Ética e Moral em contexto de Globalismo e Interculturalismo
Moralidade é a resposta a nível de conduta a princípios, valores e regras de comportamento que orientam o ser humano para o bom viver em sociedade no sentido de alcançar a felicidade. A moralidade pode ser entendida como dimensão do ser humano ou como uma forma de consciência. Implica a capacidade de julgar o que é certo e o que é errado independentemente do código moral jurídico ou religioso porque dependente da consciência individual interna.
A ética (filosofia moral) serve-se das diferentes concepções de moralidade para buscar princípios universais que orientem o comportamento humano, no âmbito do certo e do errado e procura estabelecer padrões e princípios de comportamento do bom viver para todas as pessoas.
A moral é mais pessoal e culturalmente circunstanciada, estabelecendo o seu comportamento no âmbito do bem e do mal; centra-se mais nos valores e nas normas, variando de cultura para cultura e de pessoa para pessoa, podendo ser moldada pela educação, experiência pessoal e influências culturais.
A moral secular situa-se fora das tradições religiosas embora integre delas muitos valores secularizados que em vez de assumirem uma relação com Deus buscam a fonte da sua orientação comportamental apenas na razão, na ciência e na legislação estatal. Valores da ética secular: solidariedade, justiça, compaixão, cuidado. Serve-se por vezes práticas budistas como meditação secular para adquirir concentração plena e redução de estresse.
A moral cristã baseia os princípios éticos que orientam o comportamento humano em Deus, na tradição, na razão e no agir de Jesus Cristo. As normas morais cristãs, pelo facto de estarem sujeitas à consciência pessoal de cada um não contradizem o caracter universal da moral apesar do código formal que as envolve (no cristianismo a consciência individual é a soberana). Parte de um só Deus como elo comum de toda a humanidade e em que todo o humano tem a mesma dignidade inviolável baseada na filiação divina independentemente de crença ou descrença.
Neste artigo usarei os termos moral e ética de maneira indiferenciada embora a ética se refira aos princípios/valores gerais e a moral se refira a esses valores aplicados que expressam a sua diferenciação nas diferentes religiões e culturas.
Enquanto a moral secular acentua o falar de valores, a moral cristã acentua a virtude (atitudes humanas), isto é, valores aplicados.
Na procura de distinguir o que é certo e errado a moral secular busca princípios éticos fundamentados na razão, na experiência humana, na ciência e na filosofia. Os seus adeptos fundamentam a sua moralidade em princípios racionais, como a busca da felicidade, o bem-estar humano, a justiça, a igualdade, a liberdade e os direitos individuais. Esta moral vai-se adaptando às mudanças sociais e culturais no tempo e orienta o seu agir a partir das consequências que podem causar.
A ética secular geralmente orienta a moralidade pelas consequências das acções praticadas tendo em vista o caracter utilitário delas. O padrão de orientação para a moral correcta verifica-se nas consequências positivas para a maioria das pessoas.
Na procura de distinguir o que é bem e mal a moral cristã baseia-se nos ensinamentos da Bíblia, na autoridade divina e na tradição da Igreja acompanhada da razão e do Paráclito. Estes fornecem uma base sólida para as normas éticas e dão mais segurança às pessoas e às comunidades por não correrem o perigo de se perderem no abstrato, no geral e no espírito do tempo.
Princípios morais cristãos importantes são o amor a Deus e ao próximo, a justiça, a misericórdia, o perdão, a virtude e a espiritualidade. Jesus Cristo é o movente de toda a vida de um cristão; ele é o protótipo da vida a seguir-se.
Adeptos da moral secular chegam a acusar o cristianismo de ter uma moral absoluta e imutável e como tal não flexível às mudanças do tempo porque baseada nos preceitos da fé. A flexibilidade da moral cristã revela-se no respeito pela consciência individual considerada soberana e pela presença do Espírito Santo como forma de expressar a revelação de Deus a nível individual e no processo histórico. Também a ciência teológica se ocupa das questões de fé ao longo dos tempos em contínuo diálogo com a sociedade e com as diferentes filosofias, servindo-se do instrumento da razão e possibilitando diversidade de interpretações e práticas (a teologia do Espírito Santo possibilita um aferimento de caracter “democrático„ ao desenvolvimento individual e social ao longo da História (a revelação de Deus também através da História).
A moral secular é mais flexível porque mais virada para a mudança reduzindo o espectro da sua ocupação ao utilitário pragmático e funcional sem grande compromisso com o passado sendo orientada para e pelo resultado da acção. Também há muitas sobreposições e influências mútuas entre a moral cristã e a moral secular! Esta surgiu em grande parte daquela. Numa sociedade de caracter globalista e multicultural a moral secular possibilita um diálogo acessível a todas as culturas e biótopos culturais dado empregar a razão na elaboração dos seus princípios. A sua prioridade de acentuação na igualdade, na justiça social e nos direitos individuais fomenta principalmente a igualdade e a justiça social.
As desvantagens visíveis na moral secular devem-se sobretudo à precaridade das suas fundamentações a nível de fontes e de autoridade e a não considerarem a pessoa integral pois deixam fora do seu âmbito questões espirituais e existenciais profundas. O seu campo limitado ao certo e ao errado, obriga a viver-se num processo dialético de debates contínuos e a uma falta de consenso.
A flexibilidade da moral secular pressupõe como consequência o relativismo moral que conduz à atitude de cada cabeça sua sentença e ao possível descrédito de tudo o que é institucional possibilitando um estado cultural confuso e caótico que só viria a servir a institucionalização de um poder autoritário global anónimo preocupado apenas em seguir o espírito do tempo ou em determiná-lo. Por outra parte, em termos sociais, a moral cristã, na sua tendência para se fixar sobretudo na tradição, revela uma certa inflexibilidade perante as mudanças sociais dando a impressão de chegar atrasada na história. A moral cristã, ao não seguir o politicamente correcto e o espírito do tempo, dá mais garantia de sustentabilidade histórico-social por prestar mais atenção ao homem integral, precisando assim de mais tempo para tentar perscrutar os sinais dos tempos.
A consciência secular aspira a bens terrenos relativos a espaço e tempo enquanto a moral cristã é orientada por bens transcendentes e absolutos. O cristianismo ao valorizar a consciência individual como actuante em todas as instituições reconhece a energia da relação pessoal como movente de tudo. Descorou, porém, o empenhamento na formação da consciência laica-social que hoje em política é determinante. Disto se aproveita o socialismo marxista que aposta nas massas dirigidas e no Estado enquanto o cristianismo em termos político-sociais se esvai na pessoa e no povo.
Como se torna hoje muito visível nos temas aborto, eutanásia, gender, ativismo LGBT, etc. a moral secular ao seguir o espírito do tempo (e não tanto a racionalidade) cria leis que provocam tensões sociais por entrarem em conflito com a moral cristã.
A sociedade, porém, precisa de instituições alternativas estáveis não só viradas para o presente e deste modo temperem o encanto do novo e do provisório de modo a garantir mais responsabilidade humana e histórica no desenvolvimento humano.
Mais que fixarmo-nos nas vantagens e desvantagens dos dois sistemas morais importa que se entre num diálogo relacional de complementaridades interinas, pois se a moral secular se baseia na razão e na igualdade, a moral cristã oferece uma base moral sólida e confiável (muito embora mais exigente e idealista). No meio de tudo isto há que ter em conta que a sociedade humana é heterogénea e com diferentes estádios de consciência.
Em termos sociais, ambos os sistemas morais têm suas vantagens e desvantagens e complementam-se. Crenças, valores e contextos individuais e culturais entremeiam-se de maneira a pessoas integrarem elementos de ambos os sistemas no comportamento do seu dia a dia e na própria compreensão da sua moralidade.
A substituição da moral pelas leis tornar-se-ia incongruente porque o direito não tem por natureza algo imanente que o fundamente.
Com a industrialização e depois das duas grandes guerras, a Europa viu surgir grande quantidade de mão-de-obra imigrante para dar resposta às necessidades económicas e ao crescimento industrial.
Limitar a consciência às necessidades primárias é deixá-la à mercê dos ventos sem saber para onde nos levam e facilitar a organização de poderes hegemónicos e formatadores de consciência de caracter anónimo. As necessidades meramente corporais e individuais limitam o âmbito das possibilidades e a necessidade aliada à emoção chega a obscurecer o espírito. Não chega o cogito ergo sum até porque também o cogito pode ser irrefletido e limitado. Freud não chegou a compreender o que era a consciência, mas pôde reconhecer que o inconsciente era o seu outro (lado).
Como as pessoas traziam consigo a sua cultura religiosa específica como forma de identificação surgem na sociedade europeia morais religiosas diferentes, lado a lado. Por outro lado, o globalismo e movimentos ateus, e agnósticos aumentam criando na sociedade a necessidade de criar sistema éticos que vinculem todo o cidadão independentemente das suas ligações religiosas ou não religiosas.
Assim surgem tentativas a nível religioso e não religioso de apresentar valores consensuais de referência com validade para uma sociedade querida multicultural e diversa.
Preocupados com a paz social e em estabelecer plataformas mínimas base de entendimento que possibilitem as diferentes religiões a viverem pacificamente na sua convivência cívica, surgiu a necessidade de se moldar a sociedade com um mínimo de princípios éticos comuns. Dedicaram-se a esta tarefa cientistas e teólogos como Hans Küng que criou a Fundação Ética Mundial (Global Ethic Foundation) que defende valores básicos comuns em todo o mundo, baseados em pontos análogos já existentes nas diferentes religiões. Procuram assim normas e padrões éticos de caracter consensual para um mundo melhor!
As regiões e as culturas andam a diferentes velocidades. Perante a constatação de o Islão se manter por natureza cerrado em si mesmo, surge também a preocupação da criação de um Islão liberal na Europa, missão dificílima atendendo aos condicionalismos impostos pelo Corão + Sharia (preceitos) + os Ahadith ou Ditos e Feitos de Maomé. Em países como a Alemanha criaram-se faculdades de caracter teológico para formação de académicos formados no islão: certamente uma maneira indirecta de formar também imames abertos ao discurso teológico e a uma certa compatibilidade com os valores ocidentais. (Atendendo ao caracter meramente funcional da pessoa no islão, ele é beneficiado pelo socialismo, no discurso público).
Importante é centrarmo-nos na realidade da pessoa humana integral e na situação sociológica do pós-guerra na Europa. Nesse sentido aplicam-se as diferentes disciplinas de antropologia filosófica, a metafísica e disciplinas que dão sentido e complementam com fundamento os diferentes saberes sobre o Homem nos diferentes biótopos culturais, analisando-os a nível das diferentes perspectivas científicas, sejam elas física ou ciências humanas, como sociologia, teologia, psicologia e medicina. Dar uma resposta numa só perspectiva corresponderia, no experimento de uma sociedade multicultural hodierna, a restringir a realidade.
Um Estado de caracter globalista e secular orientado pela economia e pelo comércio sente a necessidade de criar uma ética secular não baseada na crença em Deus nem na religião e substituir para isso a religião pela ciência e Deus pela razão e o humanismo por um utilitarismo mecanicista. Assim, enquanto a moral cristã faz derivar os princípios éticos do evangelho e da razão, a moral secular apresenta princípios éticos reducionistas baseados na razão e na ciência na esperança de com eles criar um elo comum a toda a humanidade.
A razão procura fundamentar valores como dignidade humana, respeito, justiça, compaixão e empatia, baseando-se no direito abstrato de que todas as pessoas são iguais com iguais chances e direitos perante a lei (de notar que já aqui o direito/lei natural contradiz o direito positivo!).
Assim temos o humanismo cristão fundamentado e resumido na Pessoa de Jesus Cristo e na tradição comunitária eclesial e temos o humanismo secular fundamentado na razão e nos interesses da sociedade. A ética cristã é de caracter relacional pessoal (antropológico) de conotação metafísica e a ética secular é de caracter funcional individual abstrato (sociológico) de conotação materialista (sendo o valor da pessoa concebido em função do colectivo).
Representantes da moral secular acusam a moral cristã (ou religiosa) de fundamentar o seu comportamento no medo do castigo divino indo contra a autonomia individual. Isto corresponderia, porém, a abordar a problemática de um modo reducionista porque se uns teriam medo de serem castigados (medo do pecado) os outros orientar-se-iam pelo medo das penalizações previstas nas leis. Nesta perspectiva apologética, tanto a espiritualidade cristã como o idealismo secular fundamentar-se-iam igualmente no medo: no medo do castigo no além ou no medo de castigo no aquém. Os princípios éticos não podem ser reduzidos nem à religião nem à ideologia política, podendo-se, contudo, expressar em diferentes morais e costumes!
Temos a fonte dos valores morais baseados na fé, no amor ao próximo e a crença secular orientada por princípios racionais relacionados com a justiça, a ciência, a psicologia …
Na moral secular prevalece o caracter social político tendo como fulcro e fundamento de tudo o bem da sociedade, a funcionalidade do colectivo (marxismo dialético) enquanto a moral religiosa cristã se orienta sobretudo para o bem da pessoa integrada na comunidade. Na moral secular o centro é a sociedade e a integridade do cidadão vem da sociedade (o cartão do cidadão indica a pertença nacional) e na moral cristã o centro é a pessoa universal, mas numa relação íntima com a comunidade: modelo trinitário do 1=3). Na moral cristã o soberano é o indivíduo e na moral secular o soberano é o colectivo. Em nome da comunidade temos mandamentos e regras e em nome da sociedade temos leis e regras (a diferença essencial situa-se no conceito religioso de pessoa como realidade relacional (veja-se o Mistério da Trindade em que comunidade e pessoa são um e como tal a dignidade humana é parte inerente à pessoa humana), e no conceito moral secular o indivíduo é concebido como caracter funcional e como tal um autónomo mas apenas em função do coletivo (sociedade). Daí os valores serem concebidos na moral cristã ad intra enquanto na moral secular serem considerados ad extra (sistema de princípios éticos baseados em valores providentes da razão, orientados pela ciência e controlados pela lei constitucional. A atitude humana é orientada por princípios, por isso se coloca grande valor na tolerância para com os outros autónomos enquanto a ética religiosa coloca valor na relação amorosa (amor ao próximo) entre todo o humano.
A ideia da moral secular de que atitudes éticas constituem elas mesmas a própria recompensa não tem em conta a natureza humana e carece de sentido que vá além das necessidades individuais e sociais (e como tais limitadas a um tipo de sistema ou regime político-social de mero controlo exterior, na lei). O ser humano passa a ser o fim de e em si mesmo, o que contradiz o desenvolvimento aberto da natureza, pois em toda ela se constata que há um sentido e este se processa de baixo para cima, do simples para o complexo; da matéria para o Espírito e a Páscoa une a matéria ao espírito de maneira sublime; de maneira tão sublime que pode equacionar nela o espírito como origem e fim de todas as coisas (processo este também analogicamente transportável para a física quântica)!
A consciência secular aspira a bens terrenos relativos a espaço e tempo enquanto a moral cristã, de pés na terra, é orientada por bens transcendentes e supremos. O cristianismo ao valorizar a consciência individual como actuante em todas as instituições reconhece a energia da relação pessoal como movente de tudo (teologia trinitária). Descorou, porém, o empenhamento na formação da consciência laica-social que hoje em política é determinante. Disto se aproveita o socialismo marxista que aposta nas massas dirigidas de caracter formatado e no Estado enquanto o cristianismo em termos político-sociais se esvai na pessoa e no povo.
Os arquitetos de uma nova sociedade tentam criar uma supraestrutura comum, mas confrontam-se com uma sociedade multicultural com fronteiras culturais e religiosas e com diferentes medidas do que é certo e do que é errado e do que é bem e do que é mal (veja-se cristianismo, islão e materialismo); além disso, uma certa fixação em contextos antigos pode criar problemas de confronto com as novas maneiras de ser e de estar. Caso semelhante se dá nas diferentes maneiras de ver entre gerações e nas diferentes mundivisões laicas.
A ideia do caminho verdadeiro ou dos iluminados (“Iluminação” de quem se sente superior ou senhor da verdade!) pode causar conflitos e promover rigidez, inflexibilidade e medo ou vergonha no convívio social.
No cristianismo a união de fé e razão na base do amor, como elo de toda a relação que se concretiza na atitude de amor ao próximo, é suficiente para superar orgulhos e sobreposições porque o seu suporte é a humildade na base de uma humanidade de irmãos em serviço dos mais carenciados (Esta atitude mal-entendida levou existencialistas ateus a defenderem os mais fortes criando, em contraposição, a ideia do Super-homem (que no conceito de Jean-Paul Sartre se transcende a si mesmo, vivendo num mundo sem sentido e como tal livre de moldar a própria existência). A Ética cristã supera, porém, os obstáculos que a moral secular lhe quer pôr apresentando-se como superior por pretender dar resposta a uma sociedade pluricultural com a sua moral secular baseada na ideia de razão, empatia, bem-estar e experiência humana. A ética secular apresenta-se como alternativa baseando os princípios morais na razão, na empatia e experiência humana que nas (religiões e mitos foram resumidas em doutrinas. A ética cristã entende toda a realidade como relação e concebe toda a pessoa com dignidade inalienável independentemente da sua origem ou confissão.
O problema poderá surgir no Islão que se considera superior a outras culturas (a nível individual é natural que cada pessoa se identifique com a sua crença seja ela religiosa ou secular). Mas é claro que quer a pessoa secular quer a religiosa tem as suas limitações e riquezas tal como todas as culturas entre si. Para o cristão toda a humanidade é filha de Deus o que se pode verificar na ideia dos cristãos anónimos (os não cristãos) ou dos Cristos abandonados.
A pessoa é mais que a sua convicção ou mundivisão e por isso não pode ser avaliada pela sua simples convicção nem pela sua função social. Os sistematizadores de uma moral secular ficam-se por vezes no abstrato; os princípios que proveem da ética mundana não são consistentes porque se perdem e não geram atitudes, mas ideias ou valores gerais abstratos longe de qualquer comunidade. Em nome de pretender ser uma ética abrangente com princípios racionais para todos numa sociedade de caracter abstrato, julgam-se superiores cometendo o mesmo erro que atribuem aos religiosos com as suas convicções. De facto, a nível objetivo é difícil encontrar-se verdades vinculativas para toda a pessoa dado a certeza pertencer ao âmbito subjectivo.
A ideia da globalização e da moral secular não pode passar por cima dos diferentes “biótopos” culturais nas suas diferentes maneiras de ser, estar, pensar, sentir e agir! Utilizar apenas a razão como medida padrão da pessoa e da sociedade, nas suas inter-relações, seria como querer reduzir as estações do ano a uma só estação e transformar a sociedade como que num planeta com uma só zona climática.
A biodiversidade tem uma correspondência não apenas de caracter analógico na diversidade individual e cultural. A pretensão de querer transformar a sua multiplicidade numa monocultura latifundiária cultural não passaria de um artifício apenas racional com fins utilitários com uma preocupação meramente administrativa. A pessoa humana não pode ser submetida a uma filosofia apenas individualista nem apenas coletivista; a ipseidade é o intermeio das duas.
O fomento da autonomia e da livre vontade, que a moral secular (contraditoriamente) quer ver como propriedade sua, esquece que a pessoa mesmo “autónoma” se define também pelo outro (um tu) e se encontra integrada num meio social e cultural: uma pressupõe a outra. Uma moral secular que diz querer respeitar os valores individuais e suas próprias decisões baseadas no respeito pelos seus próprios valores e convicções, opera de maneira reducionista; fica-se pela confusão do indivíduo com a comunidade sem definir a sua inter-relação constitutiva e transfere apenas o problema da persuasão das comunidades para os indivíduos, mas de maneira a estes em última análise se dissolverem na sociedade como a gota no oceano!
Com a visão unilateral da pessoa humana reduzida à fórmula racional e funcional (mecanicismo) também não resolvem o problema da relação social como acusam a moral religiosa de o não fazer. Não chega uma monocultura da razão, do colectivo, do humanismo e da liberdade como algo específico quando a religião cristã dá resposta a isso através do livre-arbítrio e da pessoa com valor/dignidade única como imagem de Deus; o mais alto grau da dignidade humana radica na qualidade de filhos de Deus (a súmula de todo o ideal quer religioso quer secular!).
A ética secular assumiu da moral cristã (amor ao próximo, compaixão, felicidade individual) valores que designa de amizade, empatia, compaixão e bem-estar. A moral cristã dá mais relevo ao aperfeiçoamento da responsabilidade do comportamento individual e à felicidade individual partindo da felicidade individual para a felicidade social, enquanto a ética secular acentua o caminho inverso do bem-estar e da responsabilidade social (o que corresponde à visão marxista que indirectamente legitima os quadros dirigentes ou o Estado em detrimento das bases “proletárias”). Na ideia da filiação divina do humano e no amor ao próximo (dedicação activa) já se encontra o princípio da dignidade humana, do respeito, da empatia e da diaconia social. Contudo também se verifica que o catolicismo não produz tantas pessoas políticas como o protestantismo ou o islão. Este é um défice que o catolicismo terá de tomar mais em conta no sentido de mais se empenhar a nível político no desenho da sociedade futura (embora toda a instituição represente mais fortemente a masculinidade de uma sociedade de matriz masculina, a instituição por muito que se esforce por fazer uma integração a nível de papeis e funções na sociedade não satisfaz porque carece de uma verdadeira integração do princípio da feminilidade na matriz político-social: neste aspecto, embora a Igreja católica seja o lugar da feminilidade ela contradiz-se a si mesma ao persistir em afirmar a masculinidade dominante na sua instituição).
Uma característica essencial de uma comunidade é o sentido de comunidade; este cria a sua conexão (atitude) vital resultante da experiência e da prática individual no grupo.
A ética secular não responde ao caracter da atitude baseada na virtude e na experiência transcendente comunitária. Exemplos de ética secular na prática incluem direitos humanos, ética ambiental e bem-estar animal. Por outro lado, em nome da multiculturalidade a secularidade procura apresentar as deficiências de ajustamento de comunidades religiosas à sociedade multicultural e por outro lado esquece as próprias deficiências provenientes de uma visão meramente mecanicista e utilitária.
A dignidade humana de filhos de Deus (que transcende toda a subjetividade e instituições humanas) é o fundamento da moral cristã (todos são filhos de Deus) que implementou o humanismo de que o movimento secular se apoderou desviando a sua origem para a razão; a moral cristã ultrapassa essa limitação colocando a dignidade humana como algo inerente a ela devido ao caracter divino inerente ao humano integral não podendo, por isso, ser apenas um derivado da razão.
(A assistência social como hoje a conhecemos deu-se devido à secularização da assistência religiosa em instituições do Estado como derivado da prática das instituições da Caritas e da diaconia na tradição das primeiras comunidades cristãs e da Idade Média. Pouco a pouco o Estado foi assumindo ao longo da História o caracter humanitário do cristianismo. A declaração dos direitos humanos embora seja de caracter universal tem diferentes aplicações e interpretações por exemplo numa Europa e numa Arábia. Não se trata aqui de ver quem descobriu a roda, nem de querer acabar com todos os caminhos anteriores ao pretender tudo coberto pelo alcatrão da razão e da ciência. Dignidade humana, autonomia e comunidade são factores complementares que não se podem colocar uns contra os outros, tal como não se deve afirmar o Estado à custa da religião nem a religião à custa do Estado; a realidade social em que nos encontramos obriga uns e outros a atuarem numa atitude de subsidiariedade e de complementaridade sem se combaterem para assi se iniciar uma cultura de paz.
No cristianismo a dedicação aos precários surge de uma atitude amorosa (caritas) e não apenas da sua dignidade baseada na razão ou em objectivos ligados apenas a sistemas de organização social. O bom trato é independente do status social e se há uma predileção é pelos mais necessitados.
A base da razão e o bem-estar das pessoas não são razões suficientes para dar consistência à moral secular. O razoável mais natural é afirmar a diversidade dos biótopos culturais que na sua realização contribuem para um melhor espelho da felicidade da sociedade e do globo (na natureza e sua paisagem temos um sobreiral ao lado de um pinhal e de um eucaliptal sem que um espaço tenha de negar o outro nem de excluir outros!). No interesse da consistência social e de um futuro diverso e aberto seria de se fomentar a consciência da complementaridade a nível de natureza e das culturas o que corresponderia a ter uma visão a-perspectiva de uma realidade que apesar de tudo caminha na busca do melhor (O cristão diria encontramo-nos com Deus a caminho de Deus). O livre arbítrio pressupõe uma visão não determinista do mundo ao contrário do que certas ciências naturais pretendem.
A razão e o pensamento crítico são instrumentos de grande auxílio nos momentos de se tomarem decisões. Também a ética cristã considera imensos factores, entre eles a razão, na avaliação ou tomada de decisões. Por exemplo a ética cristã mantem a orientação de não julgar definitivamente alguém: assim não se pode afirmar que um assassino cometeu um pecado mortal porque para o qualificar como tal teria de analisar-se a situação, a gravidade do acto, o motivo, a maturidade psicológica da pessoa e depois de tudo isto o decidir de vontade livre praticar o acto na consciência de querer fazê-lo sabendo que é mau.
Não é fácil aproximar-se de uma análise objetiva. Também há preconceitos individuais e sociais que influenciam os processos de decisão. A razão e o pensamento crítico são pressupostos na tomada de decisões sejam eles pessoas cristãs ou seculares. A razão e a ciência não são propriedades laicas nem podem constituir padrão único de análise da pessoa nem da sociedade. A responsabilidade de uma decisão pressupõe também a análise das consequências a nível individual e comunitário. O facto de empatia e compaixão serem qualidades universais independentemente da convicção não as tornam características base de uma sociedade secular pelo simples facto de possibilitarem uma sociedade justa. Querer fazer derivar o respeito e o reconhecimento da dignidade humana da justiça social seria cair num círculo vicioso dado a justiça partir da dignidade e do respeito.
A substituição da divindade pela ciência, como pretende a moral secular, também não é consistente dado a própria ciência estar sujeita a mudanças e à confirmação de hipóteses. A moral profana necessita do Estado e este revela-se de caracter frágil no decorrer do tempo. Os laços de solidariedade e de justiça social são insuficientes para vincular uma consciência, deixando-a presa ao direito positivo variável, e como tal manca no que respeita à motivação e ao compromisso com a justiça e a solidariedade social. Numa sociedade multicultural, fixar-se na narrativa religiosa ou na secular apresenta sempre um risco atendendo às diferentes morais seculares e às diferentes morais religiosas.
A liberdade iluminista e liberalista prevê o indivíduo livre de qualquer imposição alheia, mas um tal ego desvinculado da comunidade não encontra motivação para a solidariedade e para a justiça (ficando presa à nuvem da fantasia). Também uma moral de deveres não motiva suficientemente para o empenho colectivo até porque a justiça plena é totalmente impossível. A tradição cristã acentua a coesão comunitária e a autonomia individual através do livre-arbítrio e da autoconsciência soberana individual (esta é uma maneira realista da relação de compromisso entre o caracter institucional necessário e o indivíduo soberano!).
Na moral secular a pessoa não é propriamente autónoma porque depende do ditado da sociedade. A pretensão de substituir a autoridade pelo direito positivo também ela não evita a tensão e conflito entre os direitos individuais e o Estado de direito.
A autoridade moral não pode ser preceituada e querer baseá-la em estatísticas seria algo aleatório. Garante de sustentabilidade será de respeitar e aperfeiçoar o que a natureza e a cultura original nos deixou como herança e meio de sobrevivência.
Uma moral secular também não se pode aproveitar da ética ambiental e da responsabilidade pela “nossa casa” comum só pelo facto de hoje ter muita aceitação ou para dar resposta ad hoc a um problema. Nem o biocentrismo nem o antropocentrismo podem dar resposta integral pelo facto de serem por natureza sectoriais e os diferentes valores são de caracter transversal em relação a todo o humano, ganhando expressão própria no biótopo cultural que deve ser respeitado.
Observa-se que uma sociedade ao tornar-se multicultural, para se justificar e autoafirmar inclui nela a luta contra a tradição da maioria e contra a tradição servindo-se para isso de um liberalismo maléfico que conduz ao individualismo deserdado. O espírito contemporâneo utiliza para isso a filosofia relativista que privilegia as subculturas minoritárias contra a cultura maioritária (identidade cultural) e contra as suas instituições; nesse sentido afirma-se o relativismo cultural e até o relativismo dos valores em geral e em particular o próprio humanismo; esse relativismo favorece o aparecer de imensos biótopos estranhos ou adversos à cultura maioritária (agendas, ONGs e ideologia marxista); uma vez perdida a cultura perde-se também a sociedade/povo que, na consequência, passaria a ter uma expressão meramente individualizada, caótica e autoritária.
Também na relação geopolítica se observa um fenómeno estranho, mas talvez coerente em si. A sociedade ocidental que se encontra num estado decadente afirma-se aberta no sentido de abdicar dela mesma para fomentar guetos islâmicos dinâmicos e favorecer a matriz marxista socialista. E a nível de política externa fomenta a instabilidade de Estados, apoiando, contra o poder estabelecido, a rebeldia dos diferentes biótopos culturais dentro do país!
Numa sociedade multicultural permanecem por resolver muitos problemas de fundamentação dos valores e práticas morais ou de justificação de direitos.
O ideal seria cada parte, conforme o seu biótopo (habitat) cultural, atuar de maneira complementar interactiva com contribuições próprias no sentido de aprimorar o entendimento social e o respeito mútuo relativamente aos diferentes valores e direitos. Por natureza da pessoa humana a sociedade multicultural terá de viver sempre em situação de luta e compromisso. Para se evitarem sociedades paralelas seria de seguir o princípio natural da integração num processo de aculturação e inculturação que substituiria a multiculturalidade pela interculturalidade e por fim conduziria à assimilação.
No experimento de um mundo a tornar-se multipolar, tanto as morais religiosas como as morais seculares terão de empreender uma relação de convívio harmonioso na consciência de que são membros ou especificidades dinâmicas de um só corpo. Se no passado dominavam as morais religiosas, no presente tende a impor-se uma moral à la carte e, a nível de supraestruturas, uma moral secular materialista de conotação marxista e maoista. O globalismo e uma certa política dirigista da ONU deveriam evitar o estabelecimento de uma monocultura humana e respeitar os “ecossistemas” na sua expressão geográfica, bio-tópica, culturo-tópica e de habitat. Nesse sentido seria de se integrar a nível individual e social o Princípio Jesuíno: a Deus o que é de Deus e ao Estado o que é do Estado salvaguardando a soberania da consciência de cada pessoa sem que esta pretenda exercer a soberania sobre o outro. Pressupõe-se, para isso, o reconhecimento recíproco na base do diálogo e do compromisso, na certeza, porém de que a resposta dada pelo cristianismo como modelo abrangente para toda a humanidade tem um caracter de matriz a não perder.
Na competição de civilizações e culturas, no final, a cultura que respeita e mantém a lealdade a uma tradição dinâmica e à base da sua filosofia (religiões e tradições) afirmar-se-á de maneira sustentável (o liberalismo e individualismo agudo de que hoje padecemos não passará de uma constipação provocada pelo exagero do espírito anglo-saxónico iniciado com a reforma. Tudo cresce de baixo para cima na direção do sol e não o contrário. É por isso que a civilização ocidental, sem renunciar ao que foi alcançado, deve reconhecer o pai e a mãe da sua cultura: o judaico-cristão como mãe e o greco-romano como pai.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo