(Continuação do texto “Dia de Portugal – Nas Pegadas de Portugal – Romantismo, Diagnóstico e Cura)
António Justo
A crise de hoje é civilizacional, antes de tudo cultural. Ela atinge mais os países da periferia, levados no redemoinho da globalização e propensos a reduzir-se a macacos de imitação. A crise portuguesa é crónica com muitos problemas chocados em casa. A má condução e aplicação da “Revolução de Abril”, com o abandalhamento do espírito português; a traição dos interesses portugueses nas antigas províncias ultramarinas, e um povo continuamente na rua de ouvidos atentos à propaganda dos dançarinos de Abril, tudo isto conduz Portugal à depressão e reata o ritmo da nação ao ideário do jacobinismo socialista do século XIX.
Outrora, o romantismo, cultura também ela de importação tardia, esforçou-se muito por tapar o buraco do racionalismo francês e por salvar o liberalismo dando-lhe uma feição portuguesa. Para tapar os buracos da ideologia dialécticaactual, ainda se não vislumbra nenhum oásis em que os portugueses se reconciliem, na base duma identidade própria. (Naturalmente que Portugal precisa de inovação e de progresso mas não com os extremismos ideológicos e estrangeirados expressos nos barões de outrora e nos boys de hoje!)
Criar uma cultura nacional portuguesa
O fomento duma cultura nacional portuguesa implica mundializar Portugal dado o ideário português possuir um espírito integral global, forjado no cadinho do cristianismo e das diferentes culturas.
Os românticos são escritores em que a dimensão nacional se torna palco e sentido da sua produção literária. Entendem-se como plataforma da cultura e ao mesmo tempo como crítica dela.
Em consequência das invasões francesas, do refúgio da corte no Brasil, do desenvolvimento das lojas maçónicas, ideais liberais, de revoluções e contra-revoluções, muitas personalidades vêem-se constrangidas a emigrar.
O exílio político dos nossos românticos contribuiu para a evolução cultural portuguesa. Emigrantes como Garrett e Herculano, transmitem com autenticidade temas românticos como saudade, isolamento, revolta amargurada e anseio da liberdade. Garrett desabafa perante o estado da nação e os exageros liberais: “Eu do meu pátrio Tejo desejoso / Deixei nas praias desmontada a lira: / Suas águas, já tão puras; hoje envoltas / Em lágrimas de sangue… / …quando a pátria é morta, / Morrem com ela as Musas.”
Também Alexandre Herculano em ‘A Vitória e a Piedade’ (1833) dá expressão à alma portuguesa romântica: ”…E lá chorei, na idade da esperança, / Da pátria a dura sorte: /
Esta alma encaneceu; e antes do tempo / Ergueu hinos à morte…”
No romantismo, o ideal, o sonho, a emoção o sentimento, fazem parte duma mesma paisagem humana e duma natureza comuns. Ele segue uma espécie de panteísmo místico que constitui como que o cenário base para a relação indivíduo – geografia, indivíduo – paisagem, indivíduo – povo numa identidade participada. Quer construir o futuro mas numa unidade de nação e indivíduo num destino comum enraizado no passado mas aberto ao futuro. Ele questiona uma forma de racionalismo vigente para possibilitar a descoberta do indivíduo sensível e livre. Pretende, na procura duma espiritualidade e duma mística que lhe dê um panorama libertador, libertar das amarras político-sociais autoritárias e dum certo moralismo convencional. O status quo ata o povo à melancolia levando-o a refugiar-se em figuras de heróis que contestam a mediocridade do factual e as máscaras duma sociedade artificial que se opõe a uma subjectividade nascente e inconformada com os limites do dia a dia.
Introduzido em Portugal por Almeida Garret com “Camões e Dona Branca” em 1825, o romantismo afirma a emoção e o sentimento, ao contrário do Neoclassicismo que afirmava a razão. O sentimento e a imaginação são guiados pela liberdade com uma referência sempre ligada à terra e ao povo num estilo coloquial e muito natural. Almeida Garrett, empenhado na propagação do liberalismo, proclamava: ”Este é um século democrático, tudo o que se fizer há-se ser pelo povo e com o povo”. Por isso a literatura assume um carácter pedagógico com intenção formativa. Os poetas querem-se com espírito cívico e democrático com uma reflexão fundada sobre a nacionalidade. Sentem-se os continuadores da obra dos padres numa plataforma cívica. Almeida Garrett preanuncia em “Dona Branca” a nova orientação estética. Renuncia à mitologia pagã para afirmar o maravilhoso nacional. O novo altar é o das tradições nacionais. “Professei outra fé, sigo outro rito, E para novo altar meus hinos canto”. Nas suas obras estão presentes as tradições populares, as figuras históricas, o sebastianismo, a rivalidade com Espanha e o ideal cristão evangélico. Garrett também contribui para a restauração do teatro nacional com a sua obra-prima “Frei Luís de Sousa”. Aqui confessa a prevalência da Literatura sobre a História. “Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heredoto; e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade”. Em “Frei Luís de Sousa” assiste-se ao sebastianismo projectado na fidelidade de Maria e de Telmo que se vê representado no regresso de D. João de Portugal, o primeiro marido. À ocupação filipina procura afirmar-se a dignidade nacional preservada num certo sebastianismo.
A revolução liberal de 1820 empenha a intelectualidade portuguesa. Os românticos da primeira geração revelam-se personalidades do equilíbrio não perdendo, no seu entusiasmo iluminista, a perspectiva da paisagem natural mantendo-se com os pés no chão pátrio. Garrett e Herculano fazem parte do movimento revolucionário liberal, contribuindo também eles para a derrota miguelista.
A implantação do romantismo com “Camões” e “Dona Branca” dá-se sob o signo dum liberalismo humano baseado nos valores de liberdade, igualdade e soberania da nação.
Com Herculano surge uma consciência nova duma história crítica mas integral. Alexandre Herculano em “Eurico o Presbítero” torna-se porta-voz dum romantismo liberal conservador e respeitador da tradição religiosa portuguesa, contra o jacobinismo militante e contra o populismo ideológico vigentes. Herculano defende o municipalismo (democracia biotópica e não ideológica) contra o centralismo; ele critica o clericalismo e o socialismo e defende um liberalismo e um cristianismo evangélico como se pode ver no “Pároco de Aldeia”. Herculano luta pela implantação dum liberalismo português e não francês. Ele lamenta que o país viva sem conteúdos culturais profundos e que a preocupação intelectual portuguesa se esgote pois “todos os cuidados estavam aplicados às misérias públicas e aos meios de os remover”.
Oliveira Martins constata também: ”Uma das mais conspícuas aventuras do Romantismo foi decerto a tentativa de criar uma tradição nacional portuguesa…” O romantismo vem tapar o buraco cultural criado por ideologias socialistas não aferidas. Fomenta uma literatura de empenhamento cultural tendente a provocar uma reforma das mentalidades no povo. O problema será o da ideologia e do jacobinismo mais interessados nos dividendos da revolução liberal do que no empenhamento cultural e na transformação do povo.
Assim à geração Garrett/Herculano (1825-1850) segue-se a geração convencionalista dos instalados à sombra dos ministérios e da administração, liderada por Castilho em que, sob o seu mandarinato, se impõe uma literatura oficial. Alberto Ferreira descreve a situação deste modo:”Convulsivamente, o artista aceita o predomínio social e político do barão, cede às prepotências mundanas ou às imposições do público… cada um, mais ou menos, acaba por sucumbir às solicitações e apelos dos instalados, à coacção da mediocridade… O escritor ora cede às imposições familiares ora se deixa absorver pela burocracia estatal”.
Não admira, assim, que, na feitura literária passem a dominar os aspectos formais, e o espírito criativo se esgote na vernaculidade da palavra, na ortodoxia da sintaxe e na correcção métrica. Dá-se o emburguesamento mental e o escritor perde a capacidade crítica, como convinha ao rotativismo partidário da governação.
Depois, a geração de Antero de Quental, com a “Questão Coimbrã”, consegue maior autenticidade e perspectivas de visão. Ele luta contra o mandarinato de Castilho e certas fraquezas ultra-românticas, contra convencionalismos e oportunismos mas desilude-se. O socialismo leviano português não compreendeu, ontem nem hoje, a profundidade do pensamento português de Quental. Quental mata-se desiludido do socialismo e talvez dum Portugal que não aprendeu a entender-se a si mesmo. Um Portugal que, tradicionalmente vai adiando a vida, atraído por ideias de ocasião que as modas políticas vão exibindo.
Como outrora também hoje se precisa de janelas abertas e rasgadas que permitam maiores panoramas à alma portuguesa. Necessitamos, além de fazedores, também de videntes e admoestadores ao serviço de todo o povo português. No deserto de Portugal não chegam as miragens precisa-se também de oásis. O romantismo queria levantar a nação e ao mesmo tempo dar-lhe profundidade com a fantasia e a inspiração, ao contrário do que faziam e fazem os nossos figurinos de casa vivendo da cópia ou do ditado alheio.
Percurso de Portugal previsto já em “Viagens na minha Terra”
António Justo
“Viagens na minha Terra” a obra de Garrett que deveria constituir leitura obrigatória para todo o bom português é uma viagem ao “espaço” português, um espaço polivalente que possibilita os mais variegados trajectos ideológicos. Garrett apresenta nesta obra os diferentes componentes políticos, culturais, históricos e ideológicos em curso. Para ele o povo é puro, autêntico e tem bom gosto enquanto que a sociedade urbana e burguesa é “espuma descorada”, superficial e artificial.
No herói da novela, Carlos, dá-se uma transformação do Homem Natural para o Homem Social. Nas Viagens prevalece a ideia rousseauriana da bondade natural do indivíduo, numa mística cristã e num ambiente idílico longe da perversão social modernista.
As viagens comprovam a crise de valores e a situação político social com os seus conflitos de idealismo e materialismo. Dum lado os ideais do amor pátrio e da arte e do outro o mundo mesquinho utilitário e artificial. Nele se vê o aguilhão da cultura portuguesa no conflito frade – barão. O barão aproveita-se da confiscação dos bens fundiários das ordens religiosas e duma igreja acomodada, originando-se assim uma oligarquia de barões ricos.
As Viagens resumem: “O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha. O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Panca da sociedade nova. Menos na graça… O barão é pois usurariamente revolucionário, e revolucionariamente usurário. Por isso é zebrado de riscas monárquico – democráticas por todo o pelo”.
Os barões de hoje reportam-se aos cravos do seu Abril, vendo Portugal com os olhos colorados de Abril mas não com os olhos de Portugal. Encostados também eles à administração pública e partidária deixam Portugal sangrar. A sua má consciência é branqueada com ideias ou invertida em combates contra redutos cristãos ou contra uma Igreja já não existe, ou à maneira quixotesca com palavras vazias como progresso, inovação, mudança, reformismo. A questão porém não está no ter mas no ser…
Uma coisa é comum ao liberalismo, ao republicanismo e ao 25 de Abril: a desilusão. Nestas três “revoluções” mancharam-se os ideais da igualdade e da justiça. Em “Viagens na minha Terra” constata-se com resignação que a oposição natural ao progresso é constante pois “o mundo sempre assim foi e há-de ser” e verifica-se que os que se apoderam das revoluções se apoderam sempre das instituições estatais. O “status in statu forma-se: ou com frades ou com barões ou com pedreiros – livres se vai pouco a pouco organizando a influência distinta, quando não contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é a oposição natural do progresso…” Os arautos das revoluções tornam-se barões. As revoluções tropeçam nos seus próprios mentores. Certamente por estas razões uma das primeiras acções governamentais de Mário Soares foi reabilitar a Maçonaria.
Na novela, Carlos simboliza o Portugal progressista e Joaninha o Portugal tradicionalista. Carlos representa o conflito ideológico e psicológico com Frei Dinis, seu tio (antigo regime). Ele busca nas novas ideologias, nas lutas liberais o afastamento das suas origens naturais. No seu trajecto, Carlos transforma-se, degrada-se e faz-se barão. Joaninha permanece fiel aos ideais de amor e de autenticidade, de que não abdica e morre doida. Carlos segue a razão e o progresso; Joaninha segue o coração e a tradição.
Já tarde, Carlos escreve a Joaninha, a única com quem ele realmente pode falar abertamente e confessa (e com ele a Revolução): “estou perdido para todos, e para ti também… Estou perdido. E sem remédio, Joana, porque a minha natureza é incorrigível. Tenho energia de mais, tenho poderes de mais no coração. Estes excessos dele me mataram…e me matam”.
Com esta confissão se declara o falhanço do liberalismo português, que foi o falhanço do republicanismo (a primeira democracia portuguesa) e que está a ter continuidade nos indícios de fraqueza crónica da nossa democracia de Abril.
Carlos protagoniza o percurso histórico de Portugal e em especial o do liberalismo e do 25 de Abril.
Uma vez desmistificada a revolução francesa (e ultimamente a Russa) trata-se agora de desmistificar a revolução dos cravos para se poder passar a desmistificar o sentimentalismo português e, na reconciliação de razão e coração, se dar perspectiva à vida nacional e individual abrindo a janela da poesia e da acção no sentido da reconquista de Portugal. Então a literatura, a poesia tornar-se-ão, não em instrumentos ideológicos mas em factores correctivos da política e factor formador do povo, tal como queria o romantismo. Para isso, os conservadores terão de acordar do seu sono deambulatório e os progressistas têm de deixar o seu espírito mercenário, para juntamente descobrirem que o globalismo, a modernidade e a democracia se encontram já nas origens da nação e da terra lusitana e não nas ideologias e modas estranhas.
Há entretanto uma chance que passará pela transformação e integração contínua do nosso ser de Carlos e de Joaninhas sem a perca da própria identidade. Integrar o progresso na tradição e a tradição no progresso, esta deverá ser a missão de governos e de cidadãos. Para isto pressupõe-se uma capacidade de auto-reflexão e de integração e a vontade de se ser povo, de se ser português não abdicando das diferenças e de se ser homem/mulher livre em processo.
António da Cunha Duarte Justo
“Pegadas do Tempo”