Dizia-se que na Cidade da Névoa os oradores não tinham pés. Caminhavam sobre o ar, não como santos, mas como marionetas sustentadas por cordas invisíveis. Chamavam-se a si mesmos Corifeus do Amanhã e, em todas as ocasiões, repetiam discursos tão bem polidos que já não tinham rosto, apenas brilho.
Nas praças, os cidadãos viam folhas verdes caindo dos palácios elevados. Eram belas, frescas, e diziam ser fruto de grandes plantações. Mas ninguém encontrava as árvores. “A colheita está garantida!”, proclamavam os corifeus. O povo aplaudia, embora não se lembrasse de ter semeado nada.
No alto, os oradores vestiam mantos de valores e fatos engravatados que ondulavam como bandeiras. Não traziam fardas, o seu uniforme era o dogma, programa. E, em vez de luz, brandiam verdades afiadas como lanças, que lançavam ao vento para que o vento as trouxesse de volta, intactas.
Diziam agir pelo futuro, mas bebiam apenas do passado, um passado que, nas suas bocas, se disfarçava de novidade científica. Semeavam joio nos campos invisíveis e, quando a fome vinha, alimentavam-se de pães que ninguém sabia de onde vinham, mas que tinham o sabor amargo da consciência perdida.
Um velho da cidade, que todos apelidavam de Guardador de Memórias, aproximou-se certo dia e perguntou:
– E se deixassem cair a lança e pegassem na enxada?
Riram. O riso deles tinha o som seco de galhos mortos.
Com o tempo, o povo começou a reparar que a democracia, que antes era altar e espelho, se tornara um escudo que cegava quem o erguia. E, nas noites mais silenciosas, alguns juravam ouvir o canto do cuco, o pássaro que deposita o ovo no ninho alheio e segue viagem.
Foi então que, sem aviso, a névoa começou a rarear. O chão voltou a ser visível. E muitos descobriram que os corifeus, afinal, tinham pés, mas estavam sujos de lama.
Nessa manhã, não houve folhas a cair. Nem pão a repartir. Apenas a terra nua, esperando quem tivesse coragem de plantar.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo