Ponto de viragem na Europa: Venceu a Posição anglo-saxónica
Um Ocidente desafiado por valores e interesses russos e chineses ou desafiador destes, com o Novo Conceito Estratégico da NATO em Madrid (28-30.06.2022), afirma-se na mesma estratégia de confrontação que tem fomentado as guerras da história ocidental ao longo do seu passado. Uma estratégia construída numa doutrina dogmática com valores suportes de interesses económicos e estratégicos, vem apenas dar continuidade aos pressupostos de autoafirmação perante outros povos em vez de se iniciar uma nova cultura de valores baseados na paz, no respeito e na complementaridade cultural global.
Vivemos no rescaldo de imperialismos e de colonialismos históricos, uma época em que o imperialismo anglo-saxónico se debate com o imperialismo Chinês surgente e com o imperialismo russo que se sente assediado e a virar-se para Ásia. A força asiática revela-se tão forte que amedronta os USA e a Europa e os leva a uma parceria ímpar, como é de concluir das resoluções tomadas na cimeira da NATO em Madrid.
Tanto a Rússia como a Europa vivem a angústia do cisma do cristianismo de 1054 (Constantinopla e Roma e a tensão catolicismo-ortodoxia-protestantismo) e, hoje, como outrora, temos um ocidente indeciso onde o colonialismo anglo-saxónico ganha a dianteira através da afirmação da NATO. A nível mental temos um ocidente dividido entre o latino e o anglo-saxónico; vivemos, dentro da cultura europeia, uma certa discrepância que mundialmente se observa de maneira especial entre o Norte e o Sul global. O capitalismo protestante afirmou-se contra o Catolicismo, tendo emigrado para a América de onde volta em plena força. A China e a Rússia ameaçam a hegemonia dominante dos USA e a NATO ameaça o surgir de novas hegemonias.
Num momento trágico da história europeia, a cimeira da NATO em Madrid constitui um marco histórico a favor da hegemonia dos USA no Mundo. Do resultado da guerra na Ucrânia e do comportamento da China dependerão novos alinhamentos no desenrolar da política mundial; também por isso a consequência será uma prolongada guerra na Ucrânia. A Cimeira de Madrid revogou os seus propósitos estratégicos aprovados na Cimeira de Lisboa em 2010 onde se aspirava uma „verdadeira parceria estratégica”(1) com a Rússia.
Na cimeira de Madrid a China passa a fazer parte dos “desafios sistémicos”; na realidade a ameaça comunista que se afirmava nos inícios do séc. XX contra o Ocidente é agora transferida para a China e para a Rússia tida como a “a ameaça mais significativa e direta à segurança dos aliados”(2).
As atividades dos USA na sociedade ucraniana dos últimos 20 anos viram-se coroadas na Cimeira de Madrid, ao considerar a Rússia como inimiga declarada e como tal incombinável com a “Europa”. Esta cimeira, em relação à de Lisboa implica uma grande perda para a Europa impedindo-a de se reconciliar entre si (forças da ortodoxia, do catolicismo, e do protestantismo) e de, com o tempo, estabelecer uma parceria com a Rússia no sentido da construção da “casa europeia”. Ganhou a posição anglo-saxónica sem deixar alternativa política para a Europa.
Os objectivos da NATO não são apenas de natureza militar como refere o artigo 49: “A OTAN é indispensável para a segurança euro-atlântica. Garante a nossa paz, liberdade e prosperidade. Como aliados, continuaremos unidos para defender nossa segurança, valores, e estilo de vida democrático”. Além disso alarga o seu raio de acção não só ao Atlântico, mas a todo o mundo: “O nosso novo Conceito Estratégico reafirma que o principal objectivo da OTAN é assegurar a nossa colectiva defesa, com base numa abordagem de 360 graus.” No ponto 11 nomeia explicitamente a África como centro de possível intervenção: “Conflito, fragilidade e instabilidade na África e no Oriente Médio afetam diretamente nossa segurança e a segurança dos nossos parceiros”.
A ideia e os valores cristãos acompanhantes dos descobrimentos é agora substituída pela ideia secular militar dos valores comuns à NATO:” Nós somos unidos por valores comuns: liberdade individual, direitos humanos, democracia e o Estado de direito” (3).
O ponto 13 da declaração da OTAN poderia interpretar-se como um aviso à Rússia e à China de não expandirem a sua influência no espaço asiático; o documento justifica, já de início uma possível intervenção em Taiwan caso a China tente anexá-lo: “As ambições declaradas e políticas coercitivas da República Popular da China (RPC) desafiam nossos interesses, segurança e valores… O aprofundamento estratégico parceria entre a República Popular da China e a Federação Russa e suas tentativas de reforço mútuo para minar a ordem internacional baseada em regras vão contra os nossos valores e interesses”.
Biden tinha razão ao dizer: “Putin receberá a Natoização da Europa”. Os políticos europeus deixaram-se arrastar para a guerra negligenciando a obrigação de trabalhar em benefício da Europa e das suas populações; em vez disso meteram-se numa guerra que não é sua e sobrecarrega as populações com encargos insuportáveis.
O trajecto da História tem sido determinado pela concorrência e afirmação de poderes; na lógica do poder só o futuro poderá avaliar concretamente das decisões agora tomadas pela NATO. O Ocidente tem grande responsabilidade no sentido de não se dar início a uma cultura de maior humanização da política e da sociedade. Por enquanto a relação entre povos é determinada pela luta por assegurar o próprio domínio em zonas ricas em matérias primas.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) A cimeira da NATO em Lisboa 2010 (Para o século XXI: https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/3026/1/NeD126_MarcoPaulinoSerronha.pdf ); Cimeira OTAN Lisboa 2010, Declaração da Cimeira: https://nato.diplo.de/blob/2203126/38d0c13f9d99ed20d9f08ed84d2d09cc/erklaerung-der-staats–und-regierungschefs-2010-lissabon-data.pdf
(2)Nato 2022 Straategic Concept: https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2022/6/pdf/290622-strategic-concept.pdf
(3) Tradução de alguns pontos do Conceito Estratégico NATO 2022, que considero importantes:
A ligação transatlântica entre as nossas nações é indispensável à nossa segurança. Nós somos unidos por valores comuns: liberdade individual, direitos humanos, democracia e o Estado de direito. Continuamos firmemente comprometidos com os objectivos e princípios do Carta das Nações Unidas e do Tratado do Atlântico Norte.
3 A nossa capacidade de dissuadir e defender é a espinha dorsal desse compromisso.
4 A OTAN continuará a cumprir três tarefas fundamentais: dissuasão e defesa; prevenção de crises
e gestão; e segurança cooperativa.
5 Aumentaremos a nossa resiliência individual e colectiva e a nossa vantagem tecnológica.
Estes esforços são fundamentais para cumprir as tarefas essenciais da Aliança. Promoveremos o bem
governação e integração das alterações climáticas, segurança humana e as Mulheres, Paz,
e Segurança em todas as nossas tarefas. Continuaremos a promover a igualdade de género
como reflexo dos nossos valores.
8 No Extremo Norte, a sua capacidade de perturbar os aliados reforços e liberdade de navegação através do Atlântico Norte é estratégico desafio à Aliança. A formação militar de Moscovo, inclusive no Báltico, Black
e regiões do Mar Mediterrâneo, juntamente com a sua integração militar com a Bielorrússia, desafiam nossa segurança e interesses
11 Conflito, fragilidade e instabilidade na África e no Oriente Médio afetam diretamente nossa
segurança e a segurança dos nossos parceiros.
13 As ambições declaradas e políticas coercitivas da República Popular da China (RPC) desafiam nossos interesses, segurança e valores… O aprofundamento estratégico parceria entre a República Popular da China e a Federação Russa e suas tentativas de reforço mútuo para minar a ordem internacional baseada em regras vão contra os nossos valores e interesses.
15 O ciberespaço é sempre contestado. Atores malignos procuram degradar a nossa infraestrutura, interferir em nossos serviços governamentais, extrair inteligência, roubar propriedade intelectual e impedir as nossas atividades militares
20 Empregaremos ferramentas militares e não militares em proporção, forma coerente e integrada de responder a todas as ameaças à nossa segurança da forma, tempo e no domínio de nossa escolha.
49 “A OTAN é indispensável para a segurança euro-atlântica. Garante a nossa paz, liberdade e prosperidade. Como aliados, continuaremos unidos para defender nossa segurança, valores, e estilo de vida democrático”.