BENTO XVI – UM LUZEIRO DA TEOLOGIA E DA EUROPA NO HORIZONTE

Joseph Ratzinger ao Lado de S. Tomás de Aquino

O Cardeal Joseph Ratzinger, cuja vocação era a teologia, foi o 265º Papa da Igreja Católica e o primeiro papa alemão depois de 480 anos; demitiu-se em fevereiro de 2013, por razões de saúde sendo o primeiro em 700 anos a fazê-lo (um acto revolucionário de desmitologização), o que corresponde a uma certa orientação secular do cargo.

Joseph Ratzinger nasceu na Alta Baviera e foi eleito Papa a 19 de abril de 2005, sucedendo a João Paulo II. Morreu em 31.12 no mosteiro Ecclesiae, no Vaticano. A sua vida resumiu-se, a ser um “servo fiel do Evangelho e da Igreja”, como disse o Papa Francisco!

O mundo está a perder uma “figura formadora”, como disse o chanceler alemão. A Igreja católica está de luto por uma personalidade que não será fácil de encontrar no futuro. O Secretário-Geral da ONU, A. Guterres, descreveu o Papa como um “humilde homem de oração e estudo”. Os progressistas vêem-no como um líder da igreja voltado para o passado e os outros consideram-no um papa exemplar à altura dos tempos. As suas últimas palavras foram “Senhor, eu amo-te”. Na Baviera, ouviu-se a aclamação popular, “Nós somos papa”, aquando da eleição e tocaram os sinos três vezes ao dia em igrejas da Alemanha, desde a sua morte até ao seu enterro.

Ratzinger nasceu em 16.04.1927, o seu pai era um gendarme e a sua mãe uma cozinheira; a família também era unida na sua rejeição da ideologia nazi. Teve dois irmãos mais velhos (Maria e Georg). Ainda criança foi forçado a entrar na Juventude hitleriana. Foi ordenado padre em 1951. Em 1958, com 31 anos de idade tornou-se professor de dogmática e teologia fundamental. Ratzinger foi conselheiro do Concílio Vaticano II e sofreu um ponto de viragem quando a vaga marxista (68) marchava pelos salões de aulas universitárias. Assustado, retirou-se para Regensburg (cf. HNA 2 de janeiro de 2023) na intenção de se afirmar como autor de livros teológicos refutadores da onda marxista materialista; não aceita que a vida intelectual tenha de ser determinada apenas sob o ponto de vista democrático, o que realmente significaria um encurtamento da mente. O Vaticano cruzou os seus planos consagrando-o de bispo de Munique e Freising.

Bento XVI não era um homem do poder nem tão-pouco da administração, reconhecendo: “O governo prático não é realmente o meu forte”.

Como bom observador do desenvolvimento da sociedade deixou o seguinte aviso: “Ter uma fé clara é frequentemente rotulado como fundamentalismo. Surge uma ditadura do relativismo, que não reconhece nada como definitivo e, como último recurso, só aceita o próprio ego e suas concupiscências”, citam Christoph Driessen e Manuel Schwarz.

Ele foi um verdadeiro bávaro conseguindo unir a cabeça alemã do Norte ao coração do Sul. Permaneceu em contacto com o mundo sem que a doutrina católica (sua vivência divina) deixasse o seu coração. Aquele que tinha sido um promotor teológico do Concílio Vaticano II, defendendo mudanças na Igreja, tornou-se mais cauteloso enquanto Papa, também porque a perspectiva da Igreja universal com níveis de consciência tão diferentes nas suas várias regiões exige pastorais distintas da perspectiva intelectual da teologia científica e da mentalidade europeia ; respeitar os pontos de vista das diferentes culturas, como é tarefa de uma Igreja universal, conduz necessariamente à ambivalência porque não pode assumir em todas as regiões do mundo a mentalidade ou maneira de ver da região europeia ou de elites transnacionais. Por outro lado, a Igreja não pode concentrar-se de maneira exclusiva no espírito do tempo actual sem ter de apontar caminho e alertar para os sinais dos tempos. A mentalidade política contemporânea não pode ser aplicada directamente à religião; são campos diversos: de um lado o poder na luta de interesses e do outro o serviço à pessoa e humanidade em geral. Com as condenações doutrinárias de teólogos como Leonardo Boff (a quem impôs um ano de silêncio penitencial por suas críticas à igreja) e Hans Küng, houve incertezas na igreja e causou um atraso de certas reformas na igreja. O decorrer da História costuma revalidar posteriormente os seus críticos.

Como teólogo excepcional moldou o século XX e o início do XXI constituindo uma grande perda para a comunidade científica e para a igreja onde colocou acentos pioneiros na teologia. A prestigiosa revista alemã de tendência esquerda “Der Spiegel” categorizou-o como o “mais talentoso teólogo alemão da reforma”.

Numa época em que a filosofia já não é a “serva da teologia” Bento soube justificar de maneira exemplar a razão e a fé na qualidade de irmãs. Até o conhecido filósofo Jürgen Habermas, que joga noutra liga, elogiou a erudição de Bento XVI. Ele disse que os dois partiam de bases diferentes, mas concordam nas “actividades operacionais”. Habermas disse ainda que compartilham a crítica da “modernidade desenfreada”, embora dissesse ser “religiosamente não musical”. Como teólogo preocupado em fraternizar a filosofia com a  teologia, Ratzinger permanecerá certamente, na comunidade científica, ao lado de S. Tomás de Aquino (1).

Fui também estudante de teologia no seu país natal, tendo sido um estudante assíduo e admirador da sua teologia que enquadrava com a de Rahner, Johann Baptist Metz, Küng, Schielebeks, Boff, Chardin, Karl Barth, etc….

Enquanto Bento XVI tornava o passado vivo também no presente, Francisco vive o presente sem se tornar infiel ao passado; esta pequena diferença leva muitos a colocá-los num plano de contra modelos.

Num mundo em rápida mudança não é fácil afirmar-se, por isso, penso que Ratzinger depois de uma época em que sobretudo o politicamente correcto e a corrente do mainstream são validadas na tela do relativismo em moda, um dia, ele receberá também na praça pública o reconhecimento teológico e pessoal que bem merece; certamente será canonizado. Ele era pela renovação, mas com muito respeito pela tradição.

Foi um momento histórico quando Bento XVI inesperadamente teve coragem para quebrar com as correntes da tradição perante a assembleia dos cardeais em 11.02.2013 declarando que “renunciaria ao cargo de sucessor de Pedro”.  Os cardeais ficaram, a princípio, perplexos perante o que ouviam. Os tradicionalistas acusaram-no de desacreditar o cargo com a sua demissão. Pelo contrário, hoje a sua atitude é avaliada como um acto positivo.

O escândalo de abusos sexuais no seio do clero abalou a igreja e Bento apertou o código penal eclesiástico, pedindo perdão e defendendo a igreja como um todo.

No dia da sua morte, foi publicado o seu testamento espiritual onde se dirige explicitamente aos seus concidadãos alemães dizendo: “Não vos deixeis dissuadir da fé”.

Beto XVI tornou o ministério petrino mais humano e conseguiu afirmar a sua importância apesar da pressão da individualização e da secularização no mundo ocidental. Por outro lado, os dez anos com dois papas foram certamente um desafio. Agora Francisco pode mais facilmente exercer o cargo. Com a experiência de dois papas, Francisco será mais capaz de lidar com uma tal situação no futuro.

As suas exéquias não foram uma despedida papal porque se encontrava já emérito; foi uma cerimónia muito digna liderada pelo Papa Francisco; o facto de só ter havido convidados oficiais da Itália e da Alemanha é compreensível: o papa não morreu em exercício de funções.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) S. Tomás de Aquino foi o mais importante proponente clássico da teologia natural e o pai do tomismo. A base de seu pensamento é a união entre fé e razão, criando uma ponte entre Filosofia e Teologia, entre a lógica aristotélica e a fé cristã, unindo pensamento platônico ao misticismo agostiniano. Razão e fé são duas companheiras na busca da verdade.

Também Ratzinger estabelece a correlacionalidade entre fé e razão: “Pois não podemos acreditar se não tivermos almas racionais. Se, então, é um ditame da razão que, em certas coisas sublimes que ainda não podemos compreender, a fé deve preceder a razão, não há dúvida de que um pouco de razão ao nos ensinar essas coisas precede a fé”.

Ratzinger também se expressou sobre os fundamentos culturais, políticos e religiosos da sociedade europeia! A grande quantidade de livros e temas estabelecem análises e impulsos para o sucesso da sociedade entre a globalização e a questão dos valores.

Para Aquino, o mal não tem perfeição nem ser, pelo que significa a ausência do bem e do ser; de facto, o ser, enquanto ser, é um bem.

 

DE “SERVOS DA BURGUESIA” PARA “SERVOS DA POLÍTICA”?

Uma Caminhada ao longo dos Tempos entre Fracasso e Salvação

Em tempos passados vivia-se dos servos da terra; hoje, em sociedade avançadas, refinou-se o processo vivendo-se mais dos servos da mente.

As capacidades mentais e espirituais encontram-se em perigo de virem a ser subjugadas a princípios, agendas, ideologias e assim serem unilateralmente direcionadas para a defesa de grupos de interesses estabelecidos, de minorias ou reivindicativos, fora do contexto comum, enfim, uma inteligência mais orientada para a compreensão e expressão utilitária e menos para a sabedoria empática.

O saber e a ciência (universidades) não se devem tornar em servos da política, um sector profícuo em produzir os servos de hoje. A política, que deveria procurar a verdade e o bem comum, deixou de ser apelada pela Verdade integral para se servir do suborno e assim conseguir convencer, para os seus fins, a maioria dos cidadãos (uma estratégia democrática). (Observe-se a corrupção sistémica no Estado português, situação crónica que mereceria um estudo sério sobre o assunto, a nível de universidades.)

 O facto de vivermos em democracia e esta assumir uma forma de vida equacionada e expressa por partidos, que pretendem possuir a Verdade toda (ou a verdade variável), não nos pode desobrigar de procurar a Verdade para além daquilo que nos querem fazer querer (Verdade muitas vezes negada ou diluída no politeísmo ideológico-político) porque só assim nos livramos do jugo que pretendem impor-nos de maneira alienante; de facto, o sistema democrático, ao tornar-se cada vez mais autoritário e controlador  global, é tentado a contentar-se a que a Verdade fique reduzida às verdades relativas de partidos ou ordenanças sob a alçada do poder. Quanto mais o poder partidário estatal aumenta mais oportuna se torna a instituição cristã e moral acompanhada de desobediência cívica, uma vez que a política se mantem mais centrada nos interesses concorrentes da vida social terrena e a religião mais no sentido da vida e do bem da pessoa. Enquanto a política se fica por conceitos abstratos e leis (sem atitude virtuosa), a religião alia à ideia (à ideologia) a vida boa e exemplar! Não se pode criar uma nova base moral baseada apenas em princípios de igualdade jurídica e abstracta.

A verdade não pode ser de ordem democrática porque não é reduzível a um consenso. O consenso é uma ótima maneira de resolver pacificamente conflitos de interesses em democracia: revela-se, muitas vezes, como um método para o bom viver, mas que não substitui o seu sentido; a verdade na qualidade de dado sociológico, seria reduzida a um mero acto mental ou de número, a uma acção cerebral impossível de ser conciliada mesmo em democracia. Há ainda o perigo de muita gente considerar resultados estatísticos maioritários como sendo a verdade ou como dados orientadores da vida pessoal. A procura da Verdade a nada pode excluir e a nada se pode submeter e por isso permanecerá sempre uma actividade profética.

A Verdade não se deixa condicionar a actos de poder; como Deus, ela não escraviza e deixa sempre a tua consciência como última instância, como é praxe da ética cristã da justiça e do amor.

A Instituição eclesial ou secular e o indivíduo vivem um do outro, seguindo o chamamento de Deus (do bem comum) de forma mais ou menos consciente; portanto, cada crente, cada cidadão e cada época vive da intuição entre o fracasso e a redenção, muito embora expressos de forma religiosa ou de forma secular. Importante, para todos será centrar-se na caminhada e não se perder a olhar para a maneira do caminhar dos outros.

Encontramo-nos a caminho da libertação e a sociedade vai-se melhorando. Os valores vão-se afirmando e à medida que se alcançam e aperfeiçoam alguns, vão-se descobrindo outros. Para não nos refugiarmos em discursos sobre os malefícios do passado importaria reflectir mais no que se esconde e encontra por trás das nossas condições económicas, social e individualmente. Numa realidade em que tudo é relação e em que tudo está em relação seria anti natural querer-se abstrair da lei da complementaridade (onde fenómenos que aparentemente se excluem na realidade  se complementam e fazem parte da mesma realidade) como se fosse possível criar realidade/verdade autónoma emancipada da relação vital (1).

Todo o esforço por sair da demasiada dependência pessoal, legal, económica e mental é um serviço ao desenvolvimento pessoal e à humanidade. Estamos todos chamados a viver a liberdade de filhos de Deus.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Uma cultura da paz implica a implementação do princípio da complementaridade em geral como englobante da tolerância. Assim se manifesta também a compatibilidade do amor e omnipotência de Deus com a existência do mal no mundo (teodiceia) e na determinação da relação com a ciência natural (e teologia) também expressa na natureza humano-divina de Jesus Cristo. Também no mistério da Santíssima Trindade as entidades relacionais Pai-Filho geram uma terceira identidade – o Espírito Santo – que ao mesmo tempo pertence à realidade divina como complemento.

Quanto à emancipação pessoal é importante desde que a autodefinição não estabelecer a comunidade como fronteira. Indivíduo e instituição pressupõem uma certa dinâmica de concorrência em contínuo processo de transformação mútua. Esta seria reduzida a uma mudança de perspectivas se se colocasse a emancipação e objetivo de qualquer desenvolvimento do indivíduo no seu caracter funcional, ou seja, como libertação do patronato, da casa, das normas e objetivos dos pais. O passo consequente seria a emancipação do Estado e das leis. A redução da dependência no sentido de uma auto-libertação responsável implicaria também um certo distanciamento de uma psicologia que apenas aposta na emancipação pela emancipação (individualismo puro), levando o cliente a não se sentir responsável por suas próprias acções, chegando muitas vezes a culpar até os pais por existências fracassadas. O mesmo se diga da alienação da autorresponsabilidade no próprio partido ou da tendência para a diluição da responsabilidade do partido atribuída ao povo. Como seres e instituições frutos da relação, estamos todos comprometidos e interligados numa complementaridade que a todos compromete e corresponsabiliza; certamente a fonte dela encontra-se na pessoa que se define a partir de um nós. Mais que independentes somos seres sempre na pendência de algo ou de alguém, com o potencial da liberdade que nos quer mais iguais!

 

PRÉMIO DE 3.000 € AOS MELHORES ALUNOS – ESCOLA SALESIANA DE PARABÉNS

A Academia das Ciências em 2022 atribuiu o prémio de Matemática e o prémio de História a duas alunas da Escola Salesianos de Évora. Prémio Alexandre Herculano (História ) atribuído a Sofia Gonçalves Marques, da Escola Salesianos de Évora. Prémio Pedro Nunes (Matemática) a Catarina Sofia Aveiro Nunes Gonçalves Oliveira, da Escola Salesianos de Évora (ex aequo).

O prémio de português (António Vieira)  foi atribuído a Diana Melo de Oliveira, da Escola Secundária Dr. João Manuel da Costa Delgado (Lourinhã).

O prémio de Matemática (Pedro Nunes) foi atribuído em termos de igualdade a André Gonçalo Fernandes Crispim, da Escola Secundária de Caneças (ex aequo)a Catarina Sofia Aveiro Nunes Gonçalves Oliveira, da Escola Salesianos de Évora (ex aequo) e a Miguel Borges de Almeida, da Escola Básica e Secundária do Cerco do Porto (ex aequo).

Pode ver-se a sessão de atribuição de prémio em https://www.youtube.com/watch?v=sdopbplRtuI

Como se vê na página da Academia das Ciências de Lisboa( http://www.acad-ciencias.pt/academia/PES ), esta instituição atribui prémios de mérito aos melhores alunos do ensino secundário nas disciplinas de Português (Prémio António Vieira), História A (Prémio Alexandre Herculano) e Matemática A (Prémio Pedro Nunes). Na página podem ver-se as condições e fazer-se as inscrições.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

PROPRIEDADE DE TERMO

COLOCO AQUI UM ARTIGO QUE AJUDA A TER-SE MAIS PROPRIEDADE DE TERMO
Perceber a História
Fascismo ou autoritarismo nacionalista?
O historiador Rui Ramos, no Observador. Janeiro de 2023:
Depois da pergunta sobre a duração do regime, a segunda questão mais frequente sobre o salazarismo diz respeito à relação com duas ditaduras europeias que foram suas contemporâneas na década de 1930: a fascista de Benito Mussolini na Itália e a nacional-socialista de Adolf Hitler na Alemanha.
Essas ditaduras foram derrotadas e destruídas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) por uma aliança entre as democracias ocidentais e a ditadura comunista russa. Desde cedo, que a oposição de esquerda em Portugal acusou o Estado Novo de ser um regime “fascista”. Não resultava de uma tentativa de descrever o regime, mas de uma vontade de o comprometer. Os oposicionistas esperaram assim, nos anos a seguir a 1945, identificar os salazaristas com uma causa desacreditada pela derrota e pela revelação das suas atrocidades, e sujeitá-los à desaprovação dos vencedores da guerra.
Foi o salazarismo simplesmente o “fascismo português”? A questão é complicada por várias razões. Primeiro, pelo hábito comunista de usar “fascismo” para definir indiscriminadamente qualquer regime ou movimento político não-comunista, incluindo, por exemplo, a social-democracia alemã. Segundo, pelo sentido fortemente pejorativo que o termo adquiriu, de modo que qualquer função descritiva está perdida numa função meramente acusatória e ofensiva. Por isso, há quem prefira formas menos carregadas, como, por exemplo, “autoritarismo”, para falar do salazarismo.
Mas há uma outra razão para a dificuldade de definir o salazarismo. Salazar esteve quarenta anos no governo. Para durar, num século de grandes sobressaltos e deslocações súbitas e num país em mudança, teve de fazer e dizer coisas diferentes em diferentes momentos. Nunca se esforçou, aliás, por arranjar grandes justificações teóricas para tudo o que fez. Por exemplo, perante o proteccionismo alfandegário a que foi obrigado na década de 1930, observou: “eu nunca julguei ter de recorrer a medidas como certas que tenho adoptado ultimamente e que reconheço sem valor económico e quase disparatadas”.
É por isso sempre arriscado usar uma citação de Salazar para o marcar politicamente: muito provavelmente, será possível encontrar outra num sentido contrário. No entanto, Salazar referiu-se frequentemente a uma “doutrina”, que definiria o Estado Novo. Vale a pena tentar examinar essa “doutrina”, sem cair no erro de tentar sistematizá-la numa filosofia, em mais um “ismo”, como o liberalismo ou o socialismo. O objectivo deve ser outro: perceber o seu papel no regime, e, por esse meio, o significado político do salazarismo, que não é a mesma coisa que a descrição da sua maneira de funcionar.
Na década de 1930, num mundo desestabilizado pela Grande Depressão e por potências como a Alemanha nazi, a Itália fascista, a Rússia comunista ou um Japão militarizado e expansionista, muita gente acreditou que o mundo do liberalismo do século XIX, com os seus parlamentos e eleições disputadas por vários partidos políticos, acabara de vez. Em 1940-1941, nas suas lições na Faculdade de Direito de Lisboa, Marcello Caetano identificou o Estado Novo como o fim do liberalismo: “embora ainda vigorem muitas leis e persistam muitas instituições do sistema individualista, está-se em pleno período de reforma no sentido da elaboração de um direito social e autoritário”.
O futuro era o autoritarismo, para uns com aspecto fascista, para outros com aspecto comunista. Ao longo dessa década, Salazar deixou o Estado Novo lembrar o regime fascista italiano, com milícias, saudações romanas e uma retórica “revolucionária”. “Liberalismo” e “democracia” eram quase sempre referidas como coisas passadas.
Mas mesmo nesta época, Salazar teve o cuidado de contrastar a “doutrina” do regime, não apenas com o liberalismo, mas com o totalitarismo. Em 1932, explicou a António Ferro: “a nossa ditadura aproxima-se, evidentemente, da ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu carácter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social”.
Mas, por outro lado, “afasta-se nos seus processos de renovação. A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um estado novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que marcha para o seu fim sem encontrar embaraços nem obstáculos”. O Estado Novo não seria assim: “A violência, processo directo e constante da ditadura fascista, não é aplicável, por exemplo, ao nosso meio, não se adapta à brandura dos nossos costumes”. Repetidamente, apresentou-se como alguém que “proclama e aceita que o Estado é limitado pela moral e pelo direito”. Os limites do poder político, segundo Salazar, estavam na revelação divina (o catolicismo), na natureza humana (descrita pela história e pelas ciências sociais) e num modo de actuar ordenado, legalista (segundo a tradição jurídica do Estado de Direito). O poder político teria de respeitar esses limites, sob pena de ser ao mesmo tempo eticamente reprovável e politicamente ineficaz.
Na prática, foi Salazar quem destruiu o principal movimento de tipo fascista em Portugal, o Nacional-Sindicalismo liderado por Francisco Rolão Preto em 1932-1934. A expansão do Nacional-Sindicalismo prova que havia espaço para um fascismo em Portugal. Em privado, Salazar tratou a dinâmica fascista de que saiu a Legião Portuguesa, em 1936, como um efeito do “snobismo da época”: “copia-se bastante, pensa-se menos”. Certamente, porque o projecto nacional-sindicalista de dominar o espaço público era um desafio ao seu poder e porque a Legião Portuguesa, que Salazar submeteu ao exército, podia desequilibrar o regime.
Mas também porque o salazarismo rejeitava aquilo que era fundamental no fascismo – e que não era apenas a ditadura, mas um movimento político que visava, como escreveu Hannah Arendt, eliminar a esfera privada (“diluir totalmente o privado no público”) e reduzir o Estado a uma simples “fachada externa”, destinada apenas a “representar o país no mundo não-totalitário”. Como notou Robert Paxton o que distingue os autoritarismos nacionalistas dos fascismos: os primeiros assentam sobretudo em “corpos intermédios” como igrejas, notáveis, associações, a administração, as forças armadas para controlar, e portanto aceitam esferas de regulação autónoma, e os segundos num movimento político de mobilização que domina a esfera pública e elimina outras esferas autónomas ou privadas. O seu controle no primeiro é de desmobilização e conformismo, o segundo é de mobilização e adesão.
Por isso, os historiadores fora de Portugal nunca tiveram dificuldade em reconhecer que nos anos 1930 o “conservadorismo autoritário” de Salazar, segundo Ian Kershaw, “oferecia o mais acentuado contraste” com as ditaduras totalitárias europeias. Como seria de esperar, nunca no Estado Novo o “tu” da camaradagem fascista substituiu o “V. Exa.”, nem a saudação romana, ocasionalmente usada na Legião Portuguesa e na Mocidade Portuguesa, o aperto de mão. Tratava-se de viver “habitualmente”, e não “perigosamente”, como queria Mussolini.
Sem dúvida que faz sentido estudar o salazarismo em relação ao fascismo dos anos 1920 e 1930. Mas não faz sentido reduzi-lo a isso. O fascismo não foi a única fórmula de autoritarismo, nem sequer a mais bem sucedida (nenhum movimento fascista tomou o poder fora de Itália e da Alemanha). O mesmo se poderá dizer do comunismo, que não se instalou em mais nenhum país fora da Rússia até 1945. A cultura política ocidental das décadas de 1920 e de 1930, quando Salazar afirmou o seu poder, tinha outras fontes de autoritarismo.
Após a I Guerra Mundial, nos anos 1920 e 1930, a política dos países industrializados foi invadida pelo culto dos “chefes”, protótipos da “liderança” e da “eficácia”. Isso aconteceu nas ditaduras de tipo fascista ou comunista, mas também nas democracias liberais, onde o presidente norte-americano Roosevelt e depois o primeiro-ministro britânico Churchill se tornaram vias para estruturar a vida pública em função de um líder a quem era reconhecida uma autoridade especial, para além da que lhe vinha por via legal. A origem deste culto esteve no impacto da guerra e na influência crescente da empresa industrial e de serviços como modelo de organização.
O “chefe” foi uma forma de salvaguardar a autoridade e a hierarquia, através de novas formas e técnicas de comando, numa época de igualitarismo, em que desaparecera a aristocracia tradicional. Na liturgia do Estado Novo, Salazar era tratado como o “chefe”.
Mas era um “chefe” que os seus admiradores contrastavam ostensivamente com chefes como Mussolini: de um lado, estava um Salazar reservado, polido e professoral; do outro lado, um Mussolini exuberante, plebeu e militar.
Mais importante do que isso, na época, foi o facto de o Portugal de Salazar se ter mantido um “aliado fiel” da maior democracia liberal europeia, a Grã-Bretanha. Durante a II Guerra Mundial, Salazar não perdeu a cabeça, como teria sido fácil (aconteceu ao seu embaixador em Londres, Armindo Monteiro), e aproveitou o facto de os beligerantes terem acabado por deixar a península fora da guerra para servir ambos os lados, com lucro, ao mesmo tempo que acolhia cerca de meio milhão de refugiados.
Em 1939, no começo da guerra, a imprensa do regime aproveitou para estranhar as “anexações imperialistas” e a “mística racista” da Alemanha de Hitler. Em 1943, quando a guerra virou, Salazar concedeu bases aos Aliados nos Açores. Em 1945, com a vitória das democracias ocidentais, aliadas à União Soviética, Salazar enalteceu o auxílio que prestara à causa anglo-americana, reviu leis, fez logo novas eleições, e começou a falar de “democracia”, embora “orgânica”.
A oposição denunciou as “reformas demagógicas” com que Salazar se preparava para convencer as Nações Unidas de que “em Portugal não há fascismo”. A imprensa comunista clandestina passou a tratar todos os ministros como “fascista nazi”. Mas em Outubro de 1945, na reunião do Centro Almirante Reis, os oposicionistas reconheceram, a propósito da lei eleitoral de 23 de Setembro, que “a alteração de princípios que encerra é profunda”: ainda não era a democracia, mas o regime, que até aí se dissera “anti-liberal e anti-democrático”, estava a ceder às “ideias democráticas”.
Durante alguns anos, entre 1945 e 1947, o Estado Novo até se esforçou por criar “muita distância” em relação à ditadura do general Franco em Espanha, ao mesmo tempo que, significativamente, o regime espanhol se procurava modelar segundo o português – o que significou reduzir os elementos mais fascistas. Em Junho de 1946, no Brasil, o embaixador Pedro Theotónio Pereira podia garantir à imprensa que Portugal tinha um regime “anti-totalitário”, era até uma “democracia”, onde os cidadãos podiam ter opiniões diferentes, onde havia imprensa da oposição, e embora não houvesse partidos políticos, por uma questão de estabilidade, não era verdade que estivessem proibidos.
Ao mesmo tempo, porém, escrevia a Salazar a dar o exemplo do Brasil como a falência da democracia, com o governo e os partidos divididos, e incapazes por isso de resistir ao comunismo. De facto, Salazar nunca pensou recorrer à população em pé de igualdade com os seus adversários. Nem ele, quando prometia “eleições livres”, nem as oposições, quando as exigiam, estavam de boa fé. Na realidade, era pela força que Salazar esperava manter-se no poder, e era pela força que as oposições planeavam tirá-lo de lá. Como explicou em Fevereiro de 1946, a exigência de liberdade pela oposição de esquerda parecia-lhe um truque de guerra: “sabemos bem que a exigem para vencer e a dispensam para governar”.
Provavelmente, Salazar não acreditava nem na vontade da oposição para respeitar a legalidade, nem na capacidade dos salazaristas para predominarem sem coerção. Por isso, para Salazar se manter no poder, mais decisivas do que as eleições, foram as derrotas das conspirações militares conhecidas por golpe da Mealhada (1946) e Abrilada (1947). A ditadura evitou assim um golpe militar como o que derrubou Getúlio Vargas no Brasil em 1945, para instituir uma democracia limitada e conservadora e sob tutela militar. Em Espanha, Franco aguentou, o que poupou Salazar à pressão de uma vizinhança democrática.
Rui Ramos é historiador, professor universitário

DIA INTERNACIONAL DO OBRIGADO/A

 

“Gratidão é um sentimento de reconhecimento básico, um crédito pelo que recebemos e a confirmação de que somos interdependentes, aceitamos e nos aceitamos…  A gratidão pode ser experimentada como uma mistura de desejo de vida e amor que nos leva a uma melhor qualidade de vida natural e espiritual, geradoras de satisfação”. Do tema gratidão em Pegadas do Tempo, António Justo: https://antonio-justo.eu/?p=5758

Obrigado a todos!