Com 90 anos morreu (8 de julho de 2023) o maior especialista da História Medieval de Portugal e que foi catedrático universitário. Tive a dita de o ter como professor e de admirar a sua visão de águia sobre a História e de sentir a sua atitude humilde e reservada como é atributo de gente sábia.
O Doutor Mattoso sabia colocar-se no saber e sentir humano do tempo e reflectir os eventos medievais de maneira a transmitir-nos a cor local e a maneira de ser e de estar do humano na Idade Média, qualidade que falta a muitos historiadores de hoje que transmitem a sua visão histórica mais sobre a perspectiva ideológica.
Dele aprendi também a saber o que é a “cor local da época”. Além de especialista da História Medieval portuguesa, ele também inventariou o Património de Origem Portuguesa no Mundo e empenhou-se na política concreta. Ele não perdeu o seu ideal de 20 anos de monge optando sempre por se dedicar à contemplação da vida.
António CD Justo
Pegadas do Tempo
Coloco aqui uma entrevista muito revelativa dele dada ao Público:
Vamos a algumas datas da vida de José Mattoso. Nasceu em 1933. Entrou para o mosteiro beneditino de Singeverga em 1950. Doutorou-se em História Medieval pela Universidade de Lovaina em 1966. Regressou à vida laica em 1970. Foi Prémio Pessoa em 1987. Dirigiu uma História de Portugal que ainda é uma referência em 1993/95.
Foi professor universitário, dirigiu a Torre do Tombo, tem uma obra extensa. Acaba de ser lançado um livro que tem a sua coordenação sobre a História da Vida Privada na Idade Média. O seu cognome poderia ser: José Mattoso, o medievalista.
Vive numa aldeia de meia dúzia de casas. Cá fora há um azulejo onde se avisa: cuidado com o cão. Um rottweiler parece não fazer sentido no universo quieto, pacífico de José Mattoso. Mas a aldeia fica desviada do mundo, e é preciso precaver os assaltos.
Ao fundo vê-se a A25. A agitação do mundo urbano parece longínqua. Há árvores de diferentes espécies, flores, socalcos, internet e telemóvel. Há uma zona de trabalho rente a uma janela, que é o mundo dele. Há a casa onde vive com a mulher, e que pertenceu à família desta. Falámos de Tchekov durante as fotografias.
Entra uma luz branca, quase de Inverno, pela janela, sob a qual nos sentámos. Pelas cinco, a mulher trouxe chá e bolachas. A entrevista durou mais de duas horas e teve dois tempos: a vida em diferentes capítulos que viveu e alguns dos diferentes capítulos do livro sobre a vida privada na Idade Média que acaba de lançar.
Seria tentador dizer que José Mattoso, o historiador que se especializou na Idade Média, e que um dia foi monge beneditino, nos abriu um pouco da sua vida privada. Mas será que abriu? Quando nos despedíamos, confessou-me que ficara a pensar em muito do que dissera. Mas como se sabe, a vida privada, quem somos em privado, é uma zona obscura e de difícil acesso. Ficámos na antecâmara. Ficámos muito bem.
Este sítio onde vive possibilita-lhe estar mais perto da “espantosa realidade das coisas”(para citar um verso de Alberto Caeiro de que gosta especialmente)?
De certo modo. Permite-me um auto-domínio e uma inserção na espantosa realidade das coisas. Permite-me reflectir. Sou lento na apreensão e expressão verbal, e estar longe da cidade, sem a pressão do tempo e das pessoas, dá-me uma certa liberdade.
É uma procura de quietude, também? Interior, quero dizer.
Ah, sim. Vivi num mosteiro durante vinte anos. Foi para cumprir um desejo e uma tendência que me acompanharam desde sempre. Estava relacionado com a busca de interioridade e do mistério da vida que só se pode alcançar de uma forma meditativa, com tempo. Para os Padres do Deserto, a meditação não é a descoberta do Ser, é a descoberta de Deus. Mas não sei se há grande diferença entre Deus e o Ser. Acho que é na concentração que o homem pode encontrar a verdade das coisas, a natureza, a autenticidade. Aquilo que está por detrás. Um dos textos que estou a ler é uma introdução ao pensamento hindu; os Vedas têm muito essa ideia, de que é na concentração que encontramos a realidade das coisas.
Quando vinha para sua casa deparei-me com uma bifurcação. Há no começo da aldeia uma confluência de caminhos. Como na vida, há que tomar um caminho.
O tal. Os escritores antigos falavam no ípsilon. É um caminho que se divide em duas partes, nós vamos por um lado ou por outro. É uma expressão simbólica, porque na realidade há muitos caminhos. Mas há “o” caminho.
O seu caminho parece errático. Há essa primeira fase no mosteiro, depois há a vida mundana, e depois uma vida em que parece estar novamente exilado, isolado, contemplativo, apesar da intensa produtividade.
Percebi que o mosteiro onde vivia não correspondia à minha concepção de vida monástica e resolvi pedir a dispensa dos meus votos e passar à vida laica. Tive um período de uma certa busca e hesitação, porque tinha que viver. Surgiu a possibilidade de começar a dar aulas na universidade. Passei a tentar encontrar o meu caminho através de uma aplicação das minhas competências. Percebi que podia fazer do ensino da História uma certa realização desse serviço.
Percebeu que a História podia ser um ofício?
Mas não, apenas, como uma forma de ganhar a vida. Para uma grande parte das pessoas, a vida profissional não tem nada que ver com a vida intelectual – vivem isso separadamente. Procurei sempre a integração das duas coisas. De forma a que não me ficasse apenas por um exercício, honesto, da minha profissão, mas por qualquer coisa de profundo. A História é uma boa disciplina para isso porque também fala da espantosa realidade das coisas, do Homem no tempo, fala da sociedade em geral, da relação do indivíduo com a sociedade; é uma via para a compreensão da existência humana. Um pouco como a Filosofia.
O facto de o seu pai ter sido um autor de livros de História, que marcaram gerações inteiras, influenciou-o na escolha da disciplina que usou para ler o mundo, para se integrar no mundo?
Acho que sim. O meu pai gostava muito de História e tinha uma propensão para preferir a Idade Média por um certo romantismo. Pertencia a uma família com tios padres, era uma pessoa religiosa. Isso também me influenciou na escolha da vida monástica. Acontece que me formei em História na Universidade de Lovaina e estudei Idade Média porque [me dediquei] ao estudo da História da minha Ordem Beneditina, que teve o seu esplendor na Idade Média.
Está a dizer que por acaso coincidiu com o período preferido do seu pai, mas que esse não foi o motivo principal, ou sequer o único?
Exactamente. São razões um pouco circunstanciais, que acabam por ter alguma influência nas decisões que se tomam. Tive a sorte de ter um bom professor, um excelente medievalista, e de ser uma área de estudo que não estava devidamente estudada. Pude fazer uma investigação com uma certa originalidade.
Como era o seu pai? Fale-me da relação que tinham.
O meu pai era uma pessoa com uma extrema bondade. Formou-se em Direito, em Coimbra, foi aluno de Salazar. Naquele tempo, à volta de 1911/12, era normal que as pessoas da burguesia escolhessem entre Medicina e Direito. Nunca praticou a advocacia. Tornou-se professor do ensino secundário numa escola industrial e comercial e tinha um grande talento pedagógico. Ainda hoje encontro pessoas que me dizem: “Fui aluno do seu pai”, com ar de quem teve um privilégio extraordinário. Gostava de crianças, de os ver crescer. A sua atitude para connosco (éramos uma família numerosa, oito filhos, cinco rapazes e três raparigas) foi sempre de um grande respeito pelo interlocutor.
Ele contava de ter sido aluno de Salazar? Foi uma experiência marcante para ele? Ele admirava Salazar como homem excepcionalmente inteligente e um grande político, mas desagradavam-lhe a sua frieza e o carácter implacável, manifestado nos exames, na maneira como interrogava os alunos. O meu pai ficou-lhe com um certo medo; de vez em quando sonhava com Salazar, e isso para ele era um pesadelo.
É interessante ter percebido desde cedo que era possível sentir respeito e admiração e ao mesmo tempo temor e repúdio. São sentimentos fortes e frequentemente inconciliáveis. O seu pai ensinou-os de que era possível estar nesta aparente contradição?
Sim. Foi autor de um compêndio que foi expressão da ideologia do regime, era “o Mattoso”, mas tinha amigos de todos os quadrantes políticos, desde comunistas a democratas. Tinha uma grande amizade ao Dr. Fernando Vale, que morreu com cento e tantos anos e que foi um dos fundadores do PS.
É verdade que o pai de Mário Soares era amigo do seu pai?
Era amigo do tio do meu pai, o bispo da Guarda D. José Alves Mattoso. Por sinal, foi o Dr. João Soares que arranjou o primeiro emprego do meu pai. Um trabalho de secretaria no Banco Nacional Ultramarino, em Leiria. Não tiveram relação além desta.
Politicamente estavam em diferentes lados da barricada.
Sim. O Dr. João Soares tinha sido padre, foi ministro dos governos republicanos, foi autor de um Atlas geográfico. O meu pai apontava este Atlas como uma obra muito bem feita e o Dr. João Soares como uma pessoa muito séria.
Como é que o seu pai se transformou no autor do compêndio de História usado nas escolas?
O meu pai apreciava um texto simples, claro, bem redigido. (Foi ele que corrigiu os meus primeiros textos. Para evitar os advérbios de modo, a cacofonia, para a frase ser limpa). O primeiro compêndio que escreveu era uma reformulação de um compêndio escrito por esse tio, bispo. Como tinha um talento pedagógico, queria que fossem livros agradáveis, acessíveis. Creio que também tinha talento como investigador, mas nunca teve possibilidade de o fazer, tirando dois ou três trabalhos mais curtos sobre o conceito de paróquia. Tinha uma certa pena, mas tinha de consagrar todo o tempo ao trabalho que permitia sustentar uma família grande. A ajuda que ele teve (além do trabalho como professor) foram, justamente, os compêndios que escreveu. Que não lhe rendiam uma fortuna.
Estava sempre à secretária a escrever – é a imagem que tenho dele. Tenho uma memória feliz da minha infância.
Que menino foi?
Mimado, não. Tínhamos um intervalo grande (três ou quatro anos) entre cada um de nós. Quando nascia um, o outro já tinha que se arranjar sozinho. Na escola primária, nunca ninguém me acompanhou, fui sempre sozinho. Fui sozinho fazer o exame da quarta classe. O afecto de que era rodeado tinha que ser distribuído por todos. Cada um de nós teve de ser autónomo desde muito cedo. Fui sempre um aluno sofrível. Aluno de doze, treze. Não achava que fosse preciso ser melhor do que isso. Procurava cumprir os meus deveres, fazia os trabalhos de casa antes de ir brincar – portanto, era respeitador das regras. Tinha colegas brilhantes que eram admirados pelos seus companheiros. Nunca senti isso. Tinha uma certa timidez na relação com os meus companheiros.
Nunca sentiu o desejo de ser admirado pelos seus colegas e professores como eram aqueles que eram brilhantes?
Só se fosse um desejo muito reprimido, oculto. Um desejo manifesto, não. Da equipa, gostava de ser um dos membros, sem mais nada. Nunca pratiquei nenhum desporto, não era adepto de nenhum clube de futebol.
Porque é que não procurava sobressair?
Não havia nenhum interesse nisso. Não creio ter sentido nenhuma falta de afecto. Na nossa família cultivámos sempre a atitude de ser cidadãos simples, iguais às outras pessoas. Nunca nenhum de nós quis ser um génio. Nunca nenhum de nós quis ser chefe ou desempenhar funções directivas. A minha mãe também era assim. Gostávamos de cultivar as artes. O meu padrinho de baptismo, irmão da minha mãe, foi o pintor Lino António. Era um artista reconhecido, com uma personalidade fascinante. Também o Lino António não queria sobressair. Não havia a ideia de querer ter um artigo no jornal.
Contudo, é uma família onde várias pessoas se destacam na vida pública.
Mesmo as funções de relevo que fui exercendo, nunca as procurei, nem desejei, e por vezes custava-me desempenhá-las. Penso que há alguma coisa com conotação religiosa nesta atitude – o de querer ser uma pessoa anónima.
Fazer parte do rebanho, e não ser uma ovelha tresmalhada. Ou sequer uma ovelha que se destaca.
Rebanho, não gosto muito da palavra. [riso] Ser incógnito, ser um como os outros. Não gostamos de ter privilégios.
Para perceber ainda da intimidade com o seu pai: quando abandona o mosteiro, o seu pai era um interlocutor preferencial para falar nesses momentos de definição, em que se tomam grandes opções, em que se sente um turbilhão interno?
Para mim, a aprovação dele era fundamental. Mas ele dava-a com espontaneidade.
Teve a sensação de que uma opção sua o desapontou? Ou quando entrou no mosteiro, ou quando saiu. Ou quando casou e teve filhos.
Se desapontou, não senti o mínimo indício desse desapontamento. Pelo contrário. Senti sempre um grande apoio do meu pai para as opções que tomei. Eu sabia que tinha o meu pai do meu lado. Não precisava da aprovação expressa. Precisava da ternura, da compreensão. Não tinha dúvida dessa aprovação, percebe?, desde que a minha opção fosse honesta e digna. Note que eu fui para o mosteiro com 17 anos. A partir dessa altura a minha regra de vida era a do mosteiro. Saí do mosteiro com mais 20 anos em cima. Com quase 40 anos já não se punha a questão da aprovação do meu pai.
Há quem precise dela a vida toda, quem não chegue nunca a emancipar-se em relação à figura filial marcante.
Não sei se está a pensar no velho esquema da morte do pai para nos tornarmos adultos… Fui progressivamente tendo a consciência das fraquezas, das debilidades, dos defeitos do meu pai. Mas isso não alterou em nada a imagem que tinha dele. Não precisei de ter dele uma imagem negativa – pelo contrário. Faleceu em 1975, eu tinha portanto 42 anos.
Saiu do mosteiro poucos anos antes. Foram anos de convulsão. Com a morte do seu pai, fica ainda mais entregue a si. Não tinha Deus da mesma maneira consigo.
Depois do 25 de Abril eu já tinha a minha segunda filha. Era plenamente responsável pelo meu destino. Não se pode falar de desamparo.
Desamparo emocional.
Ah, sim, claro. [pausa] Pois. Acho que na minha família somos muito realistas. Aceitamos o inevitável. Com isto quero dizer que quando o meu pai morreu senti a falta dele, mas integrei isso sem drama.
Tem memória do rapaz que era quando entrou no mosteiro? Ou parece que foi uma outra vida? O que é que imaginava que a sua vida ia ser? Que sonhos é que tinha?
Eu queria ser monge. Ser monge é encontrar Deus. É ter Deus como interlocutor – é evidentemente uma metáfora. Para a vida monástica é também importante a parte da liturgia, de louvor, de cântico, de inserção cósmica. O que eu desejava era isso, mais nada.
Encontrar Deus era expressão de um desejo de paz e de plenitude? Era inquieto?
Talvez fosse exigente. Eu sabia que se arranjasse esse encontro com Deus, encontraria a paz. O rigor com que uma pessoa se entrega à sua vocação pode não ser seguido pelas pessoas que estão na mesma comunidade, que têm uma noção diferente dos exercícios da regra, da disciplina; e que podem seguir as imposições disciplinares de uma forma tíbia, ou que deixam transparecer demasiado as suas manias, os seus desejos.
Ou seja, deixam aparecer demasiado o indivíduo, a sua personalidade.
Sim, é isso. A vida comum é difícil. Numa comunidade de pessoas com temperamentos, idades, formações muito diferentes, é natural que apareçam fricções, desentendimentos, ressentimentos.
Visitei a igreja de São Francisco de Assis, no Trastevere, em Roma, onde está a almofada onde dormiu Assis quando visitou aquilo que na altura era um asilo de leprosos. Comecei por pensar que se tratava de uma escultura com a forma de uma almofada; mas era na verdade um enorme calhau, granítico, que lhe serviu de almofada quando ali pernoitou. Conto isto para falar da ascese de São Francisco, que foi a sua primeira inspiração e atracção em relação à igreja.
Isso faz lembrar aquele passo do Evangelho: “Os pássaros têm os seus ninhos e as raposas têm as suas tocas, mas o filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Suponho que é uma forma concreta de mostrar que São Francisco também não tinha onde reclinar a cabeça. Em vez de almofada tinha um pedregulho.
Procurava para si, na vida monacal, esse rigor no cumprimento das regras e o despojamento absoluto de que Assis era um exemplo?
Nunca tive uma grande propensão para a ascese. Uma pessoa tem na vida demasiadas ocasiões de contrariedade, momentos difíceis, não é preciso acrescentar voluntariamente rigores impostos por si próprio. E também isso o meu pai nos ensinou: que não era preciso mais rigor do que aquele que a vida traz.
Quais foram os grandes rigores, as grandes fracturas da sua vida?
Nesse período em que a minha concepção do monaquismo de contrapôs àquela que era vivida no mosteiro, tive períodos de grande dificuldade. Tinha sido aquela a vida que tinha escolhido, e afinal verificava que não me realizava bem ali… Demorou algum tempo a ser resolvido, anos.
O que é que era mais doloroso?, reconhecer o falhanço de uma opção de vida, o erro?
Eu estava convencido que o erro não estava do meu lado; simplesmente não podia realizá-lo no sítio onde institucionalmente tinha que o realizar. Para permanecer no mosteiro tinha que obedecer às regras e à interpretação das regras que os meus superiores tinham. Punha-se então o problema de saber: se eu saio, o que é que vou fazer? Mas não queria ir muito por esse caminho. São coisas muito íntimas.
Então falemos do livro. O que é que se passa no domínio do indivíduo e da vida privada que depois é determinante para o curso da História?
Uma coisa é a vida privada individual, outra coisa são as concepções da mentalidade dominante numa determinada época acerca daquilo que é privado e público. Nós não quisemos fazer uma história da vida privada em relação a indivíduos. Procurámos descobrir o quadro social, os códigos de comportamento, os costumes.
O livro está dividido em capítulos e aborda questões principais da vida privada, como família, alimentação, vestuário, sexualidade, oração, a relação dos indivíduos com o Estado. Estas áreas não são consideradas habitualmente quando se faz a História centrada nas grandes decisões políticas. Como se grandes decisões não dependessem da petite histoire. É verdade que algumas derivam de motivações mesquinhas e individuais?
Aquele velho problema de cherchez la femme? Sim. Suponhamos que uma pessoa marca um encontro a uma hora e que sucede qualquer coisa e não se poder realizar esse encontro… Isso é o problema do acaso em História, não é tanto o problema da vida privada. É claro que acontece. Por exemplo, no 25 de Abril, a partir dos relatos do capitão Salgueiro Maia percebemos que houve uma sucessão de coisas fortuitas. Mas o que fica para a história não é o fortuito; são as decisões, é o que acontece.
A expressão cherchez la femme foi usada originalmente num romance de Dumas. Para perceber bem um quadro, precisamos de perguntar onde está a mulher da história, onde estão as paixões humanas na dita história?
Esse é um tipo de problemas com que não lido muito no meu trabalho como historiador. Provavelmente porque trabalho na Idade Média, em que não é provável que se encontre na explicação do que aconteceu um facto desse género. Para responder à sua pergunta teria de transpor-me para uma época que não conheço e onde não encontro facilmente exemplos demonstrativos. Na Idade Média, podiam dar-se histórias desse tipo, mas não há registos de factos passageiros, anódinos. Mesmo aquilo a que chamamos historiografia narrativa em Portugal começa com Fernão Lopes, já no fim da Idade Média.
Ao debruçar-se sobre este tema, numa época que há muito estuda, qual foi a maior surpresa?
Encontrei revelações. Um exemplo: numa das Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio, conta-se o seguinte: uma grande dama em Roma enviuvou, praticou incesto com o filho e têm uma criança. A cena apresenta essa dama na corte (não sei se do Papa se do Imperador), o demónio levanta-se e acusa a mulher de ter feito este crime. Ela pede três dias para poder responder à acusação. Volta para casa, reza, e Nossa Senhora diz-lhe: “Não te preocupes”. Vai para a assembleia e o demónio já não a conhece. Torna-se incapaz, portanto, de demonstrar aquilo que tinha procurado demonstrar. A mulher fica livre. Isto é muito surpreendente.
O incesto era já considerado um crime grave?
Foi sempre. Aparentemente, Nossa Senhora protege a pessoa que cometeu o crime. Começando a estudar histórias exemplares daquela época, acabei por perceber que havia certas faltas que mais valia serem escondidas. A própria sociedade tem medo de revelar que elas existem. Nessas histórias, o diabo aparece como acusador, aquele que revela o Mal, o pecado. Isso, creio, está relacionado com o segredo da confissão. A penitência, até ao Concílio de Latrão em 1215, era pública para pecados públicos. Para os pecados privados, se o próprio pecador pedia conselho para reparar a falta cometida, o confessor dava-lhe uma penitência. Se eram coisas ocultas, muitas vezes ficavam sem reparação – pelo menos, sem reparação pública. O estabelecimento, no Concílio de Latrão, da obrigação de os cristãos se confessarem pelo menos uma vez por ano, leva a uma intervenção regular do padre na consciência da pessoa, na revelação dos seus pecados. Dá a impressão que há uma série de reacções contra a aplicação desta prática. Há uma serie de indícios que demonstram a dificuldade com que foi introduzida a confissão auricular, a intervenção da igreja na consciência individual das pessoas.
Como vê, um simples texto, com qualquer coisa de misterioso, leva a esta multiplicidade de leituras e descobertas.
Na introdução ao livro diz que a sexualidade era uma matéria determinante, e não só a sexualidade com fins reprodutores, no estudo da vida privada na Idade Média. Porquê?
É instintivo da parte dos homens e mulheres de todos os tempos ter uma prática sexual isolada, escondida. A sexualidade, como actividade reprodutora, passa-se no espaço privado. A intromissão dos poderes públicos nessa zona é qualquer coisa de anómalo. Essa separação entre público e privado é imprescindível e é clara nessa matéria. Há outras zonas do comportamento humano em que essa separação é menos nítida.
Quando se fala de sexualidade, parece que ficamos todos a olhar pelo buraco da fechadura.
Há essa curiosidade… Curiosidade por tudo o que é proibido, oculto. Mas há grandes transformações nessa área. Quando eu era pequeno não havia nu no cinema. Na arte, sim. Lembro-me, muito novo, de ter ouvido falar na Josephine Baker… A que distância estamos disso! Hoje, quase não há um filme em que não haja uma cena de sexo explícita. O que parecia totalmente impossível há 30 anos tornou-se uma coisa corrente.
O que é que acelerou tanto a alteração dos costumes?
A História pode indicar os momentos chave dessas etapas. Mas a explicação está do lado da Psicologia Social, da Antropologia Cultural. Devem ser os especialistas destas ciências a responder.
Qual é a sua opinião? Não o pergunto ao historiador; e de resto, este não é, nem de longe nem de perto, o período-objecto do seu estudo.
Penso que tem que ver com a limitação da natalidade. Essas técnicas tornaram a sexualidade como qualquer coisa que não era preciso acompanhar de tantos cuidados.
E de tantos véus.
Sim. Isso levou a uma permissividade que resultou nisto. Mas também penso que há uma evidente ausência de códigos restritivos e que o Freud foi muito importante nesse capítulo. Revelou os indícios de pulsões e que a repressão do instinto sexual podia perturbar gravemente a vida psíquica. Essas concepções generalizaram-se e puseram em causa a eficácia e utilidade dos códigos de comportamento sexual.
No livro consta uma iluminura na qual uma mulher surpreende o seu marido numa cena de adultério com uma criada. São comuns iluminuras que retratam cenas assim? À porta dos lupanares de Pompeia havia frescos com a explicitação dos serviços que dentro eram prestados, mas depois parece cair sobre estes assuntos, durante largos séculos, um manto puritano.
Essa iluminura é do fim da Idade Média. Até ao século XIV não encontra facilmente representações do nu. As que encontra são esquemáticas: parecem Adão e Eva, almas do Purgatório, o corpo masculino e feminino são esquemas. Aquelas representações querem dizer que o corpo do homem é ambivalente; ou seja, o homem é homem e mulher, é a Humanidade. Não é a representação do nu no seu aspecto físico. Tem alguma coisa que ver com o cristianismo, que tem uma censura muito agressiva do teatro, dos mistérios, dos jogos olímpicos – contra a cultura do corpo.
Contra a cultura do prazer – é isso que se persegue?
Do prazer, também, sobretudo em Santo Agostinho. Mas é mais contra a corrupção, contra a ausência de restrições. O cristianismo dos séculos terceiro e quarto tem muito que ver com o estoicismo. O estoicismo já condena a depravação moral, o desregramento. O cristianismo não faz mais do que acentuar e generalizar a contenção que já existia.
Em relação à família, à vivência da sexualidade dentro e fora do casamento, caiu um manto puritano, de raiz judaico-cristã; outra coisa é a prática, a vivência à margem da norma.
Há qualquer coisa que nos causa surpresa. É um desfasamento aparentemente enorme entre o ideal e a prática. Nos sermões encontra uma atitude extremamente rigorosa; mas na prática encontra práticas frequentes de infracção. Os trovadores, nas Cantigas de Escárnio e Mal Dizer, têm sexo explícito. Sabemos que houve casos de freiras e padres com filhos ilegítimos – infracção frontal. Então como é que se compreende que exista uma exigência tão grande e uma prática tão [lassa]? A teoria é implacável na sua formulação, não na sua aplicação. Existe a noção clara de que uma coisa é a norma, a outra é a prática e que a prática nunca é determinada por um absoluto. Isto na Idade Média.
Quer dizer que estamos sempre entre duas realidades? A ideal e a concreta.
Isto é muito típico da mentalidade medieval. A posição inflexível da Igreja em relação ao aborto, por exemplo: na Idade Média condenar-se-ia o aborto, mas ter-se-iam em conta as circunstâncias atenuantes e a consideração de uma situação que pode alterar a aplicação da norma.
Como é que a criança era vista, qual era o seu estatuto?
Há muitos textos que mostram sentimentos de ternura para com as crianças, a protecção do fraco, uma noção de lúdico. Muitas cantigas de Santa Maria mostram essa ternura. Creio que é também pela inocência [que elas representam]. Isso tem uma base evangélica, quando Jesus diz: “Deixai vir a mim os pequeninos” ou porque dá graças a Deus, que revelou as coisas aos pequeninos e as escondeu dos sábios.
Quando começou a fazer estudos de História no mosteiro, nessa altura ela era secundária na sua vida. Podia ter acontecido que, ao sair, a História não se impusesse como centro da sua vida, como ofício principal? E nesse caso, porque não outra época?
Podia, mas isso é uma questão teórica. Fui contratado para a Faculdade de Letras e a cadeira que me atribuíram foi a medieval. Já vimos que era uma época privilegiada pelo meu pai e que isso encaminhou as coisas nesse sentido. Eu podia ter estudado a história monástica na época moderna, não é? E tinha muito material para isso. Mas nunca me agradou a interpretação que os monges dos séculos XVII e XVIII deram à vida monástica. Era uma mentalidade barroca, de oratória, de exterioridade, formal.
Interessava-lhe uma concentração…
… naquilo que eu considerava autêntico. E isso encontrei nos medievais. Nas origens encontramos sempre a pureza dos movimentos, a novidade. São Francisco de Assis não fez mais do que isso: o evangelho sem glosa. O evangelho despojado das derivas que foram acontecendo ao longo dos tempos. Para encontrar a autenticidade inicial.
Quando sai do mosteiro e se mantém no estudo da época medieval, persiste num caminho, ainda que de uma forma diferente, numa vida diferente. Podia acontecer que o mosteiro fosse um bloco, um modo de estar no mundo, e na fase seguinte houvesse um bloco diferente e um diferente objecto de estudo.
Nas primeiras aulas de cultura medieval que tive que dar na Faculdade de Letras, percebi que a linguagem simbólica utiliza comparações, metáforas, alegorias, porque lhe permite (ao contrário do caminho lógico e racional, que trabalha por meio de silogismos, e cuja verdade já está contida nas premissas), formas de expressão inesperadas, que não se ficam na superfície das coisas. As coisas têm sempre qualquer coisa que está à primeira vista oculto e que, se nós procuramos, nos revela um aspecto diferente da realidade. Eu tinha de explicar estas coisas aos meus alunos. Mas isto correspondia, ao mesmo tempo, ao que eu queria aprofundar para mim mesmo. A face oculta das coisas.
Lovaina, esse mundo tão diferente de Portugal e da vida no mosteiro, foi uma espécie de face oculta que se revelou?
Fiquei muito entusiasmado com o ambiente internacional que se vivia em Lovaina; tinha alunos de todo o mundo, muitos americanos, ingleses, de países do terceiro mundo, etc. Havia uma grande vivacidade. Eram os anos 60. Vivia-se com uma grande curiosidade e optimismo.Vinham professores de outras universidades, faziam conferências interessantes. Isto contrastava fortemente com o ambiente um pouco beato, conservador da nossa intelectualidade, e particularmente num sector pesado como era a Igreja. A universidade que frequentava em Lovaina era católica e ali encontrei a conjugação entre os valores humanos e uma Igreja que queria construir-se num diálogo fecundo com a modernidade. Para mim havia também o problema da adaptação da vida monástica à actualidade. A História também me dava uma fundamentação para escolher a minha relação com a igreja. Uma Igreja que eu queria que fosse no sentido do Concílio do Vaticano II.
Ou seja, mais próxima da “espantosa da realidade das coisas”?
E não apenas na realidade essencial, mas na realidade do meu tempo, os anos 60, no qual eu estava mergulhado.
Como é que viveu a década de 70, que em Portugal foi tão tumultuosa? E vindo do tumulto que foi o final dos anos 60 na sua vida.
Não fiz parte de nenhum movimento contestatário nem revolucionário antes do 25 de Abril. Tive contactos com os chamados católicos progressistas do grupo do padre Felicidade Alves, com o Teotónio Pereira, Frei Bento Domingues, João Bénard [da Costa], António Alçada Baptista. Antes do 25 de Abril passei umas férias numa acção de alfabetização organizada pelo Graal; conheci nessa altura a Maria de Lurdes Pintasilgo, a Teresa Santa Clara Gomes, o Lindley Cintra (que orientava os trabalhos de alfabetização de um ponto de vista linguístico). A minha atitude face ao monaquismo está também relacionada com isto tudo.
É verdade que tentaram saneá-lo da faculdade?
Fui contratado pela Faculdade de Letras de Lisboa em 1970/71, dei aulas até 1974. Ensinei também Antiguidade Oriental e falei no modo de produção feudal, no modo de produção capitalista na interpretação marxista, apenas de uma forma informativa. (Estou talvez a contar com demasiados pormenores que não interessam…) Fui para a Faculdade de Letras a convite da Professora Virgínia Rau, que não era de modo nenhum uma professora contra o regime, mas que tinha muita confiança nos seus assistentes. Tinha um inimigo dentro da faculdade, o Professor Borges de Macedo, que era muito estreito na sua relação com o regime. Um dia chamou-me ao gabinete dele, quando a professora Virgínia Rau já tinha morrido, e disse-me: “O senhor anda nas aulas a ensinar a teoria marxista”. Deu-me a entender que teria de abandonar a faculdade porque estava a defender doutrinas revolucionárias. Quase mudei para a Universidade do Minho. Entretanto veio o 25 de Abril. O Professor Borges de Macedo saiu da faculdade – não fui eu que saí. Melhor, foi dos saneados. Vivi aquele primeiro ano revolucionário com grande entusiasmo.
Acreditou realmente num amanhã que canta.
De alma e coração! [riso] O primeiro de Maio foi uma espécie de visita ao paraíso. Logo que foi possível, eu e os meus colegas estabelecemos um novo programa de estudos e começámos a fazer seminários de pré-especialização. Enquanto estávamos no domínio pedagógico, tudo correu lindamente. As transformações institucionais é que começaram a criar uma situação incómoda para mim. Porque a UEC (União dos Estudantes Comunistas) concentrou as suas forças na tentativa de dominar a faculdade e muito particularmente o departamento de História. Começou a haver movimentos que punham em causa a competência científica de professores contratados e introduzia professores do Partido Comunista. Embora me desse bem com colegas comunistas, como o Professor Barradas de Carvalho, os estudantes mais zelosos da UEC acharam que eu não era suficientemente entusiasta na minha adesão ao marxismo.
Foi acusado de difundir a doutrina comunista, e depois foi acusado de não ser suficientemente entusiasta da mesma doutrina…
[riso] Começaram a criar-me dificuldades. Tive ocasião de pedir um ano sabático. Foi isso que fiz, trabalhei no estabelecimento do texto do Livro de Linhagens. Entretanto foi fundada a Universidade Nova e o Professor Oliveira Marques convidou-me para fazer parte. Em resumo, foi assim que vivi o pós-25 de Abril.
Ocorreu-me agora a sua passagem por Timor. É como se falasse ainda de uma outra vida, tantos anos depois dessa vida que acaba de descrever do pós-revolução.
Timor aparece da seguinte forma: há um interruptor concreto, que é o facto de ter vivido os acontecimentos anteriores ao referendo para a independência de Timor com um grande entusiasmo. Fui a algumas dessas manifestações. Depois disso, o ministério da Educação do Governo de Guterres pediu voluntários para o ensino do Português em Timor, nos meses de férias em 1999. A minha mulher, que é linguista, ofereceu-se como voluntária, foi aceite, e eu ofereci-me como voluntário também.
Cherchez la femme…
Voilà! A razão porque aderi a este projecto não foi apenas utópica. No fundo, vinha um pouco na linha do Concílio do Vaticano II e de um interesse meu pelos movimentos independentistas em Angola e em Moçambique, pela libertação do colonialismo. Gostei de fazer parte de um grupo que podia ter alguma utilidade na edificação de uma nação nova.
Mais uma vez, é o seu interesse, atenção, estudo nas origens, em qualquer coisa que está a ser construído de raiz.
Nas coisas novas que vão surgindo no mundo – acho que sim. Por outro lado, enquanto estava como director da Torre do Tombo, um ofício da secção de arquivos da ONU pedia ajuda para a reconstituição da documentação timorense em Díli. Aproveitei esse apelo da ONU para ser enviado como cooperante e para tentar ser útil na reconstituição do arquivo de Timor. Eu, que tinha procurado estudar na Idade Média os problemas da identidade, pensei poder contribuir para uma consciência da identidade timorense, que naturalmente tem de ser baseada na História, nomeadamente na história da resistência, que foi o que deu unidade a toda aquela diversidade. Integrado numa acção da Fundação Mário Soares, classifiquei, ordenei e estudei o arquivo da resistência (que estava num abrigo, nas mãos de Xanana). Encontrei elementos suficientes para escrever o livro Konis Santana e a Resistência Timorense.
Foi para Timor quando já não era um jovem. Está sempre pronto a começar de novo?
Enquanto puder.
Porque é que é tão importante não dar nada por adquirido, não cristalizar nas coisas? Ter várias vidas.
Não há nada neste mundo que possa preencher todos os nossos desejos, todas as oportunidades que a vida nos oferece. A vida oferece tantas… Só podemos responder a uma parte muito pequena dessas. Isto é o que me ensina uma reflexão sobre o Ser, uma reflexão sobre Deus, sobre a “espantosa realidade das coisas”.
Nunca deixou de acreditar em Deus? Teve momentos de profunda dúvida?
Não. Simplesmente a minha concepção de Deus foi-se – não sei se é pretensão demais dizê-lo – aperfeiçoando. Foi perdendo os aspectos antropomórficos, os aspectos lógicos. Os Vedas falam na meditação da escuridão que cobre a escuridão. A escuridão é o mistério de Deus, coberta por outra escuridão, e essa se calhar ainda por outra escuridão, e por outra, e por outra. Temos de encontrar o que está por detrás, que nunca é exprimível. Há aproximações metafóricas, metafísicas, conceptuais.
O seu Deus foi perdendo aspectos antropomórficos. Mas isso coincide com o período da sua vida em que mais está entre os homens, no terreno, com a vida de todos os dias.
Sim. A revelação de Deus é feita pelo filho do Homem, pelo filho de Deus. Antropomorfismo centrado na personalidade de Jesus Cristo, nos valores que ele representa, e que podem ser do nível da dignidade, do sofrimento, da abnegação, da confiança, da ternura para com o Pai, na atenção aos pobres, do fascínio pelas crianças. Isto tem alguma relação com aquilo que eu dizia quando falava da nossa família: cada um de nós nunca procurou ser nada de especial neste mundo. Deus revela-se também no homem quotidiano.
Ter constituído a sua família, amar uma mulher, foi uma coisa que mudou completamente a sua vida? É uma dimensão que não estava contemplada nas primeiras opções da sua vida.
Acho que isso se relaciona ainda com essa concepção da Humanidade. O Homem é homem e mulher. O amor faz parte daquilo que completa o homem. Se não existir, é uma mutilação. É uma falha irreparável. A relação entre o masculino e o feminino faz parte disso que estava a dizer – viver várias vidas, haver muita coisa que não se chega a completar.
Tem algum verso de Pessoa ou algum salmo que seja especialmente inspirador para si? Tenho muito pouca memória. Uma das minhas recordações de pré-juventude foi quando o professor de Português quis que os alunos recitassem O Mostrengo do Fernando Pessoa. Não fui capaz de decorar. Mais atrás, numa sessão da catequese, foram escolhidos os meninos que deviam representar alguma coisa no teatro e a mim mandou-me decorar o poema “Portugal é um país à beira mar plantado”. Também fui incapaz. Fui para o palco, atrapalhei-me, não consegui chegar ao fim. Mas há uma coisa com a qual me sinto bem; é aquela gracias a la vida, que me ha dado tanto, que a Joan Baez cantava É isto que sinto.
É cómico que alguém que dedicou a sua vida à história, ao testemunho, não tenha boa memória… É, não sou capaz de fixar datas. Fixo datas quando há uma série delas e entram em relação umas com as outras. Mas nunca sei as datas dos aniversários. Fico sempre muito envergonhado porque me esqueço de dar os parabéns. Quando era pequeno, também não consegui decorar a lista das proposições, das conjunções, as serras de Portugal, os rios e afluentes. Os meus colegas sabiam todos.
Publicado no JN https://www.jn.pt/2043409375/morreu-o-historiador-jose-mattoso/ mas originalmente no Público