Aforismos e Pensamentos


Quem faz alguma coisa dá erros

Quem não faz nada não erra

Quem não erra é promovido!



A farsa da vida tem os seus intervalos.


Desespero é a distância entre o que já sabemos e o que falta saber.


Sem massa não há classe. A massa popular produz a classe com massa.


À sombra da minha ignorância prosperam os melhores erros.


A mudança do mundo tem a mesma raiz que a minha.


Se não fosse a paixão da água, o rio não tinha cachão…


Na fogueira da vida arde a verdade e a mentira. Do calor ficam as cinzas!


António da Cunha Duarte Justo


Apreciar Todo o Mundo e Ninguém

Todo o mundo choraminga

E ninguém se queixa

Hoje quero-me queixar

Sem choramingar

Todo o mundo anda apressado

Ninguém tem tempo para dar

Todo o mundo quer gozar

Ninguém se lembra

Para gozar é preciso tempo

Tempo para apreciar

António da Cunha Duarte Justo

Dúvida nas crenças laicas e nas crenças religiosas


Razão Religião e Espiritualidade

António Justo

Na praça cursam, em nome da Verdade, contribuições aparentemente evidentes mas ao serviço da desinformação. Um nexo de irreflexão camuflada de ideia abre caminho entre pessoas muitas vezes distraídas pela melodia acompanhante.

“Quem crê não sabe”, “A religião inventa, a religiosidade descobre”; “A religião alimenta-se do medo, a espiritualidade da confiança”; “ o esperar e a incerteza atingiram, agora, o seu fim”, apregoam os barateiros do mercado. Estes sabem que as pessoas anseiam por experiência e segredos interiores, devido ao desencantamento do mundo. As pessoas querem ser reconhecidas e ser integrais numa sociedade que as despreza e divide continuamente. O que muitas pessoas procuram é auto-realização. As ofertas do mercado, muitas vezes, reduzem-se a medidas de fuga de si mesmos e da responsabilidade social. O objectivo da espiritualidade não é auto-realização. A religião não promete a segurança deste mundo e está consciente que a fé não é (só) desejo e anseio. A fé implica uma dúvida colocada ao mundo. Pressupõe aceitar trazer consigo a cruz da dúvida. A espiritualidade não implica a liberdade de fugir à razão. De facto quem crê sabe e quem sabe crê! A felicidade surge do estrume da dor.

Tem-se a impressão que, na feira da espiritualidade, tudo é bom e se adquire, de graça. Deparámo-nos com frases feitas, de mistura indiferenciada, com a pretensão de revelar verdades a saldo, com tudo incluído no preço. E o público cansado, levado pela embalagem, sem se preocupar com o que se encontra dentro dela, aceita o embrulho pelo conteúdo. A música acompanhante é tão encantadora e o apelo ao sentimento tão colorido que não deixa lugar para a enfadonha razão fazer perguntas. Para os negociantes da auto-realização o conteúdo é arbitrário e o que lhes importa é formar opinião através da manipulação. Oferecem espiritualidade wellness a pacotes. A massa que anda na rua só tem no bolso uns trocos de cultura. Não tem culpa, só aguenta pensamento barato, porque já traz carga a mais na sacola; a palavrinha mágica que tudo justifica e faz das fezes ouro denomina-se “opinião”; opinião não precisa de fundamento nem de argumentação. O fundamentar enfraqueceria a convicção. “A principal causa dos problemas do mundo de hoje é que os obtusos estão seguríssimos de si, enquanto que os inteligentes estão cheios de dúvidas”  Bertrand Russel.

Os agentes do mercado ideológico e económico estão empenhados em baralhar e destruir os ecossistemas culturais (Nações, religiões, etc.) e até os pequenos biótopos individuais. Só lhes interessa o indivíduo, a opinião, afirmações superficialmente lógicas e estatísticas. O indivíduo, fora dum sistema, perde o significado e facilmente se vence (o ecossistema protege o indivíduo dando-lhe a possibilidade duma identificação integrada). Os feirantes pretendem o caos recorrendo, para isso, ao dogmatismo da própria opinião. Quer-se no Ocidente pessoas revoltadas das religiões e da cultura; pretende-se pessoas revoltadas contra o próprio ecossistema cultural e para não se ter de argumentar basta insurgir-se contra a autoridade do ecossistema, identificando autoridade com capitalismo, com imperialismo ou abuso, sem se proceder a uma análise fundada das vantagens e desvantagens de cada sistema, seja ele mais capitalista ou mais socialista. Quer-se a vida gratuita sem contrapartida como se a espiritualidade ou a religião fossem o Exército da Salvação. Um irrealismo baseado num optimismo egoísta superficial parece pretender que a civilização ocidental se torne desconfortável.

Espiritualidade não é o clímax de welness espiritual

Quem contrapõe religião a espiritualidade reduz o problema à procura do sexo dos anjos. Deslumbrados com o brilho do jogo das palavras afirmam a espiritualidade e negam a religião, esquecendo que espiritualidade é uma qualidade do espiritual e concretamente uma determinada vivência religiosa: a experiência de si em relação com o outro num determinado contexto. Deixam-se enganar, como se uma qualidade existisse por si, como se um sentimento fosse possível sem corpo, ou se a espiritualidade se deixasse reduzir a um sentimento ou orgasmo espiritual.

A religião incorpora o espírito em diferentes espiritualidades. Cada ecossistema religioso (religião) com as suas espiritualidades constitui um cosmo de contextualização geográfico- histórica, cristalizado na língua, nos seus credos e utopias: a atmosfera do ecossistema.

Diria a religião está para a vela como a espiritualidade para a sua chama. A espiritualidade, a luz são a essência da religião. O sol, a luz é o movimento do movimento. O facto de a fome ser verdadeira e mais profunda que o aparelho digestivo, não nos justifica que neguemos a boca, devido às cáries dentárias que esta possa ter. Uns negam a fé, outros a razão como se estas não fossem apenas os dentes para ajudarem a digerir uma mesma realidade dura. Por muito espiritualizada que queiramos a boca, a realidade pressupõe nela os dentes para conseguirmos uma alimentação equilibrada. A espiritualidade, tal como a religião, embora razoáveis não se deixam aplainar pela rasoura da razão, apenas purificar. A razão põe tudo em questão como se o seu questionar fosse a razão das coisas. A razão sincera, como a fé sincera questionam-se a si mesmas. Uma e outra são como estrelas que nos levam a olhar para mais alto, para mais longe, sem negar o passado nem se agarrar a um futuro ilusório.

Seria uma regressão na história e no desenvolvimento querer ignorar o salto dado por Eva e voltar ao indefinido primitivo por muito gratificante que essa perspectiva se ofereça. A religião alerta-nos para a necessidade de religar o que a razão separou mas sem abdicar dela. A religião não se pode ficar pela crença estática num paraíso distante nem tão-pouco pela opinião individual. Ela quer acordar para o Sol que se encontra em cada átomo de nós em cada pessoa e instituição, no dia e na noite, num processo de encarnação e ressuscitação. A Realidade encarna na terra para com ela se elevar.

A Igreja aponta para Deus sabendo que a sua realidade se encontra no outro e não só nele. Dá uma perspectiva a uma espiritualidade não só pessoal. O facto de o Sol se encontrar em toda a natureza não pode ser reduzido a ela nem tão-pouco a um seu elemento. A espiritualidade não é o todo, não é Deus. Se o fosse o eu não seria.

A religião é também um sistema humano organizado com regras ao serviço duma pedagogia do divino onde as regras são para se dissolver tal como o sol dissolve o arco-íris que ele mesmo originou. O arco-íris, porém, no seu ordenamento torna-nos conscientes para a multiplicidade da cor na luz: o humano no divino. Cada cor da verdade tem o seu momento. O orgulho duma razão iluminada esquece uma simples verdade: no mundo do ser a luz só se percebe olhando para o escuro / a sombra. A luz sem sombra implicaria a ausência de todo o ser. O racionalismo puro produziria um Deus puro, indiferente ou com desprezo pela criatura. A arrogância da luz dos racionalistas iluminados é tão perigosa como as trevas do fanatismo crente. As duas são fanáticas porque excluem o outro, o diferente, de si. Só reconhecem a própria luz olhando para a escuridão do outro, desconhecendo que a escuridão do outro é a sua luz.

A religião como supra-estrutura cultural acarreta consigo a divisão e a limitação tal como a consciência do eu individual pressupõe a auto-afirmação perante o outro (um certo confronto dialéctico). A divisão porém não é o fim mas sim o caminho para se chegar à união. Instituições como pessoas, no seu processo de individuação (afirmação e demarcação), obedecem a dinâmicas semelhantes. Tal como o indivíduo não termina em si mesmo também a sociedade não deve ser fim de si mesma; encontram-se num processo a caminho da comunidade num horizonte aberto (Alfa-Omega). As religiões são sociedades com diversas espiritualidades em cada uma delas a caminho da unidade / comunhão. A religião não é mais que uma ponte destinada a religar o separado, tal como a razão é também uma ponte para o criado científico, são perspectivas cpomplementares da mesma realidade. O Cristianismo é mais que uma religião; nele Religião e espiritualidade não estão em contradição e Deus e Homem também não.

Cada religião, com o respectivo Deus e correspondente mundividência de Homem e mundo, faz parte dum sistema de ecossistemas naturais e culturais, com expressão própria mas com necessidade de interpretação e de desenvolvimento. Para se poder falar com propriedade de termo, em questão de espiritualidades e de religiões, teria de ser feita uma hermenêutica das diferentes religiões e culturas bem como das diferentes espiritualidades e éticas.

Lógica e dialéctica habitam na mesma casa, não se podendo afirmar que religião é lógica e espiritualidade é dialéctica como pretendem manipuladores de conceitos metendo tudo no mesmo saco.

A religião como a razão alimentam o ego para que este se torne semente numa terra (biótopo) fecunda e ser árvore na floresta da comunidade humana.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

antoniocunhajusto@googlemail.com

Razões da Situação Precária de Portugal


O Narcisismo do meu País

António Justo

Portugal tem uma população muito trabalhadora mas economicamente ineficiente. O maior problema da sociedade portuguesa está no facto de ter uma classe média acomodada e presunçosa com falta de espírito empreendedor, geralmente colada ao Estado e a burocracias ineficientes.


Em nome do progresso, o povo foi submetido a um ritmo de mudança tal que perdeu a visão geral dos problemas, entrando num processo desorientação e numa despersonalização que se expressa no exagerado consumo de antidepressivos em relação a outros países. Encontramo-nos perante um país com um Estado cobaia sempre a importar novos conceitos mas sem tempo para os digerir nem para desenvolver conceitos próprios com base na própria experiência (isto pude constatá-lo durante 30 anos nas formações anuais do Ministério da Educação – uma semana por ano). A vida dura leva-o a sonhar: ir ao shoping, ver futebol não restando tempo para ler.


Enquanto países como a Alemanha se preocupam em receber imigrantes qualificados para as suas empresas, Portugal fomenta a emigração duma juventude sem lugar para ela na sociedade.


Como emigrantes, os portugueses, são bons camaradas e ao mesmo tempo amigos do pratão. Enquanto os portugueses no estrangeiro aforram, na terra gastam mais do que produzem. Os não emigrados, julgando que os “emigrantes” ganham o dinheiro sem suor, vêem-nos de resvés. A inveja não suporta outros de cara lavada.


A assimetria no desenvolvimento de maiorias e minorias fomenta a inveja. Uma política partidária narcisista tem acentuado o problema.


Enquanto na França há 1,99 crianças por mulher, na médias dos 27 países da EU 1,58, Portugal consegue, com 1,32 por mulher, ser na Europa, o país que menos filhos gera. Portugal ainda os poucos filhos que tem obriga-os a emigrar, não criando espaço económico para eles. Sangra-se. Paulo Morgado denuncia, com objectividade, Portugal com um Estado colosso como um polvo que tudo abafa não permitindo concorrência na vida económica e cultural portuguesa. “O mercado português ainda se move mais pela parte relacional do que pela competência”. Isto podemos constatá-lo desde a administração pública às Câmaras Municipais, onde há chefes de si mesmos (sem um mínimo de pessoal a administrar) com projectos artificiais (para colocar amigos).


O Estado não se tem preocupado com política familiar, castigando quem tem filhos; não se tem preocupado com o fomento de empresas pequenas e médias, aquelas que poderiam criar emprego e produção portuguesa. Cada um, onde está faz por si. Na arena pública da nação são constantes os discursos políticos; a discussão económica tem sido pouco séria, muitas vezes apresentada sob uma perspectiva de autodefesa ou de culpabilização dos outros. As empresas e o discurso cultural encontram pouco espaço na discussão pública.


A classe política, na sua incompetência da gestão pública, desqualificou-se ao deixar chegar o país à beira da insolvência.


A via para sair da crise será “o saber de experiência feito”

“Porque é sono o não saber”, constatava já Fernando pessoa.

As instituições não têm assumido responsabilidades. Os problemas políticos, sociais e económicos, são em geral discutidos nos Media sob uma perspectiva político-partidária, o mesmo se dando no parlamento. Nota-se falta de competência económica, no discurso nacional. Muito discurso é meramente teórico sem experiência adquirida nas empresas e nos laboratórios das universidades. Muitos dos assessores têm apenas um curso universitário e o cartão do partido. Perdemos o ideal que pautava os arquitectos dos nossos descobrimentos: “o saber de experiência feito”.


Seria esclarecedor da situação se se fizesse um estudo sobre a proveniência profissional dos deputados com acento no parlamento: quantos são empresários, quantos provenientes do serviço público, quantos ecónomos, engenheiros, juristas, pedagogos, médicos, etc. Assim se saberia os modelos de pensamento que dominam o parlamento. Daí se poderia concluir da sua competência económica e social. O jogo de xadrez do poder político cada vez descarrega mais figuras políticas na liderança de grandes empresas de relevo nacional. A objectividade cede a interesses encostados às burocracias. Um tal sistema fomenta um espírito providencialista e parasita. Um bom tema de doutoramento seria uma investigação séria sobre as grandes empresas nacionais e o número de quadros vindos da política.


Já chega de “português para inglês ver“. Em Portugal  Tudo fomenta um narcisismo latente na administração e na sociedade. O sistema fomenta a ascensão de pessoas narcisistas como se pôde verificar no currículo de Sócrates. Exagerado senso de auto-estima sob o substrato duma realidade deprimente. Ciumentos estão sempre prontos a dar a culpa aos outros e com dificuldades de relações pessoais autênticas concentram-se, por isso na sua carreira: os fins justificam os meios. Geralmente, pessoas que se encontram à frente do pelotão não sentem empatia pelos outros. Em vez da empatia têm um sentimento de grandiosidade sem limites. Querem admiração sem crítica, não se importando, a nível prático, com a exploração dos outros. O que conta é dinheiro, poder e prestígio. No mercado das opiniões, sentem-se vítimas colocando os outros no lugar do transgressor.


Vive-se uma vida ad hoc. Quem não produz mais que consome age contra a natureza! Já David Hume constatava que “não é a razão que nos orienta na vida mas o hábito”. Daí a necessidade de vozes da consciência nacional que chamem a atenção do perigo da inércia, o perigo dum hábito irreflectido em que tem vivido toda a nação: uns da cópia e os outros da imitação. Por isso a primeira exigência que se coloca a um cidadão formado é ser um cidadão céptico mas consciente de que a crítica esconde a desilusão. Não se pode continuar a viver segundo o lema: já que não se tem o que se quer, aceita-se o que se não quer. Na sociedade portuguesa por onde quer que nos movimentemos tropeçamos no narcisismo. As ondas do narcisismo que emanamos são tão perigosas como as ondas de radioactividade atómica.


A primeira república portuguesa rendeu-se ao estrangeiro, a actual também. O futuro está nas nossas mãos de cidadãos! Portugal ou acorda agora ou quando acordar já não é Portugal.


António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com



Nações ajoelhadas


Numa altura em que são sistematicamente destruídos os nossos biótopos culturais não se respeitando países nem identidades culturais; numa época em que elites obtusas pisam a nossa vida negando-nos o direito de erguer os olhos, não deixemos que a terra nos alague nas lágrimas da emoção que “Ó minha pátria, tão bela e perdida” (1) testemunha. Emoção sim, mas que iluminada pela razão dê lugar à revolução. Amigos, “eles comem tudo e não deixam nada” como cantava outrora o Zeca Afonso. Hoje até a flor mais bela do nosso jardim comem: a nossa esperança. Já não se contentam em tirar-nos a terra como o ar espiritual da nossa respiração, não dificultando uma vida digna. Primeiro levaram-nos a honra de pessoa deixando-nos solitários como indivíduos à disposição do seu mercado; agora violam a honra das nossas nações. Lembremos com Emmanuel Levinas: “ Aquele que levou a sua tarefa até ao anoitecer – aquele que acreditou num mundo melhor, na eficácia do bem, apesar do cepticismo dos homens e apesar das lições da História, aquele que não se desesperou. Aquele que não procurou nem distracção, nem suicídio, que não fugiu da tensão na qual vive como responsável, o único que merece, talvez mais adequadamente, o nome de revolucionário” .

António Justo em “Pegadas do Tempo”

(1)    http://www.youtube.com/embed/G_gmtO6JnRs

A Minha Razão e a Razão dos outros – Duas complementaridades


Não chega a sabedoria vadia nem a lógica rimada

António Justo

“Duas coisas preenchem a mente com admiração sempre nova e crescente… o céu estrelado sobre nós e a lei moral em mim”, dizia Immanuel Kant. A mim duas coisas me assombram: a aerosfera sobre a terra e o tecto cultural de cada civilização; a atmosfera que cobre os diferentes biótopos da natureza e o sistema de pensamento que cobre os biótopos individuais e sociais. As mesmas leis meteorológicas que regem a natureza lá fora parecem soprar no nosso espírito cá dentro e nas culturas (ad intra et ad extra).

A natureza, a sociedade e a psiché humana atravessam uma fase de altas pressões. O desequilíbrio entre altas e baixas pressões é tal que os tsunamis parecem sacudir os fundamentos da sociedade e da moral. O nevoeiro generalizado chega a impedir de ver as estrelas e a diluir os contornos éticos, pondo em questão a sustentabilidade da humanidade e da terra.

Aqui fora, na minha terra, a atmosfera torna-se cada vez mais fria e rude; a tempestade, que nela grassa, varre jardins e telhados. Da borrasca ficam paisagens humanas devastadas e sentem-se os ecos de brados de gaivotas no ar. Uma natureza humilhada chora nas plantas e nos animais por o saber humano não respeitar o saber da natureza. Por todo o lado se observam ventanias e razias no meio ambiental e no meio cultural. O mesmo se diga no foro social e individual. Natureza e cultura ao desafia, o Homem contra o Homem.

A crise de identidade, com as crises dela resultantes, abala a pessoa e as instituições. Os ventos que correm na razão e no coração são stressantes. Na sociedade muitos afirmam-se pela negação do outro, outros pela acomodação. Por isso cada vez surgem mais árias para embalar o sentimento e para adormecer a razão. Tudo é belo, as sereias cantam e encantam. Cada um puxa ao rubro as cordas da razão ou do sentimento para fazer ouvir a sua composição.

Com esta minha composição não quero embalar mas tentar acordar para a mensagem de Ulisses ao passar pela ilha das sereias. Como na composição as desafinações têm o seu sentido também o desacordo compreensivo tem o seu lugar! A dissonância torna possível a harmonia. Não poderíamos falar do dia se não conhecêssemos a noite. A realidade ultrapassa porém a visão que advém do contraste.

Na praça pública, encontram-se demasiados textos feitos de frases soltas em bemol e de sabedoria vadia com lógica rimada ao sabor do anónimo dirigente ou textos beligerantes que só conhecem a própria razão. Dum lado o grupo dos afinados acomodados e do outros o grupo dos desafinados que tomam o semelhante como adversário. Neste grupo cada um quer, à margem da orquestra, tocar o seu instrumento sem diapasão, sem conferir a afinação. Cada um afirma-se naquilo que parece opor-se a ele. As desafinações são salutares se nos levarem a reconhecer o valor da harmonia, uma harmonia que comporta desafinações na afinação. Mal da sociedade quando cada um quer assumir o papel de diapasão. No mercado das ideologias e das opiniões assiste-se a uma grande desafinação. Cada um quer ter razão à custa da razão do outro.

Aqui a natureza pode vir em ajuda da cultura. A Natureza tem as mais variadas sementes, cada qual, com uma expressão de vida característica. A semente é formada pela casca tendo dentro dela o tecido de nutrição e o embrião. Também a sociedade/ cultura tem as mais diferentes sementes: filosofia, religião, ciência, arte, economia, política, ideologia, opinião. Cada uma destas tem a sua correspondente casca constituída por leis, dogmas, concepções. Estas (cascas) encerram dentro delas uma determinada vida (embrião). O mais importante não é a casca mas a vida que estas encerram. Enquanto na natureza (botânica) as cascas que envolvem o embrião (a vida), se amaciam e abrem para darem oportunidade à vida do embrião grelar e dar oportunidade à vida, na sociedade as sementes fixadas na casca lutam umas contra as outras. As pessoas (ideologias ou concepções) fixam-se naquilo que as delimita, a casca; naquilo que circunscreve o objecto do seu discurso/combate à casca; não fazendo sequer ideia do que esta encobre, comportam-se como se só elas tivessem direito à razão, à vida. Assim, para os que apenas têm a consciência do seu ser casca, só resta a estratégia da auto-afirmação pela negação dos outros. Então levantam-se os dogmáticos da religião (os fixos na casca da religião mas que não percebem nada de religião) contra os dogmáticos da ciência (os fixados na casca da ciência mas não percebem nada da essência da ciência), e vice-versa; o mesmo se dá nas diferentes nominações com as respectivas lutas entre grupos/casca. A casca da opinião talvez seja a mais dura delas todas porque muitas vezes não passa de uma casca formada doutras cascas, à margem da própria vida (identidade) e da mesma vida que flui ao mesmo tempo dentro da própria casca e dentro das cascas dos outros.

Olhai as sementes das plantas na natureza. Umas têm a casca mais dura que as outras, umas são maiores, outras mais pequenas. Em todas elas corre a seiva da vida sem se negarem umas às outras. Seguem um chamamento comum pressentido por todas; crescem em direcção ao Sol, apoiadas pela vontade. O ser humano, pelo contrário, encrusta a verdade/vida na delimitação (casca) da sua subcultura/opinião. Em vez de reconhecer a vida que se encontra dentro da demarcação (casca) afirma a sua casca contra a do outro e vice-versa. O ser humano ao não se tornar consciente da mesma vida que corre nele e nos outros fixa-se na carapaça do pensamento transformando-o em escudo, em casca contra a outra casca.

Ao não ouvir o chamamento da natureza, fixa-se em si mesma, como sendo um absoluto pedra,  desprezando o fluxo da vida para se fixar na maior ou menor consistência (fragilidade) das cascas, prescindindo da vida e do espírito que cada casca encobre para assim a poder negar. Na natureza temos as diferentes sementes/plantas (os diferentes biótopos/ecossistemas) que com as suas potencialidades vitais formam a riqueza da cobertura vegetal terrena. Na cultura temos diversos biótopos/ecossistemas culturais científico-filosófico-religiosos, cada qual com as suas configurações (cascas) que formam a cobertura cultural da humanidade. Cada sistema, do mais complexo ao mais simples (da civilização à opinião) tem a sua crusta (casca) que encobre a vida. Geralmente, no reino da opinião e do debate, limitamo-nos a abordar a crusta, refutando-a sem reconhecer a vida que se encontra escondida em cada uma, confundindo a semente com a casca. No fundo a vida que a tua crusta esconde é a mesma que flui debaixo da minha. É verdade que a casca (as concepções, os dogmas, as leis, os programas) tem a função de defender a vida que comportam contra a dissecação e contra energúmenos ou outros microorganismos. As cascas, religiosa, científica, familiar, nacional, ideológica, opiniosa, têm o seu direito e justificação. Encontram-se porém, como organismos, em serviço dum bem maior dentro dum macro organismo. Só o rompimento da casca permite o crescimento do embrião/vida para o exterior. A disseminação dos frutos e das sementes têm a função de preservarem a espécie e de se desenvolverem. A missionação com a sua potencialidade de inculturação e aculturação possibilitam a evolução não só da espécie como de toda a sociedade. A afirmação de uma não pode acontecer à custa da negação da outra, mas no respeito, no respeito da abertura voltada para o Sol. Como na natureza assim na sociedade/cultura: nada há igual, tudo é diferente e da diferenciação surge o desenvolvimento, a evolução. A própria liberdade tem um sentido, o sentido do Sol. Se na natureza se observasse o que se observa especialmente hoje no discurso cultural ainda não teríamos passado da verdade da anémona, da verdade peixe, da verdade hominídea ou da verdade gorila, da verdade emocional, da verdade racional: verdades encrustadas num sistema (verdades casca). Com isto não se relativiza a importância das cascas, sem elas não haveria individuação nem diferenciação, não haveria evolução, desenvolvimento material e  espiritual. Importante será descobrir a vida que cada casca encerra e verificar, sem combater nem negar, a vida que se encontra em cada semente, dentro de cada casca com as potencialidades do seu embrião. Umas serão mais carvalho, outras, mais oliveira, mais toupeira ou mais leão.

O verde de todas as plantas, aparentemente mais ou menos relevantes, transporta o oxigénio da atmosfera de que todas se aproveitam. Semelhante deveria dar-se nas culturas (ecossistemas culturais) com os seus diferentes credos (religiosos ou seculares). A esperança vital da humanidade que se encontra sob o firmamento cultural e embrionada nos diversos ecossistemas culturais também não pode ser estancada em nome duma crusta comum.

Os diversos credos, religiosos (feminidade) ou seculares (masculinidade), são imprescindíveis para o tecto metafísico cultural tal como o verde para a atmosfera que respiramos. A verdura transportada pelo conjunto da cobertura vegetal é expressão do esforço comum das diferentes individualidades vegetais. A atmosfera não precisa só do oxigénio mas também do dióxido de carbono, embora este seja mais notório pelas suas qualidades negativas!

”Oh culpa feliz” reconhecia o apóstolo Paulo. A culpa é a casca da semente, a vida encrustada que possibilita, doutro modo, o fluir da vida profunda e activa. Sem o pecado não há relação. Ele separa para possibilitar a religação consciente. A nós compete a missão de desfazer os nós que a motricidade da vida produz com o seu desgaste próprio. Cada um de nós “crente” ou “não crente” contribui com o seu credo, com a sua opinião para o tecto espiritual da cultura. Como na natureza, não há nada igual. Da diferença aparentemente contraditória surge a riqueza individual e cultural que contribui para o concerto universal de natura e cultura. Cada um traz consigo os seus ferimentos e estes fazem a diferença. Porque nos afirmamos uns contra os outros negando ao outro a sua razão em vez de nos reconhecermos como complementares duma Realidade maior? Na realidade andamos todos à procura de nós mesmos (do brilho da nossa divindade), à procura da própria casca para nos podermos agarrar; uns procuram-se no teatro, outros na religião, na arte, na ciência, na política, na palavra, na afirmação, na contradição, esquecendo talvez que tudo isto não são mais que as cascas que encobrem o nosso verdadeiro ser: vida em germinação. Cada um traz em si o espartilho do seu biótopo, estando predestinado a confundi-lo com a natureza toda, com a verdade…


António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com

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