BENTO XVI CRITICA OS REPRESENTANTES DA IGREJA CATÓLICA NA ALEMANHA

Além de Funcionários Pessoas de Fé

António Justo

As palavras do Papa emérito, proferidas numa entrevista (“Últimas Conversas”), com o jornalista Tobias Winstel, publicada no ” Herder Korrespondenz„ causaram um certo desconforto e irritação nos meios alemães e polémica na igreja católica.

Bento XVI assumiu um tom surpreendentemente crítico em relação à “igreja oficial” (Amtskirche)  e advertiu para o perigo de uma igreja e doutrina sem fé. “A doutrina deve desenvolver-se na e da fé, não ficar ao lado dela”.

Bento XVI responsabiliza os representantes da Igreja Católica pelo “êxodo do mundo da fé”(abandono da igreja) e lamenta que nos textos oficiais da Igreja só fale o cargo – não o coração e o espírito:  “Enquanto apenas a repartição, mas não o coração e o espírito, falar em textos oficiais da igreja, o êxodo do mundo da fé continuará”. Ele espera “um verdadeiro testemunho pessoal de fé por parte dos porta-vozes da igreja”. Também constata: “Nas instituições eclesiásticas – hospitais, escolas, Caritas – muitas pessoas estão envolvidas em posições decisivas, mas não partilham a missão interior da igreja e assim muitas vezes obscurecem o testemunho desta instituição (1).”

Ao fazer isso, ele critica, indiretamente, também o conflito entre as forças orientadas para a reforma (liberais) e as forças conservadoras. As divergências manifestam-se e são cada vez mais latentes no episcopado e em diferentes grupos de leigos.

Conservadores e Reformadores encontram-se organizados sobretudo nas organizações “Nós somos Igreja” e no “Fórum dos Católicos Alemães”.

“Nós somos Igreja” é uma organização liberal de católicos reformadores, resultante de uma petição (de 2,3 milhões de católicos na Áustria e na Alemanha) para reformas na Igreja e que se formou em 1995; os conservadores, cinco anos depois, organizaram-se no  “Fórum dos Católicos Alemães” (2). Além destas sobressai na opinião pública o grupo reformista de mulheres “Maria 2” e o grupo “O Caminho”.

Já numa entrevista anterior, Bento XVI tinha também questionado o sistema do imposto para a Igreja (3).

Neste contexto, também se distancia da escolha das palavras do seu famoso “discurso de Friburgo”, no qual tinha apelado à “retirada da Igreja católica do mundo” (desmundanização) (4).

Há um receio fundado de os conservadores na Igreja se servirem disto para resistirem à renovação iniciada pelo Papa Francisco.

Enfim, uma questão contenciosa, dado Bento XVI se pronunciar sobre política da igreja. De facto, na Alemanha grupos de católicos conservadores e liberais e bispos conservadores (em torno do Cardeal Woilki) e bispos reformistas (em torno do Cardeal Marx) não são moderados nas suas posições, o que pode não ser benéfico para a Igreja Católica global, devido à influência que a igreja católica alemã tem.   

O Papa emérito, que tinha prometido viver “escondido do mundo”, talvez, como alemão e devido à excitação actual na igreja alemã, se sentisse agora necessitado a proporcionar, aos representantes da igreja alemã e aos organizadores das alas católicas, mais reflexão e a serem “verdadeiro testemunho pessoal de fé”.

No meio de tudo isto, o apóstolo Paulo continua a advertir: «Se um membro sofre, todos sofrem com ele; e se um membro é homenageado, todos se alegram com ele. Vós sois o corpo de Cristo e cada um no seu lugar faz parte dele» (1Cor 12,26-27).

António CD Justo

Pegadas do Tempo

 

  • (1) Pelo que me foi dado observar em instituições da Igreja na Alemanha, admirou-me o facto de a própria Igreja ser tão livre que empregava pessoal  (Caritas) que promovia, a partir dela, organizações políticas contra ela mesma.
  • (2)  Resumindo, Reformadores e conservadores : um e outro movimento são independentes e movem-se, a nível de organização, à margem da Igreja estabelecida na Alemanha. Não pertencem ao Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK), que é o órgão representativo dos católicos reconhecidos pelos bispos (https://www.katholisch.de/artikel/27003-konservative-reformer-ein-blick-auf-die-fluegel-der-deutschen-kirche).

O “Fórum dos Católicos Alemães” quer reformas, mas sente-se como porta-voz de católicos conscientes da tradição. No seu Congresso “Alegria de Fé” de 2019, foi aprovada uma resolução que criticava um “cudgel de ‘politicamente correcto'” em negociações públicas, a “rádio estatal financiada coercivamente” e alegadas sanções para os críticos do governo. O Fórum tem o seu próprio portal kath.net na Áustria, por exemplo, ou o semanário “Die Tagespost” em Würzburg .

O agrupamento „Somos Igreja” sente-se como a ponta de lança daqueles que exigem o pleno acesso das mulheres a todos os cargos, a abolição do celibato obrigatório para os padres, uma moral sexual mais liberal e mais digna dos fiéis. São críticos relativamente aos papas Bento XVI e João Paulo II e vêm agora no Papa Francisco um farol de esperança. No primeiro Congresso da Igreja Ecuménica em Berlim, em 2003, organizaram uma missa católica numa igreja protestante onde os não-católicos foram explicitamente convidados a comungar, o que é oficialmente proibido. Os sacerdotes envolvidos foram posteriormente suspensos.

Com a eleição de Bätzing, para presidente da Conferência episcopal alemã, os bispos confiam na continuidade do curso do Cardeal Marx, bastante liberal que apoia o “caminho sinodal” com o qual a Igreja Católica na Alemanha quer aceitar o seu escândalo de abusos. Os bispos conservadores em torno do Cardeal Rainer Maria Woelki de Colónia criticam duramente este fórum. Baetzing também se pronunciou a favor da reconsideração do celibato obrigatório para sacerdotes.

  • (3)  “Tenho de facto grandes dúvidas se o sistema fiscal da Igreja está correcto como está” (https://www.deutschlandfunkkultur.de/benedikt-xvi-kritisiert-deutsche-kirche-erstaunlich-dass.2165.de.html?dram:article_id=365396).
  • (4)  A palavra “desmundanização” (libertação da Igreja das formas mundanas) indica a parte negativa do processo que me preocupa”, refere o papa e acrescenta que “a parte positiva não é suficientemente expressa por ela”. Trata-se mais de sair das limitações de uma época “em direção à liberdade de fé“. „Não sei se a palavra ” desmundanização”, que vem do vocabulário formado por Heidelberger, foi sabiamente escolhida por mim como palavra de ordem final em Friburgo”, refere ele.
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EU SOU O QUE SOU MAIS AQUILO QUE FAZEM DE MIM

Da Relação e do Relacionamento à Fórmula trinitária como Modelo da Vida

Por António Justo

Hoje gostaria de reflectir convosco a um nível mais profundo de imagens para lá dos bastidores dos preconceitos que nos asseiam e rodeiam.

Paremos um pouco para mastigarmos as nossas palavras e ideias e assim nos deixarmos envolver num mundo de imagens, sensações e analogias que nos levem a intuir algo para lá do discurso do dia a dia e podermos, assim,  entrar numa dimensão, que não se limite à linearidade causal do discurso. Para isso não tropecemos em palavras e deixemo-nos guiar pelas imagens e sensações que em nós surjam (Donde vêm as imagens e os estímulos não será relevante, doutro modo tropeçaríamos no preconceito comum de as materializar e qualificar de diabólicas ou divinas, antes de elas assumirem a propriedade de “pré-conceitos”!) Não se trata aqui de alinhar num sentido ou noutro, mas apenas de sentir a satisfação da ressonância e do eco das palavras e ideias ao serem escritas ou lidas (1). Relevante será descobrir o eco individual e reconhecer, nele, a própria palavra criadora a repercutir-se em novos ecos!

Somos feitos de palavra/informação genética biológico-cultural em processo de contínuas formatações. “No princípio era a Palavra, a Informação” e a Palavra que é autêntica encarna, é fecundante, gera vida, como podemos ver no prólogo do evangelho de João. Através da Palavra, Deus iniciou a criação e através da palavra o humano recria-se a si mesmo e cria o mundo que o envolve, entrando em relação e diálogo com “o outro” na qualidade de pessoa ou de coisa.

Por isso amarro a corda de circo existencial, onde me balanceio, aos extremos do saber e da ignorância. Urge pensar de maneira pessoal e diferente o que a opinião publicada diz e o que a maioria da gente pensa. O pensar normal ou da normalidade serve propriamente os que habitam nos “andares” superiores e ajuda o resto a manter-se na menoridade. Para sairmos do marasmo histórico repetitivo de geração em geração, com as mesmas esperanças e os mesmos repetitivos desenganos, seria de nos pormos a caminho de Deus (um Deus fora do conceito e do preconceito, mas que possibilite o pré-conceito) porque ele é a matriz universal de toda a diferença (e seu sustento no Amor).

Neste contexto seria oportuno fazermos um exercício de limpezas em que nos lavássemos do pó da ignorância, do medo e da culpa. Neste sentido, Jesus diria: desculpo-te, não para olhares para mim, mas para poderes tornar-te realmente tu, para poderes ser livre, como pretende o mistério da salvação.

A palavra pode ser geradora, à imagem do Espírito Santo (manifestação da reciprocidade) que dá forma à relação verdadeira (do “Pai” e do “Filho”). Na palavra vital brilha a luz da existência que leva o humano a um contacto que se expressa em diálogo/encontro (este poderia ser resumido na imagem de uma só chama resultante do encontro de duas velas).  

Todos andamos à procura de sermos nós mesmos mas constatamos que a identidade perfeita não pode ser reduzida ao mero eu (ego) porque este não tem consistência em si mesmo, dado a sua essência ser de natureza comunitária (Eu ao dizer eu, trago a comunidade comigo (“Uno e trino”) e preciso de um tu, para me reconhecer como eu: não posso ser reduzido a uma identidade pensante, mesmo que de natureza espiritual como propunha o grande filósofo Descartes). A palavra (o pensamento) cria a realidade, mas o ser humano é mais do que a realidade que a consciência lhe propõe. Quando digo eu, estou apenas a distanciar-me de um tu ou de um aquilo/isso neutro, de que também necessito para poder subsistir ao tentar de-finir-me. De facto, sem um Tu não pode haver eu (sem Filho não há Pai nem vice-versa). O verdadeiro “lugar do encontro” é a graça, o amor. Na trindade, o nós  seria a divindade comum que se expressa no Paráclito (Amor). O amor é a interacção de corpo e alma e não algo de abstrato como queria Platão; amor encarnado realiza-se no protótipo Jesus Cristo que acaba com a dicotomia corpo e alma querida por Platão. Isso implica a iniciação de uma economia do amor que se torna e possibilita uma matriz amorosa de toda a diferença. Neste sentido será óbvio criar um pensar próprio e de maneira diferente ao que a grande maioria da gente pensa e ao que o sistema vigente recomenda.

A palavra do outro por muito deformada que seja (quando me reduz a coisa, a um isso ou a um aquilo) pode servir como activante, à maneira de fósforo que abre, no eu, um acesso ao fogo do mistério que repousa no mais íntimo do nosso ser. O Pai ao dizer tu, no Filho, não o possui, mas permanece numa relação tão profunda e tão livre que se expressa na terceira pessoa que é o Amor.   A relação de Jesus com o Pai (relação eu-tu) e a relação de Jesus-Cristo com a humanidade (relação eu-mundo) expressam a “existência” de tudo num mistério de relação (produtora de individuação pessoal).

Nas duas relações expressa-se o ser de toda a realidade espiritual e material. O ser e o estar da pessoa no mundo (como no mistério da Trindade, uma pessoa não existe sem a outra e, como tal, para ser verdadeira, terá de ser trinitária, isto é, para ser autêntica terá de acontecer em comunidade; a identidade do “Pai” é impossível sem o “Filho” e os dois subsistem na terceira Espírito Santo). O pai confirma o Filho na sua unicidade e nesta confirmação surge o lugar do encontro dos dois que é o Amor; a Realidade expressa-se como ser em relação (identidade em relação trinitária, revela-se como protótipo da nossa identidade de ser em comunidade). Em Jesus Cristo a realidade abre-se ao vivencial.

Neste contexto penso que o Livro do filósofo Martin Buber, “O Princípio de diálogo Eu e Tu” (Das Dialogische Prinzip Ich und Du) tem muito a ver com a fórmula trinitária (eu-tu-nós) de toda a Realidade, manifestada, de maneira teológica, no mistério da santíssima Trindade.

Quando li este livro, nos meus tempos de estudante, tive a impressão (no eco da minha imaginação) de estar a ler uma abordagem filosófica mas essencial sobre o mistério do Um em três e três em Um, aquele segredo místico que intuía no mistério da relação divina (a trindade que pensava como a fórmula viva de toda a vida e de todo o ser – resumida na relação a acontecer); ela ultrapassa também o dualismo na pessoa de Jesus Cristo, numa relação humano-divina (matéria e espírito) aberta e expandida até ao Cristo Cósmico (termo de Teilhard de Chardin)!

De facto, o que verdadeiramente existe é relação, relação pessoal ou personalizada, o resto é a crosta de que também precisamos para nos expressarmos no estar aqui e experimentarmos sentido na realização do ser. Somos feitos de céu e terra e negar um destes constituintes corresponderia a excluir o outro e na consequência significaria negar-nos a nós próprios (Dito doutra maneira: No texto, que seria do conteúdo sem os signos, as letras-texto? Por mais materiais e inertes que as letras sejam, elas não negam o espírito que encobrem; pelo contrário, possibilitam-no!). Fixar-se apenas numa visão factual seria deixar-se reduzir a texto sem ter consciência do conteúdo ou ideia que ele encobre ou pretende revelar! Aqui nem o preconceito espiritualista nem o preconceito materialista nos leva à frente porque um e outro, na sua unilateralidade, se deixam reduzir a texto (objecto sem conteúdo!)!

Na sua obra (O Princípio dialógico Eu e Tu), donde vou dar relevância a alguns aspectos para entrar numa de meditação, Buber explica que existem basicamente 2 tipos de relações que o ser humano pode ter em si, com o outro e com o seu ambiente. São duas maneiras de ser ou de estar no mundo que podem ser resumidas e expressas pelas palavras básicas “Eu-Tu” (Ich-Du) e “Eu-Isso” (Ich-Es).

Nesse diálogo há a palavra base “Eu-Tu” que estabelece o mundo da relação-encontro e só pode ser usada em relação ao todo (eu e o outro, num certo sentido, um ser em osmose, uma relação apenas para os seres humanos): a verdadeira relação acontece na reciprocidade com o outro. Aí deixa de haver intermediários e interesses, como se depreende da sua afirmação: “Todo o meio é obstáculo. Somente onde todo o meio se desintegrou é que o encontro acontece. Toda a vida real (verdadeira) é encontro”. Sim, porque na realidade, como aprendíamos em teologia, o presente é o que está em acto (kairós): já não espera, só continua…

A outra palavra básica é o par “Eu- Isso” que cria o relacionamento com o mundo da experiência (Eu-Aquilo, quer dizer: Eu e o mundo da experiência; quando digo isso, aquilo, ele, ela, a gente, a relação é indirecta e como tal referida a objectos ou pessoas objectivadas numa “acumulação de informação”).  

De facto, por muito grande que a acumulação da informação possa ser, ela é apenas a parte petrificada (forma) do acontecer em relação (relação eu-coisa, eu-objecto). Todo o mundo experimentado ou explicado passa a acontecer numa relação pessoa-objecto e como tal a ser coisificado (por pensamentos, palavras e obras) e a ganhar sentido a partir do eu. Por outro lado, a verdadeira relação é pessoal e personalizadora, é o universo da relação em acto, em presença (Eu-Tu). Esta seria uma atitude de relação sujeito-sujeito, a outra seria uma relação sujeito objecto; o sujeito ao objectivar passa também a ser objecto, porque se encontra já fora de uma relação integral. Na tentativa de uma compreensão analógica poderíamos ver a relação verdadeira (divina) eu-tu, na concretização existencial humana da relação sexual entre homem e mulher que na sua extravasação amorosa se define a si próprio no reconhecer (encontrar-se como parte do outro num todo) o outro e se recriam de maneira individual pessoal no autodistanciamento que acontece na realização do filho gerado que concretiza a relação integral (eu-tu-nós).

O relacionamento a partir do eu é determinante na medida em que é real, mesmo que o Tu não tenha consciência disso. O meu eu não se deixa reduzir à ideia que um tu faça dele. Daí a intocabilidade da dignidade humana! (Naturalmente esse eu também poderia fatalmente ser constituído sobretudo de texto-pretexto-contexto!)

Deste modo também a palavra Eu passa a ser dupla porque a palavra básica Eu-Tu é diferente da palavra básica Eu-Isso (Aquilo).

A palavra básica Eu-Tu só pode ser falada de maneira integral, com todo o ser (numa relação comunitária) e, como tal, não só com o intelecto; ela é processo relacional (é kairós,  a presença, o momento da relação a acontecer) e como tal não pode ser falada como o é a palavra básica Eu-Isso (Aquilo, Ele, Ela) porque esta não é relacionada ou falada com todo o ser, nem a partir do dentro (ipseidade) do ser e como tal é de caracter narrativo, objectivante.

Na sociedade acontecem diferentes atitudes que se complementam sem se identificarem, e assim andam à volta da relação “eu-isso” (ich-Es) e da relação “eu-tu” (Ich-Du). Aqui vale a pena respirar fundo para intuir o que Buber explica na frase: “com toda serenidade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem”.

Em política há uma relação de interdependência de interesses (um viver no isso/aquilo e com o isso/aquilo) que não expressam uma relação eu-tu (esta é deixada para as relações pessoais (Eu-Tu) e, mesmo aqui, toda a pessoas está condicionada a viver também numa relação “eu-isso”). Neste sentido, Buber fala também da relação da evidência linguística que diz respeito à vida com as pessoas onde se pode dar e receber o Tu.

Há também uma via espiritual de relação que em Buber poderia ser descrita como uma vida com seres espirituais. Aqui “a relação/relacionamento está envolta em nuvens, mas revelando-se, sem palavras, mas gerando linguagem (fala)”. Não percebemos, mas “sentimo-nos chamados a responder, formando, pensando, agindo; falamos a palavra (sagrada) básica com o nosso ser sem poder dizer Tu com a nossa boca”. Com esta expressão poderíamos ser levados a intuir a relação trialógica (Trindade) que acima referi porque ao chegarmos a este nível de relação somos já envolvidos no fundo da própria ipseidade, diria, na tela espiritual base de toda a realidade onde tudo se cruza e encontra em reciprocidade (a culminar numa expressão pessoal em comunidade).

Esta é, certamente, a experiência da sarça ardente tida por Moisés no Sinai; Moisés que na incapacidade de transmitir ao povo, por palavras, a experiência (Eu-Tu) tida com Deus, pediu a Deus para gravar as palavras com fogo nas pedras do decálogo (Aqui dá-se a relação eu-isso que o povo poderia então entender). Aquele fogo da sarça ardente, agora a vibrar nas pedras dos mandamentos já não queimava o olhar do povo mas, por outro lado, levava-o a confundir a experiência interior do fogo com as letras da lei, deixando-lhe ao mesmo tempo a possibilidade de, no âmbito individual, poder fazer a sua a leitura própria, porque, de uma certa maneira, transmitida por Deus e não por uma simples interpretação de Moisés. Aqui, a linguagem procura moldar o pensamento de cada pessoa e a realidade do povo como escolhido. Através da palavra e do diálogo, as pessoas percebem o seu mundo de vida e as contradições a ele associadas.    Santos e os profetas procuram através da fala mudar a realidade do mundo, porque à ideia segue-se a acção.   Também a ciência moderna (pesquisadores do Instituto Max Planck) confirma que a língua e o entendimento estão especialmente interligados. A relação eu-tu, eu-isso são a porta de entrada na Realidade e no mundo que nos circunda.

Nesta ambivalência vai vivendo a fé viva e a fé acreditada. Somos chamados a viver a relação íntima eu-tu (Pai-Filho: Relação na reciprocidade) mas sem menosprezar a relação mais superficial eu-coisa (percepção coisificante e também racionalizante a nível de abstração nas ideias), tendo em conta que na nossa existência (nosso estar aqui) a relação eu-coisa são imprescindivelmente necessárias devido ao condicionamento da nossa natureza humana. A relação eu-tu, diria, eu-Deus, é a relação autêntica que nos possibilita um viver nas e para lá das coisas, um viver que parte do ser-se espiritual a passar-se pelos condicionalismos de sermos também matéria a caminho da sua sublimação/realização no âmbito espiritual, como demonstra o protótipo Jesus Cristo. Se não fosse este condicionamento de estarmos a caminho, teríamos ficado no estado primitivo da animalidade antes da metáfora de Adão e Eva, aquele estado em que vivem o chimpanzé e o golfinho!…

Numa relação eu-coisa (isso) pretende-se saber algo sobre o outro e ao saber estamos a coisificá-lo enquanto que numa relação eu-tu, já não há saber sobre algo ou alguém, é tudo a acontecer não sobre, mas com. A vida Real passa a ser encontro: “Entre Eu e Tu não existe conceitualidade, nem presciência, nem imaginação “, como diz Martin Buber.

Uma coisa é o amor e outra são os sentimentos. Diria que estes são como que a vestimenta daquele; são diferentes vestimentas de um só amor, tal como constatamos nas diferentes cores que revestem o arco-íris! O amor é o fogo ardente a acontecer na sarça. Neste processo o sentimento é como que o calor que se tem do fogo, mas o real é o fogo que existe no fundo da nossa ipseidade e é a sua parte essencial: um eterno amor a acontecer, à imagem de um Sol eterno que tudo ilumina e sustenta, também na nossa crusta a ser cultivada.

António CD Justo

Teólogo e Pedagogo

© Pegadas do Tempo,

  • (1)  O importante é o eco que produz o texto para gerar novos ecos já eles distanciados do texto, lembrando um rio que deixa propriamente de o ser ao transformar-se num delta feito de muitos rios individualizados (por diferentes leitores) que com o seu eco próprio provocam a mudança do leito e da geografia! Leia o texto todo sem se preocupar com alguma imperfeição ou incompreensão que encontre a caminho.
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CAMINHAR ENTRE PROTECÇÃO DA SAÚDE E DA LIBERDADE

Na Tunísia e no Brasil há manifestações contra os governos porque não protegem suficientemente o povo contra o Corona-19.

Na França, Espanha e Itália há manifestações porque os governos se preocupam demasiado com a saúde do povo e abusam com as medidas tomadas.

O problema, por vezes, mais que nas medidas situa-se na arbitrariedade das mesmas!

Uma obrigação de vacinação seria uma intervenção ilícita na liberdade garantida pela Constituição. A política certamente encontra sempre meios de levar mesmo os refractários a vacinarem-se.

Macron, na França quer a obrigatoriedade de vacinação para equipes de enfermagem (pessoal que trabalha em cuidados de hospital, lar de idosos ou similar) . Há medidas precipitadas!

Um exemplo de medidas que não contribuem para uma boa convivência entre os diferentes grupos sociais: Enquanto o tribunal proíbiu uma manifestação de “pensadores laterais” (“Querdenker”) em Kassel, o Christopher Street Day (CSD) com mais de 65.000, é autorizado a manifestar-se em Berlim.

O Estado deveria grantir igualdade de direitos para todos, caso contrário o Estado vê-se confrontado com problemas que ele próprio cria.

Será preciso apostar mais na compreensão das pessoas.

O caminho do meio, cria menos danos.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

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O LÍDER DA “REVOLUÇÃO DOS CRAVOS” MORREU

Otelo Sarava de Carvalho, o mais controverso cabeça do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, morreu no domingo passado (25.07.2021) na idade de 84 anos.

“A revolta quase sem sangue deve o seu nome às flores que a multidão animada pôs nos canos das espingardas dos soldados da revolução” (HNA).

Na altura da morte manda o respeito que se poupe o defunto.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

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ANTISSEMITISMO E EXTREMISMO EM VOGA

Jean-Paul Sartre, no Retrato do antissemita (1945) dizia: “Antissemitismo não é só a alegria do ódio; ele também consegue disposição positiva: na medida em que trato os judeus como seres inferiores e prejudiciais, afirmo, ao mesmo tempo, pertencer a uma elite”(1).

Lamentavelmente, por toda a Europa, assiste-se, atualmente, ao crescimento do antissemitismo, da xenofobia e da intolerância em relação ao outro, ao diferente! O mesmo se poderia dizer em muitos casos de posições de um adepto de um partido em relação ao partido adversário ou em relação a mundivisões diferentes.

Em tempos de crise e de eleições não é fácil argumentar sem generalizar nem demonizar o adversário. Cada um aponta para a parte suja do rosto do outro para com ela distrair e encobrir a parte suja do próprio rosto.

Se cada um reconhecesse esta prática então ninguém seria tão categórico na sua opinião. Então a discussão passaria a ser em torno da resolução dos problemas concretos e não no ataque do adversário de que se usa em proveito da própria identificação!

Nestas coisas, os intelectuais ou multiplicadores sociais, têm muita responsabilidade, especialmente no nosso tempo em que em vez da moderação se espalha a radicalização. Cada qual se encontra absorto nas próprias preocupações, o que nos dificulta ver o que acontece realmente à nossa roda.

Todos trazemos em nós o judeu e a sua sombra; Judeu és tu, judeu sou eu!

António CD Justo

Pegadas do Tempo,

  • (1)   A citação de Sartre em alemão que vi ao visitar um museu em Kassel: „Der Antisemitismus ist nicht nur die Freude am Hass; er verschafft auch positive Lust: indem ich den Juden als ein niederes und schädliches Wesen behandle, behaupte ich zugleich, einer Elite anzugehören.“ Jean-Paul Sartre, Portrait des Antisemiten (1945)
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