito-me apenas a levantar algumas questões!…
11º
Por estes dias, o Cardeal Patriarca tem sido zurzido, fora e dentro da Igreja. A culpa dele? Ter assinalado que “um envelope sigiloso contendo os nomes dos membros da Igreja acusados de terem abusado sexualmente de crianças” (Público, 7.3.2023) não é uma sentença do Tribunal que deva transitar em julgado! O Público acompanhou a notícia com uma fotografia do D. Manuel Clemente a guiar dentro de um carro com a janelas fechadas e a sorrir. Tudo mensagens sobre fechamento, fuga, insensibilidade, passadas pelo Poder que se abate sobre um pastor bom a quem procuram isolar.
Acresce que, com mais ou menos dialética episcopal, D. Manual Clemente tem razão na precisão da argumentação jurídica: “Ainda está em uso a antiga terminologia da suspensão a divinis para indicar a proibição de exercer o ministério imposta como medida cautelar a um clérigo. É bom evitar tal designação, bem como a de suspensão ad cautelam, porque na legislação em vigor a suspensão é uma pena e, nesta fase, ainda não pode ser imposta A forma correta para designar tal disposição será, por exemplo, proibição do exercício público do ministério” (in Vademecum, Vati cano, 2ª ed, 2022).
12º
Como já tive oportunidade de dizer noutra circunstância, a isenção e equilíbrio do Relatório tem que ser questionadas! Parece-me que a reverência que lhe é dedicada trás consigo um misto de servilismo e de convencionalismo.
Não é um documento homogéneo. Se há relatos tremendos na sua veracidade, há outras páginas inaceitáveis do ponto de vista da racionalidade e, portanto, também da justiça. De facto, não acolho como imparciais as suas evidências. Por exemplo, na pg. 200 apresenta-se uma Tabela de quantifi cação de outros casos de pedofilia que seriam do conhecimento das vítimas que fizeram os seus depoimentos à Comissão:
Assim, “delineamos um exercício de quantificação. Nos testemunhos em que as respostas são precisas e especificas, contabilizámos o número exato de pessoas mencionadas. Nos restantes, usá mos uma série de equivalências que pondera as respostas de forma muito conservadora [Por baixo, digo eu]”. Portanto, é a parti r desta Tabela que se chega à estimativa de 4815 vítimas.
Eis alguns exemplos que me parecem muito significativos, retirados dessa mesma Tabela: Se a vítima que fez o seu depoimento dá uma “resposta exacta” (tal como a designa o Relatório) assume-se esse número sem mais: “todas as minhas primas”significam, seguramente, “7” raparigas. Acresce, que onde a vítima diz “não sabe; não sei ” os cientistas do Relatório sabem e contabilizam “1”.
E o mergulho no arbitrário expressa-se mais exageradamente ainda, quando quem apresenta o seu testemunho à Comissão dá respostas do tipo “todo o colégio” (a que corresponde o número de 200 pessoas segundo o Relatório) ou “todos os rapazes da Freguesia” (a que correspondem 20 pessoas) … Ciência? Justiça? Aqui fica a pergunta.
13º
Acresce que o Relatório não faz distinções conceptuais importantes: quais os abusos de menores que pertencem à categoria pedofilia (DSM IV, “actividade sexual com uma criança ou crianças na pré-puberdade — geralmente com 13 anos ou menos) e os outros— que são igualmente “abusos de menores” — mas cuja “tipologia” tende a não poder ser nomeada? Tabus e interditos, auto-censura no vocabulário dos autores do Relatório …
14º
Gostaria, ainda, de perguntar aos relatores: o que é que mudou tanto na sociedade portuguesa para que a descrição tenha imperado no processo Casa Pia (conhece-se algum Relatório? Está acessível uma única história relatada na primeira pessoa pelas vítimas?) e agora, desta vez, tudo fosse exposto, com todos os detalhes obscenos, em horário nobre das tv’s?
Num país institucionalmente idóneo, o que foi recolhido neste relatório não deveria ter dado origem a averiguações subsequentes que salvaguardassem “direitos, liberdades, garantias”? Quem não se dá conta do julgamento sumário que se montou na praça pública?
15º
Já perto do fim, penso que é relevante perguntarmo-nos se tudo isto significa que chegámos a uma nova fase da nossa vida em sociedade, onde o compromisso contra a pedofilia se apresenta firme?
Diria que não me parece! Façamos, por exemplo, essa mesma pergunta ao Observador e verificaremos que a fixação no tema da pedofilia é exclusivamente anti -católico. Nesse mesmo jornal, em Janeiro passado, os 100 anos de Eugénio de Andrade foram festejados sem uma alusão que fosse à sua militância pró-pedofilia! Pelo meu lado, penso que até surgir de novo, nesse jornal, um número de telefone disponível para receber outras denuncias de pedofilia, que não só as eclesiásticas, o seu propósito parcial e o seu descompromisso anti -pedofilia estão ostensivamente à vista.
16º
Permito-me antecipar cenários: não tardará muito, parece-me que mais cedo do que tarde, será a Igreja Católica a única instituição, neste lado do mundo chamado Ocidente, a dizer que a pedofilia é uma perversão!
Quem acompanhe o que se diz, por exemplo, em França, Itália ou Holanda e Bélgica sabe-o. Em Espanha, em Setembro passado, a ministra Irene Montero disse que não havia mal na vida sexual acti va das crianças, com adultos desde que consentida (htt ps://poligrafo.sapo.pt/fact-check/ministra-da-igualdade-de-espanha-disse-que-criancas-podem-ter-relacoes-sexuais-com-adultos-se-houver-consenti mento).
17º
Parece-me que reduzir as questões dos abusos de menores à Igreja católica tem permitido aos senadores e aos poderes do regime sublimar as cumplicidades e omissões no Processo Casa Pia. Ali, à guarda do Estado, guardas do Estado atingiram “as mais desgraçadas [crianças] em termos de história pessoal”.
18º
Ora, o que é certo é que o “bode” tem mudado de nome, de raça, e o seu holocausto tem sido prati cado através de rituais diversos. Todavia, certo é também que não há nenhuma configuração de sociedade que não faça uso abundante dos seus próprios bodes expiatórios de eleição. Carregar os miseráveis 3% de clérigos sinistros com os 97% de crimes de pedofilia que ocorrem na sociedade serve outro propósito que não o de esclarecer sobre o que se está a passar.
19º
Tudo o que acabo de escrever apenas indicia uma atitude conservadora? Olhar para o que foi dito nessa perspectiva serve apenas para encurralar-me ideologicamente. Fechado e rígido, insensível, são, de imediato, ideias afins a este tipo de classificação. Permitem antecipar a conclusão sem ouvir o argumento. Seguro, porém, é que não tenho nada a ver com os “jovens turcos” do Observador, importante club do conservadorismo liberal. Dessa relação promíscua resultou um jornalismo trans-
tornado e grande conservador — do liberalismo. Na húbris da indiscriminação da incriminação.
Por entre os militantes deste tipo de liberalismo (haverá outros) descortina-se a postura de quem luta para que o Estado esteja fora dos negócios … e a Igreja longe da vida.
Curioso: também aqui os extremos se tocam. Desta vez, no adro da igreja, onde as causas Woke e os radicais do liberalismo se coligaram no comum desprezo pela densidade do real. Embriagados de parcialidade recusam-se a pensar a complexidade. 1 comentário:
20º
Acontece que sou católico. Por conseguinte, a perspectiva que me interessa diz respeito ao “todo”: da vida, dos factos sociais, da amplitude do perguntar, da organicidade do real, da equidade das soluções, das relações reais de compromisso entre as pessoas, da busca de um modo de estar no visível que não silencie o invisível. Portanto, contra as soluções abstractas e ideológicas do sistema, das teses mais amadas do que as pessoas, do insignificância dada à questão do sentido da existência, do desprezo pelas instituições, da eminência do jornalismo acimados factos, desprezando os factos, inchando ou esquartejando os mesmos.
21º
Todavia, mutati s mutandis, não ando longe do pensamento de Adriano VI quando em 1523, perante a crise protestante, assim escreveu: “Nós reconhecemos livremente que Deus permiti u esta perseguição da Igreja por causa dos pecados dos homens, particularmente dos sacerdotes e prelados. A mão de Deus, de facto, não se retirou e ela pode salvar-nos. Mas o pecado separa-nos d’Ele e impede-O de salvar-nos. Toda a Sagrada Escritura ensina-nos que os erros do povo têm a sua fonte nos erros do clero…
Sabemos que, desde há muitos anos, também na Santa Sé foram cometidas muitas coisas abomináveis: tráfico de coisas sagradas e transgressões dos mandamentos em tal medida que tudo se tornou um escândalo. Não nos podemos espantar que a doença tenha descido da cabeça ao corpo, dos papas aos prelados. Todos nós, prelados e eclesiásticos, desviámo-nos do caminho da justiça. (…) Cada um de nós deve honrar a Deus e humilhar-se perante Ele. Cada um de nós deve examinar-se e ver em que pecado caiu. E deve examinar-se muito mais severamente de quanto não o será por Deus no dia da Sua ira. Consideramo-nos tanto mais comprometi dos a fazê-lo porquanto o mundo inteiro tem sede de reforma”.
….
Que a justiça dos homens faça o seu caminho, é o desejo recto de qualquer um de nós. Certamente que alguns dos mais dissimulados e poderosos pedófilos escaparão à justiça dos homens. Assim, muitos nomes grandes da cultura e das artes europeias e nacionais contemporâneos.
[…]
Sabemos, no entanto, que ninguém escapará o severo juízo de Deus. Para o fogo eterno aqueles que escandalizaram os pequeninos. Portanto, também o clero que impenitentemente assim o fez e assim se manteve simulando exercer as responsabilidades santas, horrivelmente pervertidas.
2
Dediquei-me a ler o Relatório publicado na 2ª feira passada. Já li perto de metade. Não serei redundante a repetir o que é consensual, obviamente sobre a tragédia que se abateu sobre quem foi abusado.
Mas o Relatório não é apenas consensual. É também discutível. Muito discutível e em não poucas páginas, para mim, inaceitável. Ou será que sou obrigado a considerar como absoluta e inquestionável a sua metodologia, os seus propósitos e resultados? “Pensar é dizer não” [Alain, seminário de Derrida], ensinava um filosofo francês aos seus alunos. Nem sempre, mas muitas vezes, permito-me acrescentar eu. Sobretudo quando nos colocamos perante as afirmações do Poder sem rosto, como o designava Pasolini. Portanto, e por vezes, negar não é fazer a afirmação contrária. Ou seja, não me passa pela cabeça dizer que não existe responsabilidades brutais de clero pedófilo.
É antes recusar o modo como se configuram novas crenças que se pretendem límpidas e pudicas e transpiram principalmente uma vingança cultural, generalizações e massacre de uma instituição secularmente na mira dos que pretendem o Progresso sem o Desenvolvimento. O progresso entendido assanhadamente como ruptura — como revolução— face às convicções tradicionais sem por isso o Desenvolvimento da pessoa na sua vida pessoal e comunitária. “, o aborto, a eutanásia e fantasiosas ‘famílias” que não desenvolvem a vida de ninguém. Antes a implodem.
3
Mas retomo o Relatório. A certa altura é referido que a “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa” foi entrevistar os nossos Bispos. Levavam cinco perguntas preparadas. A primeira questionava o seguinte: “— Como se tornou um homem de fé́?
Percorria-se depois um roteiro por várias outras: pode-nos falar sobre a sua infância, a família e a comunidade onde cresceu?
Como surgiu a vocação e em que lugares adquiriu formação para se tornar sacerdote ou membro de uma ordem religiosa?”(Copy paste, pg 122. Note-se o pouco rigorosa na ortografia).
Ora, pergunto eu, a entrevista era sobre “Abuso de menores” ou servia para classificação e julgamento sociológico e psicológica do episcopado? Repete-se em todo o relatório que se acolheram as pessoas entrevistadas. Neste caso, não se está a fazer um juízo de valor sobre as pessoas entrevistadas?
Com efeito, qual o relevo desta pergunta senão a de julgar os prelados da Igreja?
Exagero? Veja-se o comentário que se segue sobre as entrevistas aos superiores das ordens religiosas, femininas e masculinas:
“Se algumas irmãs tinham vestido o hábito de freira nas entrevistas, os superiores gerais (com exceção de um) apresentaram-se descontraidamente vestidos com roupa comum. Com todos, sem exceção, o ambiente criado durante a entrevista foi excelente. Ao contrário dos bispos, apesar de tudo mais formais e racionais no trato e no uso da linguagem, os superiores e as superioras gerais deixaram mais frequentemente soltar as suas emoções e dúvidas, o seu humor e, sobretudo, a sua perspetiva crítica face ao conservadorismo da hierarquia da Igreja portuguesa, na sua linguagem, na atitude de certos bispos. Apenas com eles/elas ouvimos frases como «sinto-me uma pessoa realizada», «sou uma mulher feliz»”.
Bom, se era tão relevante conhecer o “ambiente” em que cresceu a hierarquia, porque não utilizar o mesmo método na auto-apresentação da Comissão.
[…]
Que razões levaram a Comissão a passar por cima de tudo o que são direitos, liberdades e garantias, dando um passo no sentido em que a vida pública seja não só é atingida pelo populismo, que pretende que os políticos sejam substituídos pelos juízes, como agora, também, que os juízes sejam destituídos por psiquiatras.
Sim, porque não tenhamos dúvidas: o Relatório é uma sentença.
Daquelas em relação às quais já não se pode apresentar recurso.
4
Significativa, no Relatório em apreço, a tentativa de branquear a conexão, todavia estatisticamente irrefutável, entre abusos de menores e perfis homossexuais. As afirmações ideológicas e declarações de intenção, são redundantes: Assim na pg 75: “Sabe-se que a maior parte dos abusadores de crianças são, na sua forma socialmente assumida e ainda na sua estruturação emocional, heterossexuais, muitos deles tendo relações com adultos de sexo oposto ou sendo pais de crianças. Por outro lado, a quase totalidade dos homossexuais vive a sua vida emocional e afetiva com pessoas de faixas etárias superiores a 18 anos de idade e orientação idêntica, sem que sequer se constitua esta mesma questão de abuso. Embora esta questão esteja hoje absolutamente clarificada do ponto de vista científico, ela é ainda objeto de vulgar confusão entre vários estratos das sociedades, incluindo em posições que persistem como um dogma dentro da própria Igreja que, por exemplo, nega casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou a confissão e a comunhão a quem não tenha assumido orientação heterossexual.” Ora, de novo, ‘pensar é dizer não’.
Mas não me acusem, para já, de ser troglodita.
Faço, aliás, um parenteses para homenagear pessoas homossexuais que conheço e de quem sou amigo e que nada têm de pedófilas. É obvio que homossexualidade não é sinonimo de pedofilia.
Mas é obvio, também, que há no Relatório uma preponderância de pessoas com práticas homossexuais pedófi las. E aí o relatório não é isento.
Com efeito, não obstante o texto que acabo de citar e que tenta dissociar em absoluto estas duas práticas, por exemplo, nas pg 250 ou 271 ou 371, os episódios hediondos aí relatados são, paradoxalmente, referidos a pessoas identificadas como homossexuais.
Mas, por outro lado, já os 4 casos contados nas páginas 223 a 227 descrevem com detalhe praticas homossexuais sem nomear a homossexualidade desses predadores.
Então, todo o meu propósito resume-se a condenar as pessoas homossexuais?
Não e não.
Sem pejo, porém, relembro a tese de Pasolini, aliás um homossexual, segundo a qual a tragédia contemporânea tem que ver com um Poder [com P grande] sem rosto. Esse, Poder, digo eu, que tem conseguido colar a Igreja, o seu clero e as suas práticas rituais e instituições a uma cambada de tarados e de lugares sinistros.
Ora, o que o Poder pretende com isto é que da identificação da Igreja com tais horrores decorra a insignificância e impotência e o desprezo por qualquer coisa que a mesma Igreja tenha a dizer sobre o homem e organização da sua vida em sociedade. Aborto, Eutanásia, fantasmas sobre o que é ser homem ou mulher, família tradicional ou novas configurações da mesma nascidas da perda do centro, tudo isso deixa de poder dialogar com o pensamento católico a quem não deixa de se colar a pequeníssima parte como expressiva de um todo sistémico.
E, eis, que aí estão, de novo, à solta, velhos ressentimentos anticlericais a pedir que se “esmague a infame” Igreja.
5
E a propósito de números e % permito-me, também, dizer que não considero expressivos e suficientes os números alcançados. 34 depoimentos presenciais, 512inquéritos online validados, a extrapolação para 4800 vítimas de abusos não é ciência, não é direito, não é justiça. É manipulação. Brutal manipulação.
Note-se aliás que o Relatório diz na pg. 138“
Uma das questões com que qualquer equipa de pesquisa se confronta quando recolhe dados junto de uma população através de técnicas como entrevistas ou inquéritos por questionário é a questão da veracidade das respostas obtidas. Apesar de todos os cuidados postos na redação do guião, da exclusão de testemunhos manifestamente falsos, pode-se sempre discutir genericamente se quem responde está ou não a contar a verdade, ou se aquilo que afirma corresponde ao que exatamente viveu, sem construção do que é descrito como a ocorrência de «falsas memórias». Este é um tema recorrentemente discutido na literatura científica, nomeadamente na área da psicologia social, facto que, por si mesmo, constitui uma forma estruturada de corretamente enquadrar este tipo de dúvidas.
Em vez de «verdadeiras» ou «falsas», devemos ter em conta que as respostas obtidas são sempre elaboradas no quadro da relação que se estabelece entre quem pergunta e quem responde. São mediadas pela representação mental que a pessoa constrói da situação a que está a responder e é essa mesma narrativa interna que constitui o próprio resultado da inquirição
.”
6
Contenho-me no meu exame ao relatório para chegar a uma pergunta necessária e dolorosa:
Porque é que a hierarquia se lançou a este desafio de pedir para se fazer este relatório.
Seria melhor escondermo-nos?
Não e não. Não sou desses.
Não me revejo em comportamentos corporativos! Não sou de nenhuma “congregação”.
O que me parece é que, por exemplo, como em Espanha, não se deveria ter aceite fazer um inquérito desta natureza exclusivamente à Igreja Católica. Sim, os estudos de referência indicam que depois de tudo vasculhado na Alemanha e nos EUA a responsabilidade dos clérigos andará pelos 3%.
Sim, é brutal, mas não exclusivo nem predominante. E foi esse, segundo me parece, o efeito social criado com este Relatório: como se a Igreja fosse a fábrica e a sede destes horrores
O que se passou então para hierarquia avançar para este Relatório. Não possuo especial informação sobre as decisões da CEP. Obviamente a pressão era muita, mas permito-me lamentar 3 factos:
·
Cedência às elites clericalizadas: clero e leigos que pensam “mundo”. Refiro-me aos que dentro da Igreja estão mundanizados, mentalmente colonizados pelo Poder. Refiro-me aos que desejam que, no que diz respeito à doutrina, a Igreja diga o que o mundo dita à Igreja. Refiro-me, de um modo geral, ainda que com honrosas excepções, àqueles católicos de serviço que têm acesso a publicar na grande imprensa. Àqueles que de algum modo aspiram a uma versão do cristianismo descrito ironicamente pelo Cardeal Biffi a propósito do anti -Cristo: no futuro ele “será vegetariano, pacifista, bonzinho e aberto ao diálogo”.
·
Como segunda nota, e como agora se diz, recusa de um modelo sinodal de Igreja. Ou seja, confundir opinião publicada com o sentido da fé dos fiéis. Só gente muito mundanizada desejava este Relatório. Os fiéis-fieis, quer dizer os que vão à Missa fielmente, os que tem filhos e família, os que visitam familiares e vizinhos doentes, os que rezam, sabiam e sabem que este foi um exercício que lançou o pânico nos simples. Eles queriam a verdade, sim. Não queriam, porém, serem colocados de novo na arena dos novos Coliseus. Penso nos que nada sabem de sociologia e estatística. Mas que conhecem a Cruz, a dor, o perdão, o serviço desinteressado.
·
Por último, penso na confusão pretendida entre os abusos como abuso de poder clerical e os ardis da perversidade. Considerar a autoridade como má é abrir caminho à ditadura das minorias agitadoras, elas sim, empenhada sem reescrever um evangelho que seja aceitável por quem tem vergonha de pregar Cristo e Cristo crucificado.
7
A terminar, sobre mim mesmo, queria dizer que não vivo detrás de nenhuma muralha a bombardear a cidade.
Por desígnio da Providência, e circunstâncias da minha vocação ligada antes de mais a uma comunidade terapêutica e ao facto de ser capelão de uma prisão, penso que já ajudei — mais ou menos— dezenas senão centenas de pessoas abusadas sexualmente. Sim, sou testemunhada privilegiada de percursos de redenção, de ressurreição. Acresce que também já ajudei uma meia dúzia de pessoas pedófilas; também por elas Cristo morreu na Cruz. Não me escondo nas sacristias, não ando na rua disfarçando o meu sacerdócio. Não aceito ser nomeado reacionário por quem vive a temer a opinião dos grandes da opinião. Sou, porém, dos que considera que “a missão da Igreja não é ser credível, mas acreditar!”
8
Termino recorrendo, uma vez mais, ao querido e grande Cardeal G. Biffi :
“Charles Journet veio ao nosso Seminário e falou-nos da Igreja. Tocou-me a sua capacidade didática, de facto extraordinária. Mas, sobretudo, fascinou-me o seu pensamento, rigoroso e vibrante, todo ele tomado de amor pela verdade de Deus e pela sua ‘Esposa’ (como ele lhe chamou desde o primeiro minuto). Particularmente era admirável o equilíbrio, a inteligência e o espírito de fé que marcavam o seu modo de afrontar o tema espinhoso da questão da existência na Igreja de santidade e pecado. Todas as contradições são eliminadas — observava ele — se se compreende que os membros da Igreja pecam não enquanto estão ligados a ela, mas quando a traem. De modo que a Igreja, que não existe jamais sem pecadores, é sempre, em si mesma, sem pecado. Essa, de facto, assume em si tudo o que é santo, também nos pecadores, e deixa fora de si tudo o que é reprovável, também nos justos. Os seus confins passam, por isso, pelos nossos corações.”
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Pe. Joaquim Pedro Lobo Cardoso