QUARESMA É TEMPO DE JEJUM DE ILUMINAÇÃO E DE MUDANÇA

Jejum e Abstinência consolidam Corpo e Alma

António Justo

Segundo uma investigação do “Forsa-Institut”, 57% dos alemães acham bem reduzir o consumo de doces, álcool, carne ou TV, ou renunciar, totalmente a ele, durante a Quaresma.

Muitas das práticas e ritos da religião são expressão do anseio humano por um viver integral. Neste sentido, a cristandade, com a Quaresma, aponta especialmente para a dimensão espiritual humana no sentido de se transcender o mero caminhar individual e social, na tensão entre realidade e ideal de “alma sã em corpo são”!

Com o tempo, muitos dos usos e ritos religiosos vão-se secularizando, perdendo de vista o seu aspecto espiritual, passando a ser utilizados apenas no sentido de mera funcionalidade e de optimização corporal e social.

O que é bom para o corpo não precisa de concorrer com o que é melhor para a alma, dado sermos formados de corpo e alma e, nesse sentido, o esforço mais eficiente será contemplar os dois polos sem necessidade de os rivalizar ou hostilizar!

A Quaresma inicia-se com a Quarta-feira de Cinzas; “de cinzas”, porque os padres nas liturgias de Quarta-feira colocam cinza na testa das pessoas, dizendo: “lembra-te Homem que és pó, e em pó te hás de tornar” (Gênesis 3:19). Pressupõe-se, também ritualmente, a disposição para se deixar o que é velho (o Homem velho) para dar lugar ao novo, e, consequentemente, a prontidão para a metanoia, a mudança e o novo começo. A vida é um contínuo recomeçar! Parar é morrer ou endurecer!

A quaresma (40 dias) é o período que vai de Quarta-feira de Cinzas até Quinta-feira Santa. Estes são tempos de preparação para os grandes acontecimentos, que implicam sempre (Kairós) transformação: 40 dias de dilúvio, 40 dias de Moisés no Sinai da sarça ardente, 40 dias de Jesus no deserto (porque “o Homem não vive só de pão”) e os 40 dias que vão da morte à Ressurreição (preparação). Os Domingos não são considerados como tempos de jejum nem de abstinência.

(Antigamente jejuava-se também em todas as Quartas-feiras do ano – como lembrança da traição de Jesus nesse dia) e em todas as sextas-feiras (como lembrança da crucifixão.)

O jejum e abstinência levam-nos a estar mais atentos a nós mesmos, ao próximo e à natureza; facilitam a meditação e a oração possibilitando a entrada numa terceira dimensão: a dimensão espiritual do silêncio onde o mistério divino sente, fala e age em nós.

Na Quaresma dá-se a preparação da comunidade de fiéis para a celebração da festa pascal. Neste tempo da paixão, os cristãos sofrem com Cristo as dores da humanidade e do mundo (tempo da compaixão); daí o seu recurso mais intensivo ao exercício da caridade (sintonia e solidariedade) e da oração. O Papa Francisco sugere 15 actos (1) nesse sentido.

A abstinência possibilita a concentração em algo melhor. Com o jejum mais facilmente se chega à visão do mistério da Páscoa e se fortalece a relação com Deus no próximo. Como efeito colateral dá-se a regeneração do organismo numa osmose de espírito e matéria. O facto de se tomarem mais líquidos e menos comidas sólidas obriga o corpo, com o tempo, a produzir mais serotonina e com isto mais contentamento e equilíbrio mental e espiritual.

 

A prática do jejum e da abstinência são exercícios de libertação

A prática do jejum e abstinência é comum em todas as culturas! No islão recorre-se à abstinência de comida e de sexo; no Budismo, os monges em vez de duas refeições diárias comem até às 12 horas uma refeição e à noite apenas bebidas.

O jejum e abstinência aponta para a necessidade de nos libertarmos não só das cargas do dia-a-dia, mas também da rotina do pensar e sentir, para entrarmos numa dimensão diferente e mais profunda!

Vivemos numa liberdade aparente, puxados pelo máximo desempenho até ao esgotamento, mas propriamente sem nos apercebermos do sentido de tal esforço.

Tempos como os da Quaresma são tempos de pausa, tempos de inspiração: uma oportunidade para se rever o sentido da caminhada e correrias em que andamos metidos. Jejuamos para nos consolidarmos na vida e através da acção, da reflexão e da oração nos situarmos num estádio fora da luta e da concorrência; deste modo, torna-se mais possível aceitar-se a si como se é e dar lugar à oportunidade para ser-se melhor do que se é.

O   Papa Francisco diz:” A Quaresma é a hora de respirar novamente”; isto implica um estado de abertura para si e para os outros.

Exercício

O dentro e o fora tocam-se e cruzam-se, nos pulmões, numa troca de mistura de elementos tóxicos (CO2) e saudáveis (Oxigénio). Nos mesmos pulmões se junta o bom e o mau, que nos proporcionam o sentido da plenitude. (Respiração – inspiração e expiração – podem ser experimentadas como metáfora da interligação da vida espiritual e material.)

Num exercício simples de respiração (inspiração e expiração conscientes), poderíamos inspirar a alegria e expirar a energia negativa. Tal exercício, feito por cristãos, é aliado, muitas vezes, à concentração numa palavra ou jaculatória no ritmo da inspiração e da expiração. Este respirar leva-nos a desligarmo-nos dos pensamentos, do estresse e daquilo que nos ocupa e possui. Entramos num relaxe de corpo e alma que nos liberta e concede asas para melhor voar!

Uma respiração lenta e profunda, feita conscientemente, além de proporcionar muito mais oxigénio nos pulmões pode levar-nos à ressonância com o todo na vibração de Deus que se inspira e expira corporal e espiritualmente. Leva a desligar-nos das energias mentais para passarmos à pura experiência de se ser um só no inspirar e expirar Deus ou, também, no caso de crente ou não, inspirar a energia que é Sol que nos inebria e expirar a maldade que nos escurece.

© António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

 

(1). Os 15 atos de caridade que o Papa mencionou para a Quaresma:

*1. Sorrir, um cristão é sempre alegre!

*2. Agradecer (embora não “precise” fazê-lo).

*3. Lembrar ao outro o quanto você o ama.

*4. Cumprimentar com alegria as pessoas que você vê todos os dias.

*5. Ouvir a história do outro, sem julgamento, com amor.

*6. Parar para ajudar. Estar atento a quem precisa de você.

*7. Animar a alguém.

*8. Reconhecer os sucessos e qualidades do outro.

*9. Separar o que você não usa e dar a quem precisa.

*10. Ajudar a alguém para que ele possa descansar.

*11. Corrigir com amor; não calar por medo.

*12. Ter delicadezas com os que estão perto de você.

*13. Limpar o que sujou, em casa.

*14. Ajudar os outros a superar os obstáculos.

*15. Telefonar ou Visitar + Seus Pais.

 

O MELHOR JEJUM

 

  • Jejum de palavras negativas e dizer palavras bondosas.
  • Jejum de descontentamento e encher-se de gratidão.
  • Jejum de raiva e encher-se com mansidão e paciência.
  • Jejum de pessimismo e encher-se de esperança e otimismo.
  • Jejum de preocupações e encher-se de confiança em Deus.
  • Jejum de queixas e encher-se com as coisas simples da vida.
  • Jejum de tensões e encher-se com orações.
  • Jejum de amargura e tristeza e encher o coração de alegria.
  • Jejum de egoísmo e encher-se com compaixão pelos outros.
  • Jejum de falta de perdão e encher-se de reconciliação.
  • Jejum de palavras e encher-se de silêncio para ouvir os outros.

A CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL É O PRIMEIRO VIGÁRIO DE CRISTO – POLÉMICA DOS RECASADOS

Porque não falam os Pastores nas Igrejas sobre a Liberdade do Cristão?

António Justo

A polémica sobre a regulamentação da “Amoris laetitia” dá a impressão de dividir os católicos (bispos) em tradicionalistas e progressista, mas tem a vantagem de trazer reflexão à discussão e, deste modo, contribuir para o acordar da igreja clerical e leiga, por vezes acomodadas na rotina de um rebanho demasiado limitado à paróquia.

A Igreja deve responder à questão da esperança (mensagem evangélica) sem precisar de ser uma agência de moral. Há uma tensão entre reivindicação e realidade, entre crentes e teologia; uma coisa é a moral e outra o entusiasmo. A missão da Igreja é transmitir o entusiasmo e não a restrição.

Por vezes, na pastoral dá-se resposta a perguntas que ninguém coloca e as pessoas fazem perguntas a que não recebem resposta.

No conspecto dos bispos portugueses o senhor Cardeal, ao colocar o sexo no centro da decisão dá a impressão de querer alinhar-se na posição dos bispos mais conservadores, que, a nível mundial, oferecem resistência à aplicação da Amoris Laetitia; tendo alguns a ousadia de pretenderem querer analisar “filialmente” se a Amoris Laetitia não será herética! O senhor cardeal só tem jurisdição para Lisboa. A ala conservadora encosta-se ao papa João Paulo II e a progressista ao Papa Francisco. A questão de fundo é mais complicada, mas no fundo em cristianismo a última instância, em julgamento morais e éticos, é a consciência individual.

Ao contrário, há comunidades cristãs como as de Viseu, Évora e Braga que se encontram a refletir em conjunto (presbíteros e leigos) no espírito da Laetitia Amoris, no sentido de se fomentarem atitudes conscientes e não de ovelhas.

Que a Igreja institucional (clerical) apresente os ideais do evangelho para a Igreja integral é natural; mas como diz o Papa Francisco, os membros do clero não podem distanciar-se da Igreja completa e comportar-se como “Fiscais da Fé” criando, no interesse do poder, uma igreja com “Alfandegas”! Não podem transformar-se em inspectores do que os transcende e que catolicamente é a consciência individual humana e a liberdade do cristão. Na acção pastoral os pastores devem agir como mediadores que refletem com o cristão irmão a sua situação no sentido de ser mais esclarecido no processo das suas decisões.

Igreja sem Fé é vazia, Fé sem Igreja é cega

Uma discussão respeitosa pelas partes, sejam elas conservadoras ou progressistas, é salutar porque o falar e o argumentar fazem parte do serviço da palavra (igreja docente) que ajuda uns e outros no processo de discernimento e desenvolvimento que somos e nos encontramos imbuídos.  Ainda bem que há ideias diferentes porque assim podemos notar melhor a nossa!

No sentido do filósofo Emanuel Kant, também não devemos esquecer que “Igreja sem fé é vazia, fé sem igreja é cega”. De facto, o eu de cada um de nós é também formado do tu e do nós, resultando daí uma tensão entre o eu e o nós não podendo ser absolvido pela comunidade para que tende a mentalidade conservadora nem na atomização do eu com tendem os de ánimo progressista. Por isso estamos chamados a analisar os documentos no que revelam na sua profundidade e não nos limitando ao aspecto polémico de uma frase ou de um erro tático. Como não aceitamos a atitude de quem dita verdades também não queremos impor a nossa verdade, muito embora esta seja decisiva no foro individual. A controvérsia, aquela velha virtude da discussão teológica antiga, e hoje esquecida, poderá ajudar-nos a andar um passo sempre à frente da moda, porque incluímos nela os direitos inerentes ao “advogado do diabo”!

É necessário reconhecermos a realidade que somos e as forças que nos governam. Geralmente vem primeiro o comer e depois a moral; nesse sentido mesmo uma fé cristã não pode garantir uma atitude moral objectiva, isto também pelo facto de a consciência individual cristã ser soberana. A teologia cristã ensina-nos que a Consciência individual é o lugar da liberdade e da autonomia.

Segundo a Igreja, até a nível de direito canónico, a teologia cristã da soberania da consciência individual é salvaguardada. O Direito canónico regista que a pessoa individual pode servir-se da “Epiqueia” que é o direito do cristão a interpretar a intenção da lei segundo a própria consciência, no seguimento de um bem maior; as consequências de uma acção devem assumir uma dimensão de responsabilidade no momento do acto.

Naturalmente que não nos podemos deixar guiar apenas pelo sentimento nem pelo espírito do tempo porque, como nos adverte o bispo de Hipona: “À força de ver tudo, acaba-se por tudo suportar; à força de tudo suportar, acaba-se por tudo tolerar; à força de tudo tolerar, acaba-se por tudo aceitar; à força de tudo aceitar, acaba-se por tudo aprovar.” St. Agostinho (Aurelius Augustinus)

Restrição e Medo são Negócios do “Diabo”

Porque não falam os pastores nas igrejas sobre a liberdade do cristão? Será que devem apenas subsidiar o Estado no seu papel social, reduzindo a mensagem da libertação a uma mera pedagogia a nível de costumes? Se o cristão atingisse a liberdade de consciência, a que o evangelho o solicita, ninguém o emparava nem contia! O cristianismo é mais que uma religião! Infelizmente, muita gente abandona o cristianismo também por incúria de muitos sacerdotes e bispos, que não transmitem a vida, nem a filosofia nem a espiritualidade cristã, contentando-se, muitas vezes, com a administração dos actos litúrgicos e ensinamentos de cortesia para pessoas simpáticas.

A missão da Igreja é transmitir o entusiasmo e não a restrição. A restrição e o medo são negócios do “diabo” e mais próprios do Estado que não tem outros meios senão as vinculações exteriores. “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus „ como avisa o Evangelho: Marcos 12:13-17; Mateus 22:15-22 e Lucas 20:20-26. O cristianismo é uma comunidade não só de irmãos, mas de pessoas soberanas que não se contentam com as máximas do dia-a-dia estando atento às forças da entropia no ego.

Resumindo

O imperativo categórico moral católico é o seguimento da própria consciência; esta expressa-se na intimidade individual onde a lei de Deus se encontra escrita; o Homem só pode ser julgado por ela (Gaudium et Spes N° 16 e Mc 7,18-23); no processo de discernimento opta-se pelo melhor, mas quem decide é o próprio.

No Catecismo da Igreja Católica, (Código de DC 748,2) pode verificar-se o reconhecimento milenário desse princípio: “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” e só ela determina da moralidade da acção, o que pressupõe também uma pedagogia moral eclesial para a responsabilidade, para não se cair no mero subjetivismo moral, mas no respeito pela autodeterminação.

© António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo,

BRAGA ABRE ACESSO AOS SACRAMENTOS A DIVORCIADOS RECASADOS

 

Linguagem da Misericórdia em vez de uma linguagem arcaica e ferrugenta

António Justo

Com a carta pastoral “Construir a Casa sobre a Rocha”, (1) o Arcebispo Primaz D. Jorge Ortiga deu o pontapé de saída na tentativa de dar resposta às novas maneiras de viver em sociedade, reconhecendo “a necessidade de uma nova articulação para transmitir a beleza da novidade cristã, por vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível”.

Em 2017 houve 250 pedidos de nulidade matrimonial, apresentados nos 14 tribunais eclesiásticos portugueses. No futuro haverá muitíssimos mais. (2)

Divorciados e recasados também têm lugar na Igreja

O Arcebispado coloca-se corajosamente ao lado do Papa Francisco apoiando o espírito da exortação Amoris Laetitia (A Alegria do Amor) confirmando que “somos  chamados  a  formar  as  consciências,  não  a  pretender  substituí-las”  (AL  37).  Isto já provocou críticas de algum teólogo ultraconservador!

A Amoris Laetitia não desvaloriza o matrimónio, como alguns ultraconservadores pretendem, nem a Igreja tem de viver fora de contexto, nem está cá para complicar a vida…. Não se trata aqui de ceder ao relativismo, mas de dar resposta consciente a situações reais com pessoas reais e com problemas reais. A mediação em situações dramáticas, como as do divórcio, não pode ser satisfeita com uma mera referência canónica longe a realidade… O ótimo é inimigo do bom! Já não basta ao clero ficar-se comodamente pelo adro da Igreja, a pastoral está chamada a descer à rua. De facto, cada um de nós consta de si e das suas circunstâncias envolventes. Como não concebemos uma pessoa sem corpo e alma também não podemos fazer do Homem um corpo sem ossos!

A carta pastoral possibilita um excelente trabalho de preparação e um verdadeiro exame de consciência no fim do qual o fiel pode tomar uma decisão soberana.

O Anexo da Carta fala do tempo de discernimento necessário e, na “Proposta de elementos práticos para um processo de acompanhamento…”, revela-se à altura da exortação papal, concretizando: “Além de um verdadeiro discernimento, este tempo poderá certamente surgir como uma possibilidade de formação e investimento na vida espiritual pessoal e familiar”. Essa preparação ganha expressão, no dizer do arcebispo, com uma decisão individual soberana: “O Processo de discernimento termina com a confirmação da decisão tomada.”

Numa pastoral de preparação para o mundo de hoje, o cristão recasado ou divorciado que frequenta tal curso poderá ter a vantagem, em relação a muitos outros fiéis!  Tem a oportunidade de entrar num processo de reflexão onde reconhecerá que muitos dos valores hoje apregoados como seculares não passam de uma tentativa da aplicação prática dos valores da filiação divina, fonte da dignidade de todo o humano com os consequentes valores da liberdade, irmandade, “igualdade” e democracia.  Muitas pessoas adversas ao homo religiosus procuram apresentar estes valores como antagónicos à religião, como se a bondade ou a maldade fossem propriedade de um grupo, de uma crença ou descrença e não fosse, primeiramente, a condição comum a todo o ser humano nas diversas situações e organizações.

Não chega já uma pastoral orientada para o gosto folclórico de ritmo marcado; a nova pastoral terá de se centrar menos na moral e mais na espiritualidade cristã e possibilitar o acesso à compreensão da filosofia cristã para se viver a espiritualidade cristã de maneira mais consciente e poder dar resposta qualificada às questões e impostações do cidadão secular; só assim poderá a pessoa reconhecer-se a si mesma e reconhecer a essência dos valores e dos diferentes fenómenos da sociedade em que vive.

A vida não se realiza aos saltos, mas passo a passo… Aqueles cristãos que têm um molde de salvação mais conservador e idealista terão de reconhecer, também, nos outros a legitimidade de uma matriz de salvação de caracter mais progressista e realista. Uns e outros expressam o brilho da Ecclesia!

O perfecionismo moral torna-se, muitas vezes, num impedimento ao desenvolvimento porque pretende antecipar e resumir num momento o que será resultado de um processo. Não se pode caminhar com o caminho completo já no bolso! O humano é o microcosmo de um universo em contínuo desenvolvimento e num processo de resposta ao chamar do Criador. Como protótipo do Homem, o cristão tem Jesus Cristo numa tensão entre imanência e transcendência.  Como pessoas humanas, somos seres inacabados em contínuo sistema de crescimento gradual, daí a necessidade de reajustamentos dinâmicos. Que a Igreja aponte para o processo e para a responsabilidade da consciência individual (também ela em contínua formação), é mais que óbvio e pressupõe a abertura e a confiança que Pedro teve, ao superar o medo, para poder seguir Jesus que andava sobre as águas.

A Igreja de Braga está com o Papa Francisco e quem está com o Papa está com o futuro e com a Igreja Universal.

(1)“Construir a Casa sobre a Rocha”:  http://www.diocese-braga.pt/media/contents/contents_It6SIR/construir%20a%20casa%20sobre%20a%20rocha.pdf

(2) https://portal.oa.pt/comunicacao/imprensa/2018/01/17/duplicam-os-catolicos-que-querem-anular-casamento/

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo,

 

NAS PEGADAS DA POESIA: “Noite, minha Ama” + “Quem sou” –

Permitam que lhes apresente  duas poesias do meu novo livro “NAS PEGADAS DA POESIA” que em baixo exponho.

NOITE MINHA AMA

Minha noite querida,
meu escuro à luz do dia,
Nos teus braços agasalho
minhas mágoas da alegria!

Noite que em mim passas,
na procura de um sol que não passa!
Tenho medo da alvorada,
quero em mim soluçar o dia.

Tu és a noite, aquela que é só minha,
a vivência de um sonho que não passa.

Já não durmo, a noite dorme em mim!

 

QUEM SOU

Um rio, um mar
Um monte, um vale
A Freita no Arda
Ao Douro a chegar

Um casco sem velas
A quilha do convento
No capricho do vento
Só espuma a formar

Sou Arouca no porto
A nação a boiar
Nas ondas de um povo
Sem rumo levar
António Justo, in “NAS PEGADAS DA POESIA”, OxaláEditora, 2018

TENSÃO NA IGREJA ENTRE PROGRESSISTAS E CONSERVADORES

Bispos tradicionalistas sentem-se desafiados pelo Papa Francisco

 

António Justo

A Igreja não anda com as modas e por isso tem de, ocasionalmente, dar uma corrida para não ser ultrapassada pelo tempo. É o que faz agora com o Papa Francisco, numa tentativa de dar prioridade ao passo da pastoral sobre o da dogmática! O Papa que entusiasma o mundo, desengana um certo espírito clerical dentro do Vaticano.

O ponto da discórdia, que junta os conservadores mais fundamentais, centra-se na Exortação Apostólica do Papa Francisco “A Alegria do Amor” que abre novos caminhos para a pastoral matrimonial, abre também pistas para uma abertura na regulamentação do celibato do clero secular e para a legitimação do uso de métodos anticonceptivos artificiais. A Exortação Apostólica exige a releitura de documentos anteriores da Igreja a uma nova luz mais ao sabor da teologia da libertação.

Reacção crítica a “A Alegria do Amor”: Cardeal Burke e Cardeal Müller

 

Nas esferas altas da jerarquia eclesiástica confrontam-se liberais e conservadores numa luta surdina entre os que querem as “circunstancias mundiais a definir as posições da Igreja” e os que esperam que a Igreja deva “liderar a agenda do mundo”.

A carta aberta de bispos aposentados e de católicos descontentes com sete acusações em defesa de um tradicionalismo duro que teme o modernismo e a revolução sexual, encontra expressão especial no cardeal Burke que se questiona se a “A Alegria do Amor” contraria a doutrina anterior. Os conservadores têm medo de uma releitura de velhos documentos à luz de “A Alegria do Amor”.  A “Amoris Laetitia” procura manter duas vertentes: a da dogmática e a da pastoral, procurando dar um pouco mais de autonomia à pastoral.  De facto, se a Veritatis Splendor de João Paulo II dá mais relevo à doutrina, a Amoris Laetitia dá, cautelosamente, mais relevo à pastoral (praxis): não se pode dizer que uma contradiga a outra até porque em cristianismo a consciência individual faz a ponte ao ter o estatuto de lei.

Os conservadores mais obstinados (em torno do americano cardeal Burke) não querem admitir que o desenvolvimento pressupõe o reconhecimento das duas forças que dão sustentabilidade à instituição: o progressismo e o conservadorismo, numa tensão de tolerância e respeito mútuos que (num diálogo entre teologia e pastoral) deixem espaço para a criatividade e inovação (em linguagem cristã: que deixem espaço para o atuar do Espírito Santo e para a leitura da revelação de Deus na História)!  Na luta entre liberais e conservadores (Cardeal Raymond Burke, viu a sua importância tradicionalista despromovida ao ser transferido de dicastério pelo Papa), estes sentem-se do lado da razão argumentando que com a acentuação da liberalidade nos países a frequência dominical se reduz muito (outros apontam o exemplo também comum aos protestantes).

O facto de as pessoas não participarem tanto nos sacramentos tem, certamente, mais a ver com o espírito do tempo e com as necessidades e valores que ele fomenta, além da sobrecarga de padres cada vez mais estressados pelos encargos burocráticos e exclusiva administração de sacramentos num trabalho rotineiro não consciente das mudanças e da laicização que a sociedade sofreu. Em tal situação cria-se um vazio, em que pastores, sem espaço suficiente para viverem a sua fé se limitam a ser cumpridores de ritos, sempre à espera de “ordens” ou no mínimo de “instruções”.

Por outro lado, o problema maior será encontrar formas de vida e estratégias de desmotivar o indiferentismo e a procura de espiritualidade “a la carte” à margem das instituições. Uma oligarquia globalista está interessada em destruir a comunidade e as nações e nesse sentido aposta no desenraizamento da pessoa para mais facilmente reduzir os indivíduos a consumidores e clientes.  Os interesses desviam-se para as necessidades de uma cidadania fundada em ideologias (estas não se preocupam com a relação da norma racional com a consciência, nem da consciência e acto moral).

Estas são, porém, as dores acompanhantes ao parto de novas percepções nos tempos novos.

O Cardeal Müller, um representante dos conservadores na Europa, num jogo à defesa, disse em entrevista: “Classificar todos os católicos segundo as categorias de “amigo” ou “inimigo” do Papa, é o dano mais grave que causam à Igreja.” E que não se deve confundir “a grande popularidade de Francisco… com uma verdadeira recuperação da fé” … “Tenho a sensação de que Francisco quer escutar e integrar todos. Mas os argumentos das decisões devem ser discutidos antes”. E avisa: E também me lembro a mim mesmo que os bispos estão em comunhão com o Papa: irmãos e não delegados do Papa, como recordou o Concílio Vaticano II “.

Há quem veja nas tomadas de posição destes dois cardeais tendências para um cisma na igreja. Müller já contradisse tal intenção. De facto, são apenas convulsões da época. Um cismático quando o é, revela-se contra a Igreja, contra a Mensagem evangélica, contra a tradição e contra o magistério!  Não é uma discência teológica que irá pôr em perigo a unidade da Igreja; ela vive também da natural tensão entre a teologia e a pastoral.

Controvérsia em tempos de crise e de aggiornamento

 

A consciência europeia e a sua identidade encontram-se num estado doentio como é natural em épocas de mutações fundamentais; o remédio para a nossa sociedade mutante ainda está por inventar e nem uma ortodoxia dura nem um relativismo dogmático convertido em fundamentalismo ajudam a doente.

Também já no pós-Concílio o arcebispo francês Marcel Lefebvre lutava contra o aggiornamento do Vaticano II (que implementa a democracia e os direitos humanos); actualmente levantam-se os “introvertidos” (idealistas) da doutrina (João Paulo II) contra os “extrovertidos” (realistas) da pastoral (representados em Francisco). Uns e outros terão razão porque uns e outros expressam a fé de crentes empenhados. O timoneiro da barca de Pedro é JC que permanece enquanto outros O vão representando.

A teologia da libertação procura agora a sua expressão numa tentativa de mistura das posições e no reconhecimento de que a humanidade é constituída por pessoas introvertidas e extrovertidas. O Papa é claro: “A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar”.  De facto, a doutrina tradicional faz parte essencial da Lei Constitucional (Papa e dogmas) da Igreja, mas não deve impedir a formação de leis e práticas que a interpretem ou amenizem, não podendo a cristandade ver o seu cristianismo reduzido a uma vida de convento nem a elites de bem-pensantes.

O argueiro no olho dos conservadores vem do facto de Francisco não acolher a pompa vaticana, não assumir o modo clerical, não condenar os homossexuais, tomar uma atitude humilde perante outras religiões, criticar o capitalismo global (1) e personalizar as questões de sexo, não condenando pura e simplesmente o divórcio consumado (2); casais divorciados passam a ter, pontualmente, acesso à comunhão (mesmo sem ter de renunciar a relações sexuais). A ala conservadora da Igreja alinha-se na crítica à “Alegria do Amor” para defender uma posição clerical dogmática da Igreja contra uma teologia pastoral onde o Papa beneficia os liberais e progressistas. Teologia dogmática e teologia pastoral encontram-se frente a frente, quando por essência são complementares.

A relativização do divórcio como afronta aos celibatários?

 

Penso que, também uma perspectiva mais pastoral da relação matrimonial, não implica negar o “casamento eterno e indissolúvel” tal como um divórcio não implica, por si só, a negação do princípio dogmático! O que é óbvio reconhecer é o facto de os cônjuges serem duas variáveis, duas individualidades com caracteres em desenvolvimento e, por vezes, este dá-se em sentidos contrários; a experiência pastoral sabe que, por vezes, só mais tarde é reconhecida a incompatibilidade entre parceiros, podendo esta até constituir impedimento ao desenvolvimento social e espiritual individual.

Seria irresponsável reduzir a questão relacional, mutuamente condicionante e determinante, a um mero problema de desobediência a um ideal, à lei e consequente anulação. Mesmo numa relação de fé vivida ninguém pode exigir de um parceiro matrimonial que assuma um papel como Mónica assumiu em relação a Agostinho! Não somos feitos só de céu, somos feitos de céu e terra e, como se sabe, há terra e terra! Como seres imperfeitos que somos tem de haver a argumentação não se pode limitar a uma posição binária, entre o bem e o mal,  mas incluir também o elemento da imperfeição.

A acção do Paráclito na História (História é uma cadeia de mudanças e mutações incluindo intrinsecamente nelas um critério relativizador das normas) e na pessoa é uma realidade a ter em conta pois não é uma consciência social expressa num determinado tempo, seja ela liberal ou conservadora, que pode fazer parar a revelação de Deus no tempo. Não há mudanças ad hoc, a renovação é contínua, e necessita dos polos que a motivam numa tensão natural entre consciência conservadora e consciência liberal. Deus não muda, o que muda é o Homem e daí as diferentes perspectivas sobre Ele e sobre a comunidade.

A crença e as verdades realizam-se também no tempo o que pressupõe uma certa osmose entre a doxia e a praxia; é preciso dar tempo ao tempo para, no distanciamento, se poder dar conta da revelação de Deus também na História. A experiência da fé vivida e partilhada é inclusiva e leva à consciência da complementaridade da vida, doutrina-praxis. Na Igreja de Jesus Cristo há lugar para uns e outros.

Uma coisa é a letra e outra a vida, a letra tem a função de iluminar (ortodoxia e ortopraxia têm a sua dinâmica própria e não têm necessariamente de se obstarem). Também a crença não pode ser aprisionada nas leituras de um espaço-tempo ou época, nem tão-pouco na leitura de um dogma porque este ultrapassa a interpretação. Deus não muda só nós vamos mudando a nossa ideia dEle.

Todos no mesmo barco

Temos todos, Igrejas e partidos, de ultrapassar o espírito da paróquia fechada, espírito este que se encontra em representantes da Igreja e nos partidos e corporações. A paróquia deve tornar-se cada vez mais expressão da diversidade, na sequência da obra e dos dons do Espírito Santo.

Sem tensão não há vida nem desenvolvimento; por isso progressismo e conservadorismo querem-se no mesmo barco. Pensamento e acção, introversão e extroversão complementam-se como os órgãos de um só corpo, numa relação frutífera entre grupos dentro do mesmo corpo. Urge aceitar e manter uma tensão produtiva entre indivíduo e instituição, entre grupos, entre missão e realização; esta será, numa atitude humilde e tolerante, a tarefa do momento para salvaguardar a sustentabilidade e manter a Igreja como protótipo de sociedade política e religiosa.

Encontramo-nos numa fase em que é obvio “repensar-se, e ajudar a repensar o mundo e também ajudar a redefinir e atualizar práticas, linguagens, redimensionar-se, tentando ultrapassar uma lógica… demasiado clerical”, como diz o Historiador e autor de “Portugal Católico”, José Eduardo Franco (Cf. Fátima Missionária, janeiro 2018).

Quem estiver com o papa pode andar mais ou menos depressa, mas tem a certeza de se encontrar do lado da História porque segue a consciência de que a fronteira da moral acompanha o saber. No consenso católico, Ubi Petro, ibi Ecclesia. A revelação na tradição encontra-se, ao mesmo tempo, em João Pablo II em Bento XVI e em Francisco.

© António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e pedagogo

Pegadas do Tempo

  • (1) “Algumas pessoas continuam a defender teorias ‘conta-gotas’, que assumem que o crescimento económico, encorajado por um mercado livre, irá inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante e ingénua na bondade dos que exercem o poder económico e no funcionamento sacralizado do sistema económico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam à espera.” O papa responsabiliza este capitalismo feroz pela destruição das famílias que se veem obrigadas a separarem-se na busca de pão. Para Francisco o sistema económico é quem mais provoca a separação das famílias….
  • (2) “A Alegria do Amor” na nota 361 do capítulo (: algumas pessoas que vivem em segundos casamentos (ou em uniões de facto) “podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”. “Em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos.” “quero lembrar aos padres que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas antes um ponto de encontro com a misericórdia do Senhor” …. “Quero também salientar que a eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um poderoso medicamento e alimento para os mais fracos.” “Ao vermos tudo a preto e branco, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento.”