NOVO ENFOQUE NO MOLDAR DA MORALIDADE

Velho Adão ao encontro do Novo Adão

O Papa Francisco ao viabilizar a bênção a pessoas em situações irregulares dá início a uma teologia moral mais virada para a misericórdia e para a graça do que para o pecado. A bênção de homossexuais e a reintegração de divorciados na Igreja é o sinal de uma mudança de perspetiva moral com ênfase na compaixão, acolhimento e encontro, em vez da ênfase de tipo exclusivo na condenação e na culpa.

O Santo Padre, ao assinar o documento do Dicastério para a Doutrina da Fé,  Fiducia supplicans (1), veio provocar mais ondas num oceano já muito agitado no Caminho Sinodal da Igreja! Isto levou o Papa, no passado 13.01, a esclarecer que na Igreja Católica se abençoam pessoas e não o pecado (2), quando falava a 800 padres da diocese de Roma.

A tomada de posição de Francisco é realmente inovadora na teologia moral, como se pode verificar no que se preanunciava já nas suas encíclicas (3). Ele quer uma teologia que parta de Jesus Cristo, o Novo Adão, uma teologia da graça, da caridade e da reunião e não tanto uma teologia do velho Adão, uma teologia moral que assenta mais na condenação e na separação. A nova abordagem pastoral iniciada pelo Santo Padre não implica uma mudança nos ensinamentos fundamentais da Igreja Católica sobre a moralidade, mas sim uma ênfase diferente na aplicação desses princípios à vida cotidiana e às situações específicas. O Papa procura abordar as pessoas com compreensão e cuidado pastoral, numa atitude de encontro pessoal, reconhecendo a complexidade das situações individuais. O facto de sermos seres condicionados, não 100% livres, condiciona também as avaliações morais e de valores. Em questões de moral, no âmbito católico, “a consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (4); esta assenta na dignidade individual humana resumida na pessoa de Jesus Cristo e proclamada na mensagem cristã e implica uma inter-relação íntima entre o fiel e a instituição desde que realizada no espírito de comunhão com o Espírito Santo.  A Igreja na qualidade de comunidade religiosa afeta a pessoa inteira com corpo, psique, alma e espírito; por isso, e devido à sua missão, será de sua natureza ir ao encontro da pessoa e embarcar com ela a partir do lugar onde esta se encontra. A pessoa é um todo complexo e a Igreja, que quer o bem da pessoa toda e real, sente-se obrigada a fomentar nela o bem do espírito, da alma, da psique e do corpo. Com isto a Igreja não subestima a sua missão de apelar à responsabilidade com que o homem deve usar a sua liberdade no sentido do bem corporal e espiritual.

Encontramo-nos numa encruzilhada histórica que está a iniciar um novo tempo axial a nível de doutrinas e de geopolítica, tendo como consequência  as dores de parto sentidas nas populações; é um tempo em que a pessoa e a sociedade se sentem a dar à luz uma nova maneira de ser e de estar no mundo e, por vezes,  sem saber a razão do acontecer nem donde ele vem. No canal das dores vislumbra-se nova luz já não fruto apenas da perceção luz e treva, mas de uma nova Realidade de amor que idealmente quere ultrapassar a dicotomia luz-treva!

A pessoa é um nó de relações, também contextuadas no tempo, à procura do brilho do amor que lhe dá consistência, ânsia essa que a palavra portuguesa Saudade tão bem expressa!

O ser humano, à imagem do Amor que criou o mundo, é feito de Céu e Terra, fruto do amor para amar e ser amado no seguimento do amor como princípio, meio e fim (como exemplarmente revela a analogia do mistério da Trindade); sendo a pessoa feita de Céu e Terra não se pode separar dela a parte que é terra. Daí a necessidade de integrar na visão humana a “Felix Culpa” (como refere Sto. Agostinho, o pecado de Adão e Eva possibilitou o anseio à perfeição que culmina na vinda do segundo Adão); no âmbito das possibilidades, o erro de Adão inerente ao ser humano e à instituição, que se repete nas biografias humanas e nas instituições pode também ele tornar-se em mal menor como fator de desenvolvimento; de facto também ele  possibilitou tornar visível na História Humana as pegadas da memória cristã (a Igreja) e desenvolve na pessoa humana o desejo de se aperfeiçoar e crescer. A nível sociológico e histórico se não tivesse havido o momento da culpa assumida exponencialmente a nível histórico no imperador Constantino e no movimento das cruzadas, hoje o Cristianismo estaria apenas presente em grupos de vida sem ter tido a possibilidade de humanizar institucionalmente a civilização ocidental. A História é a sombra que nos ajuda a descobrir donde vem a luz! O protótipo Jesus Cristo reuniu nele a divindade e a humanidade, o espírito e a matéria de maneira a espiritualizar também a matéria!

A Graça acontece a nível de relacionamento, de relacionamento pessoal e uma bênção não se fixa na forma do relacionamento porque esta é transcendida na ligação pessoal intrínseca que possibilita a relação de amor pessoal e o vínculo entre dois, o amor em comunidade que no cristianismo assume caracter divino (que pode ser limitado por aspetos  circunstanciais individuais e até levar ao anulamento do casamento); também por isso na realização do sacramento matrimonial, o celebrante do casamento não é o sacerdote, mas os noivos; o  sacerdote confirma o vínculo como testemunha, em nome da Igreja, a união daquele Matrimónio; o amor é constitutivo e constituinte se responde à sua essência de ser relação sem ter de ser identificado apenas com uma forma de relacionamento.

Em Jesus Cristo incorpora-se espírito e matéria, a feminilidade e a masculinidade em harmonia e não na divisão; a feminilidade e a masculinidade que flui em cada homem e em cada mulher e deve permear toda a sociedade no espírito de bonomia e graça. A “bênção pastoral” de pessoas a viver em situações irregulares é testemunho de um amor, não apenas carnal; ela aponta para a relação humana integral de que faz parte essencial  a dimensão espiritual.

Para nos entendermos não chega fixar-nos numa forma de linguagem puramente racionalista e masculina. A linguagem poética é a forma mais adequada para se falar do amor e para se falar de Deus e da vida; ela tem um caracter mais criativo, mais feminino! O símbolo e o mito apontam para uma realidade superior à expressa na linguagem e no texto. Uma sociedade demasiadamente colada ao texto materializa a História e a Realidade petrificando as interpretações em factos.

Jesus Cristo não se reduz à doutrina nem ao texto, ele é pessoa, o evento humano-divino, o acontecer do “tempo Cairos” (o presente eterno) a resgatar o tempo Cronos (do calendário) na pessoa e na sociedade; o JC é o modelo perfeito da realidade humano-divina a acontecer na imagem de Deus que é o ser humano. Jesus Cristo é a relação pura e trinitária a espelhar-se no tempo narrativo, histórico e através da Igreja petrina em comunhão com o Espírito Santo confere-lhe visibilidade e sustentabilidade histórica.

O reino de Deus, o Evangelho é a plataforma horizonte da História. Deus não é apenas um demiurgo, uma ideia, o Deus cristão é relação pessoal, ele é trindade, encarnação e Ressurreição, ele é Céu e Terra em Jesus Cristo que se expressa na teologia da compaixão. A igreja expressa e guarda de maneira especial a feminilidade da alma das pessoas que vai ganhando voz no tempo.

A acentuação pastoral no amor (sinal de uma realidade espiritual) torna-se numa chamada otimista a não nos fixarmos moral e mentalmente apenas no modelo luz e treva que pela criação nos é dado viver e, ao mesmo tempo,  adverte-nos a temperar a maneira de ver maniqueísta: um modo de vida mental-político-religioso-social  demasiadamente centrado na dualidade (oposição luz-treva, verdade-mentira)  que estamos chamados a ir superando, muito embora sabendo-nos numa situação existencial de carência. 

Pelo menos no âmbito privado é chegada a hora de se tornar presente o Tempo Natal, o tempo da graça, o tempo Cairós que presencialisa o tempo mítico, o tempo redondo, para lá do frio e do calor, do inverno e do verão. Na luz do presépio se juntam e iluminam todos os mitos ligados aos solstícios, e na gruta noturna se junta todo o saber humano-divino, o amor que ultrapassa o saber dos solstícios e toda a sabedoria, superando ou temperando a oposição da luz à treva.   Em Jesus Cristo se reúne o céu e a terra e deste modo se ultrapassa a visão maniqueísta do mundo. O Amor transcende o próprio sol e é o outro lado da luz e das trevas: a tentativa é um exercício difícil e sempre inacabado porque na vida tudo se mantem em processo. No fim o que importa na caminhada  é a boa intenção, esperança e espírito de benevolência perante a vida que em termos cristãos se resumiria em tentar seguir as pegadas de Jesus Cristo.

O novo Adão inaugura uma nova geração com a cultura do amor a mitigar tanto a arrogância do saber como a fixação brutal instintiva.

A Conferencia Episcopal Portuguesa “reconhece o acolhimento de todos na Igreja e manifesta a plena comunhão dos bispos portugueses com o Santo Padre”.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

(1) A SEXUALIDADE JÁ NÃO É TEMA TABU NA IGREJA: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/a-sexualidade-ja-nao-e-tema-tabu-na-igreja

(2) A função principal do Papa é liderar a Igreja Católica, promover a fé, orientar os católicos e lidar com questões religiosas e éticas. É conhecido por suas posições progressistas em algumas questões sociais e a sua abordagem é mais inclusiva na pastoral em comparação com alguns de seus antecessores. É importante notar que a teologia pastoral está em constante desenvolvimento ao longo do tempo, e diferentes papas podem enfatizar diferentes aspetos, dependendo das necessidades e desafios específicos enfrentados pela Igreja e pelo mundo na época no seguimento dos sinais dos tempos. Portanto, embora a abordagem pastoral do Papa Francisco possa ser considerada uma mudança de ênfase, ela está enraizada em princípios teológicos mais amplos de misericórdia, graça e cuidado pastoral.

(3) A encíclica Laudato Si (Louvado seja) : https://antonio-justo.eu/?p=3191 ; Na Cúria: menos poder e mais serviço: https://antonio-justo.eu/?p=7236 ; Família e sexualidade: https://www.pressreader.com/angola/jornal-cultura/20141124/281719792892079 ; https://jornalpovodeportugal.eu/2018/02/13/polemicados-recasados-por-antonio-justo/

(4) “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo”: https://jornalpovodeportugal.eu/2018/02/13/polemicados-recasados-por-antonio-justo/

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

5 comentários em “NOVO ENFOQUE NO MOLDAR DA MORALIDADE”

  1. Ana Simões ,não seria de admirar que o artigo enviado tenha sido colocado em Spam! A filosofia deles é outra: conter o saber para que as pessoas sejam impedidas der pensar por si próprias. O saber torna-se num perigo para os que o querem controlar em benefício do poder.

  2. Acredito que é por inspiração do Espírito Santo que o Santo Padre deu início a esta nova abordagem pastoral.
    Sendo que a consciência é factor primordial no meio da complexidade da vida de cada ser humano, é de enaltecer a atenção que o Santo Padre põe na sua missão de abraçar o povo de Deus com elevação, compaixão e Amor.
    Obrigada pelo seu texto tão rico de informação .

  3. Mafalda Freitas Pereira , esta mudança de perspectiva moral situada a partir da situação e da pessoa irá provocar em teologia, espiritualidade e religião uma viragem de perspectiva de grande relevo. Surgirão, de futuro muitos livros teológicos com esta perspectiva Jesuina. De facto as mentalidades mais sujeitas às forças da inércia social e histórica e como tal mais ligadas ao Antigo Testamento precisam de um novo impulso como reacção à desordem entrópica que ameaça uma ordem social e religiosa por vezes demasiadamente equacionadas em termos de poder! Quanto aos meus textos reflito procurando usar os próprios neurónios e fico contente quando outros entram na mesma onda embora também respeite aqueles que são contrários ou que repetem na sua maneira de pensar o que a TV lhes sugerem ao ouvido e à vista!

  4. Somos sempre de alguma forma camuflagem, nas coisas que queremos esconder .. é assim o mundo, e o mundo somos todos nós !!.. Retirando -me do mundo, e vivendo nele, ou fico menos, ou fico mais, oqué , Aprendendo a fazer um mundo melhor talvez . Deus é o Caminho a Verdade e a Vida. e não ficarei cega. mas Ele cura todas as cegueiras !..

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