A VOZ QUE NÃO SE APAGA (1)

Lisboa, dezembro de 2024. No Parque das Nações, onde a Expo outrora prometeu um mundo sem fronteiras, ergue-se agora um cubo de vidro fumado. Dentro, cinco pessoas sentam-se à volta de uma mesa redonda; não há cabeceira, mas o poder sabe sempre onde se sentar.

No centro, um ecrã projecta uma fotografia a preto e branco: homens de uniformes diferentes, chapéus de aço postos de lado, trocam cigarros num terreno de ninguém coberto de geada. O som de Stille Nacht, em alemão e inglês, preenche o espaço, numa gravação memória de 1914. A voz arranha-se na gravação antiga, mas ainda se ouve o impossível: inimigos a tornarem-se homens.

Catarina é a primeira a falar. Tem sessenta e tal anos, cabelo grisalho preso num coque frouxo, mãos que já lavaram demasiadas feridas. Trabalha numa IPSS no Martim Moniz. A cruz que traz ao peito é de madeira barata.
“Eles ouviram qualquer coisa naquela noite. Uma coisa que não estava nas ordens, que não vinha dos generais. Vinha de dentro, da gruta do coração. Cantaram e lembraram-se de que, antes de serem soldados, eram homens, filhos, pais, irmãos.” Catarina faz uma pausa. “Hoje, o Natal é o Continente a bombar músicas em Dezembro. A paz é um anúncio da EDP. A voz do poder aprendeu a falar mais alto do que o coração. E nós? Continuamos a mandar os nossos miúdos morrer longe de casa, agora em missões em defesa da guerra dos outros.”

Tomás Almeida, general reformado, agora é consultor de segurança (que é como quem diz: vende medo por medida), acende um cigarro eletrónico. Sopra vapor para o ar, nem o fumo é sério.
“Bonito, Catarina. Muito bonito, esta de sentimentos. Mas aqueles soldados podiam ter perdido a guerra naquela noite. A paz verdadeira não se canta, constrói-se. Com força, com fronteiras, com quem está disposto a defendê-las.” Com decisão, aponta o cigarro para o ecrã. “São os fortes que determinam os períodos de paz. Aquilo foi indisciplina. Hoje temos drones, vigilância, psicólogos militares. Garantimos que os soldados não fraternizam com quem deve ser abatido.”

Elias é metalúrgico da Lisnave. Tem mãos grandes, nós nos dedos, olhos pequenos, mas atentos. Representa o sindicato na comissão europeia dos trabalhadores do aço.
“O senhor general vê indisciplina. Eu vejo outra coisa: homens que perceberam que estavam a ser enganados. A ganância é sempre a mesma; os ricos mandam, os pobres sangram. Ontem foi na Jugoslávia, no Afeganistão, hoje é na Ucrânia, amanhã é em África, mas o patrão é o mesmo: o lucro. Os mesmos que hoje usam o PIB, suado pelo povo, para comprar morte, em vez de semear vida. E se pegássemos nesse dinheiro todo das armas e o metêssemos em hospitais? Em escolas? Em salários que dessem para viver?”

Ao lado dele, Leonor, de trinta e poucos, jornalista livre que já não acredita em redações, mexe no tablet. A cena de 1914 ganha vida, os soldados movem-se em câmara lenta, partilham chocolate, sorriem.
“Sim, eles foram enganados. O ódio foi a ferramenta; disseram-lhes: ‘Nós somos os bons; eles, os maus’. A mesma narrativa corre hoje, General, nas suas narrativas estratégicas. E se, em vez de instrumentalizar o povo para a guerra, o instrumentalizássemos para a paz? Em vez do serviço militar obrigatório, houvesse um serviço social obrigatório em que cada uma podia exercer o seu serviço onde a necessidade o chamasse. Um ano a construir casas, a ensinar crianças, a plantar árvores. Um ano a conhecer o ‘inimigo’ antes de o matar. Aprender a construir pontes, não trincheiras, a cuidar da terra e não arrasá-la. A voz do povo, quando livre do veneno da propaganda, é a voz de Deus. E Deus, naquele campo gelado, cantou, Noite feliz…”

Tomás riu-se, com um som seco.
“Deus? A voz do povo é volúvel, emocional. Precisa de direção. Sem divisão, sem o “nós contra eles”, não há coesão nacional, não há identidade a defender. O diabo, como dizem, é aquele que divide. Mas às vezes, a divisão é necessária para afirmar quem somos.”

Catarina ergue-se e a sua sombra projetava-se sobre os soldados holográficos.
“Não! O diabo é exatamente aquele que divide para se afirmar! Deus une no canto, no reconhecimento do outro como irmão. Aquele momento de 1914 foi uma brecha no projeto diabólico da guerra. Os comandantes, sim, esses instrumentos do poder distante, apagaram-na. Proibiram a paz. Porque a paz verdadeira desarma os poderosos.”

A quinta pessoa não falou ainda. Rui é historiador, apenas observa. De cabelo desgrenhado, óculos tortos, silêncio de arquivo, representa a memória. Rui toca no tablet e o ecrã muda.
Agora vêem-se telegramas: “Esta fraternização é traição.” “Qualquer oficial que permita contacto será julgado.” E depois, imagens de 1915: a lama, os mortos, o gás mostarda a devorar pulmões.

Ninguém fala, um silêncio pesado cai sobre a sala!

Elias rompe o silêncio, com a voz rouca de tabaco e fábricas:
” Alemães, ingleses, franceses enterraram os mortos juntos, com as próprias mãos. Reconheceram-se ao aceitarem a humanidade comum que os motivava a agir assim. É esse o caminho: Nivelar as trincheiras da Ucrânia, da Rússia, da Europa inteira, e sobre elas erguer torres de paz. Fábricas de esperança.”

Leonor inclina-se para a frente:
“Mas porquê a guerra, afinal? O espírito de 1914 não morreu. “A guerra destrói a esperança antes mesmo de destruir os corpos. Mata o futuro antes de matar as crianças.”

Rui mexe de novo no tablet. Aparecem imagens de agora: manifestações a favor da paz, voluntários de nações inimigas ajudando civis, jovens de ambos os lados de uma fronteira imaginária a plantar árvores juntos. São fragmentos, pequenas tréguas natalícias invisíveis para os grandes noticiários empenhados em justificar a cultura bélica.

Catarina fecha os olhos e começa a cantar, baixinho:

“Noite feliz, noite de paz…”

A voz é frágil, cansada, mas não quebra.

Tomás olha para ela. Quer dizer qualquer coisa, mas não diz. Elias murmura a melodia. Leonor sorri, com os olhos marejados. E Rui, sempre calado, move os lábios.

O Historiador aumenta o volume do canto original de 1914. As duas canções, a do passado e a do presente, entrelaçam-se, criando uma harmonia estranha e comovente. Por um instante, as divisões ideológicas parecem trincheiras a serem aterradas.

A reunião não chega a lado nenhum. As decisões de guerra seguirão o seu curso nos corredores do poder, enquanto o povo não conseguir ter Voz. As armas continuarão a ser vendidas. As guerras terão financiamento. Os discursos inflamados justificando a guerra continuarão a correr nos meios de comunicação e nas redes sociais como veneno doce.

Mas naquela sala, durante três minutos e quarenta segundos, uma verdade ressuscitou: a paz não é um tratado. É um canto: Noite feliz, Adeste Fideles!

É um canto que nasce onde as ordens não chegam e que reconhece no rosto do inimigo o mesmo medo, a mesma saudade de casa, a mesma fome de sentido.

O ecrã apaga-se. A sala fica vazia.

Mas lá fora, no Martim Moniz, um grupo de jovens, portugueses, brasileiros, guineenses, angolanos, ucranianos, russos e iranianos, acende velas. Cantam “Noite Feliz” em quatro línguas ao mesmo tempo. Era um “Noite Feliz” um pouco desafinado, imperfeito, mas sinal de uma imperfeição redentora. É pouco, mas é começo.

A paz é o acto de resistência através da voz humana que se recusa a calar. Resistência pressupõe hombridade e preparação para não se deixar arrastar pelo vento ciclónico militarista que parece até arrancar e arrastar os “cedros do Líbano”.

Dedico este conto:

Ao meu país, que já foi império e hoje mal é casa.
Aos que cantam quando mandam calar.
Ao Natal que ainda pode vir.

António da Cunha Duarte Justo
Lisboa, Inverno de 2024

Pegadas do Tempo:

(1) A Trégua de Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial, onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em partes da Frente Ocidental.
O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e cantaram “Stille Nacht”. Os aliados responderam cantando “Silent Night” em inglês. Encorajados, ambos os lados saíram desarmados para a “terra de ninguém”, onde confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus mortos e até jogaram futebol improvisado.
Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em cartas, diários e relatos dos próprios soldados.
Em outubro de 2024, após milhares de mortos, a guerra na Ucrânia entrou numa nova fase e no que os analistas descrevem como o momento mais perigoso até agora. Esta preocupação que angustia o meu espírito e espíritos atentos motivou-me a fazer este conto.

QUANDO O CANTO VENCEU O CANHÃO (1)

Naquela noite de consoada, a neve não escolheu lado.

Caiu sobre capacetes alemães, sobre botas inglesas, sobre o medo francês e sobre o silêncio russo que ainda não chegara ali. A neve não conhecia fronteiras, nem mapas, nem ordens superiores.

Era a noite de 24 de dezembro de 1914.

Nas trincheiras alemãs, um soldado jovem, de nome Friedrich, começou a cantar. Não cantava por coragem, nem por desafio. Cantava porque já não suportava o ruído da guerra dentro do peito. Cantava porque por baixo da sua farda ainda ecoavam no seu coração os ecos das cancões de natal e na retina a imagem do Anjo que anunciava “Paz na Terra aos homens de boa vontade”:

Stille Nacht, heilige Nacht… (Noite feliz, noite santa…)

A canção atravessou o ar gelado do campo de batalha como uma vela acesa no meio do inferno. Do outro lado, um inglês, o Thomas, reconheceu a melodia antes mesmo de reconhecer o inimigo e também ele entoou.

Silent night, holy night…

As armas hesitaram. O ódio, treinado e ensinado, não sabia o que fazer com aquela língua comum que nenhuma propaganda conseguira destruir.

Os soldados saíram lentamente das trincheiras, como crianças que aprenderam a andar de novo. No terreno neutro, coberto de geada que naquela noite se tornou terreno humano, trocaram pão, cigarros, nomes, fotografias de filhos que ainda não sabiam o que era uma guerra.

Enterraram juntos os mortos.

Foi então que, cem anos depois, Teófilo, um professor desejoso de uma cultura da paz, fechou a página do jornal alemão HNA onde se fazia referência ao acontecimento e suspirou:

“Se eles conseguiram cantar na guerra, por que nós não conseguimos cantar na paz?”

Na sala estavam outros.

Miguel, o sindicalista, apoiou os cotovelos na mesa e protestou:

“Hoje gastamos o PIB em armas que não criam pão. Se distribuíssemos fábricas como se distribuem batalhões, criaríamos riqueza onde hoje só há desespero e nos povos que designamos de subdesenvolvidos.”

“Utopia”, interrompeu Germano, defensor da guerra. “A guerra sempre fez avançar a história. Tecnologia, indústria, poder. Sem conflito, não há progresso.”

A diaconisa Clara, com um lenço simples sobre os ombros, falou baixinho, mas a sua voz atravessou a sala e o olhar de todos:

“O Natal não é progresso. É encarnação. Deus não veio em exércitos, veio na fragilidade. A guerra promete futuro matando o presente.”

Germano riu-se:

“Palavras não detêm tanques.”

Teófilo respondeu:

“Mas canções já detiveram canhões.”

Houve silêncio. Um silêncio frio semelhante ao de 1914.

Clara levantou-se e começou a cantar, com voz trémula:

“Noite feliz…”

Ninguém a acompanhou de imediato. Estavam desacostumados. O mundo moderno ensinara-lhes a gritar, não a cantar juntos.

Mas Miguel, de voz mais forte acompanhou-a. Seguiu-se Teófilo e até Germano, desconcertado, murmurou a melodia que aprendera na infância.

Naquele instante, compreenderam:

a voz do povo não instrumentalizado não divide, une.

E aquilo que divide, mesmo quando se chama progresso, carrega o nome antigo do diabo.

As trincheiras não desapareceram naquela noite.

Mas algo começou a ruir.

Talvez um dia, pensou Teófilo, as trincheiras da Europa, da Rússia, da Ucrânia e do mundo

sejam niveladas não por bombas, mas por vozes.

E talvez, então, a humanidade volte a cantar, não porque venceu, mas porque finalmente aprendeu a viver sem inimigos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Natal de 2025

(1) A Trégua de Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial, onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em partes da Frente Ocidental.

O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas trincheiras com velas e cantaram “Stille Nacht”. Os aliados responderam cantando “Silent Night” em inglês. Encorajados, ambos os lados saíram desarmados para a “terra de ninguém”, onde confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus mortos e até jogaram futebol improvisado.

Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em cartas, diários e relatos dos próprios soldados.

SANÇÕES DE OPINIÃO E LIBERDADE EM BRUXELAS: UM ALERTA

Não estará a UE a preparar os Estados membros para uma Democradura?

A recente decisão (1) do Conselho da União Europeia de sancionar doze cidadãos europeus no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum, incluindo analistas, autores e comentadores públicos, levanta questões sérias que não podem ser ignoradas numa Europa que se pretende humanista, democrática e fundada no Estado de Direito.

As medidas agora aplicadas, congelamento de bens, proibição de disponibilização de recursos económicos e interdição de entrada ou trânsito no território da União, não são meramente simbólicas. Na prática, configuram uma forma de exclusão civil e económica que afeta profundamente a vida pessoal e profissional dos visados. Embora juridicamente qualificadas como “medidas restritivas” e não como penas criminais, o seu impacto real aproxima-se de uma morte civil parcial, decretada sem julgamento penal, sem contraditório prévio e sem decisão de um tribunal independente.

O contexto político não é neutro

A guerra na Ucrânia não surgiu num vazio histórico nem político. Diversos analistas, académicos e responsáveis políticos, incluindo vozes ocidentais, reconheceram ao longo dos anos que o alargamento da NATO para Leste, a instrumentalização política de divisões internas na Ucrânia e a transformação do país num palco de confronto geoestratégico contribuíram para a escalada de tensões que desembocou no conflito armado.

Reconhecer esta complexidade não equivale a justificar a invasão russa, mas sim a rejeitar leituras simplistas que reduzem a guerra a uma narrativa maniqueísta entre o bem absoluto e o mal absoluto. É precisamente este espaço de análise crítica que parece hoje cada vez mais estreito na União Europeia.

Sanções da opinião: uma fronteira perigosa

O elemento mais inquietante da decisão europeia reside no facto de várias das pessoas sancionadas o terem sido não por actos materiais comprovados, mas essencialmente por discursos, análises e interpretações consideradas “alinhadas” com narrativas russas ou classificadas como “manipulação de informação”.

Aqui surge um problema central: quem define, em última instância, a fronteira entre análise dissidente, opinião crítica e propaganda hostil? Quem manipula quem?

Quando essa definição é feita por um órgão político, sem controlo judicial prévio, abre-se um precedente perigoso. A liberdade de expressão, consagrada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deixa de ser um direito fundamental e passa a ser um direito condicionado à conformidade com a narrativa oficial do momento.

Uma comparação desconfortável, mas instrutiva

A comparação com a Inquisição medieval é frequentemente rejeitada como exagerada. Contudo, do ponto de vista histórico-jurídico, ela merece reflexão. A Inquisição, apesar da violência, intolerância e abusos que a caracterizaram, acabou por introduzir, paradoxalmente, elementos processuais como a necessidade de formular acusações, ouvir o acusado e permitir alguma forma de defesa.

No caso das sanções europeias atuais, assistimos a uma regressão inquietante: não há acusação penal formal, não há julgamento, não há defesa prévia. O visado toma conhecimento da sua “condenação” apenas após a sua publicação no Jornal Oficial. A possibilidade posterior de recurso aos tribunais europeus existe, mas ocorre a posteriori, quando o dano pessoal, reputacional e económico já está consumado.

Lições recentes que não deviam ser esquecidas

A experiência das medidas excecionais durante a pandemia da Covid-19 mostrou como, em situações de medo e urgência, direitos fundamentais podem ser suspensos ou relativizados com surpreendente facilidade. O autoritarismo que então foi justificado em nome da saúde pública surge agora sob o pretexto da segurança, da guerra e da luta contra a desinformação.

O denominador comum é claro: a normalização do estado de excepção.

O risco para a Europa

Uma Europa que pune opiniões dissidentes com sanções administrativas de efeito devastador decompõe os valores que proclama defender. A força moral da União Europeia sempre residiu na sua adesão ao pluralismo, ao debate livre e à primazia do direito sobre a conveniência política.

Transformar a divergência intelectual em ameaça à segurança equivale a empobrecer o espaço público e a fragilizar a própria democracia europeia, que, entretanto, se transforma numa democradura. Podemos interpretar a atuação recente das instituições europeias como um passo no sentido de um ‘hiperpresidencialismo’ a nível da UE, em detrimento do poder dos parlamentos nacionais? Seria de questionar a razão porque os Media europeus não tematizam este facto.

Conclusão

Este não é um apelo à defesa de qualquer potência estrangeira, nem à legitimação da guerra. É um apelo à lucidez.
A União Europeia deve combater a desinformação com argumentos, transparência e debate, não com listas negras políticas. Caso contrário, arrisca-se a trocar a sua herança humanista por uma lógica de exclusão que a história europeia conhece bem e que deveria ter definitivamente superado.

A resposta a crises sucessivas (financeira, migratória, sanitária) tem consistido numa transferência permanente de poderes para Bruxelas. Não estaremos a caminho de uma ‘democracia sem escolha’ a nível europeu?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Council Decision (CFSP) 2025/2572 of 15 December 2025 amending Decision (CFSP) 2024/2643 concerning restrictive measures in view of Russia’s destabilising activities

https://eur-lex.europa.eu/eli/dec/2025/2572/oj

QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE

Medo, confiança e o sagrado da infância

O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.

A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.

O medo como experiência originária

Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta e prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.

Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde a fantasia e a realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.

A infância como lugar do sagrado

A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas sim uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.

Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.

Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.

Uma memória: rezar no escuro

Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, eu atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro, devido às sombras, aos ruídos, à imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas e de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.

Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo se mudava: o espaço deixava de ser vazio e o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas eu já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.

São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.

Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.

Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar; funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.

Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida

A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.

Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.

Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.

Quando a confiança desaparece, o medo governa

Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.

Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança e despreza o humano. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.

Acender a luz sem destruir a noite

A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.

A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O FÓSFORO DA IDEIA

A Natureza do Conhecimento

O entendimento não começa com a certeza, mas com uma faísca.
Antes de qualquer verdade se estabelecer, antes de qualquer opinião se formar, há um instante quase imperceptível: o momento em que algo raspa na mente e provoca inquietação. É aí que o conhecimento começa, não como chama plena, mas como fósforo por acender.

Podemos imaginar o processo de compreensão como o acender de um fósforo dentro da cabeça. O gesto inicial é simples, humilde e exige intenção: raspar a cabeça do fósforo contra a caixa. Este raspar é o pensamento, o questionamento, a atenção dirigida. Sem ele, nada acontece. Não há luz, nem calor, nem caminho iluminado.

Pensar, mesmo sem compreender tudo, é um acto precioso. Vivemos frequentemente sob a ilusão de que só vale a pena pensar quando já se alcança a clareza total. No entanto, o “não entender completamente” não é um fracasso: é, muitas vezes, o início do verdadeiro entendimento. Essa primeira ardência, humilde, discreta e até incerta, é o começo da iluminação. A simplicidade do gesto contém já a possibilidade da profundidade.

Da Verdade Exterior à Experiência Interior

Uma ideia pode existir durante anos fora de nós, como um objecto distante, sem que nos transforme. O conhecimento verdadeiro nasce quando uma verdade deixa de ser apenas um conceito exterior e passa a tornar-se experiência interior. Esse momento é de fricção. Algo toca a mente, raspa, incomoda, provoca tensão e daí surge a faísca. Por isso pensar faz doer!

Sem fricção não há ignição. Ideias circulam à nossa volta como pólen ao vento. Muitas nunca encontram um cérebro-gineceu onde possam pousar, germinar e frutificar. Passamos por elas como borboletas de flor em flor, sem consciência de que poderíamos ser abelhas portadoras de vida, responsáveis por prolongar o sentido e não apenas por tocar superfícies.

Ficar “pelo menos a pensar” é já um gesto decisivo. A cabeça que raspa contra o mistério cumpre o primeiro acto essencial do conhecimento. O pensamento não precisa, nesse momento, de resolver tudo. Precisa apenas de estar acordado.

As Etapas do Entendimento

O processo do entendimento segue uma ordem quase orgânica:

Primeiro pensamos; aqui a mente questiona, hesita, procura.

Depois somos tocados; este é o momento em que o coração começa a reconhecer o sentido.

Por fim somos transformados; aqui chega o momento em que o corpo inteiro se orienta para a ação.

A compreensão plena não é apenas intelectual; é existencial. Quando a chama desce da cabeça ao coração, o conhecimento deixa de ser informação e torna-se orientação. Passa a aquecer, a mover, a comprometer.

Para que isso aconteça, é necessário um estado interior particular: abertura, acolhimento e vigilância serena. Uma atenção que observa sem se deixar enredar, que regista sem se perder, que permanece desperta ao novo, ao inesperado que chega para nos transformar.

Essa vigilância não é passividade, mas preparação activa. É uma atitude espiritual e psicológica profunda: a capacidade de esperar no escuro, de escutar sinais interiores, de não se deixar adormecer pela distração constante nem pelo ruído do mundo. Tornar-se sentinela de si mesmo é talvez uma das tarefas mais urgentes da consciência contemporânea e da consciência individual no momento em que o Zeitgeist quer fazer das pessoas meros egos, meras peças de uma máquina anónima.

Parábola do Conhecimento inspirada na Caverna de Platão: A Sala das Sombras

Conta-se que um grupo de pessoas nasceu e viveu toda a vida numa grande sala circular, iluminada apenas por uma fogueira no centro. À volta da fogueira passavam, invisíveis, objectos e figuras que projectavam sombras nas paredes. As pessoas aprenderam a nomear essas sombras, a discuti-las, a discordar sobre elas e até a lutar por saber qual sombra era a verdadeira.

Um dia, uma das pessoas começou a sentir desconforto. As sombras já não lhe bastavam. Algo lhe raspava a mente. Sem saber porquê, aproximou-se da fogueira e sentiu o calor directo pela primeira vez. Doeu. A luz cegou-a. Durante algum tempo pensou que tinha cometido um erro. Apesar disso persistiu.

Ao sair da sala, descobriu o mundo exterior. Percebeu então que as sombras eram apenas reflexos imperfeitos de algo maior. Quando voltou para contar aos outros, muitos não acreditaram. As sombras continuavam claras demais para serem postas em causa.

Aquele que saiu não trouxe certezas absolutas, trouxe consciência. E compreendeu que o conhecimento não nasce da comodidade da sombra, mas da coragem de raspar o fósforo, suportar a luz incerta e permitir que a chama transforme não apenas o pensamento, mas todo o ser.

António da Cunha Duarte Justo

Nota do Autor

O mundo não se transforma quando nos oferecem a luz, mas quando aceitamos o desconforto de a procurar.

As sombras não são o problema; o perigo está em nunca as questionar. Toda a verdade começa como inquietação, como um fósforo ainda por acender que pede apenas atenção e coragem.

Pensar, mesmo sem compreender tudo é já sair da caverna.
A faísca nasce na cabeça, arde no coração e só se torna verdadeira quando aquece o corpo inteiro e o move à ação.

Por isso, ninguém ilumina o caminho de outro por completo. Cada ser humano tem de raspar o seu próprio fósforo contra a caixa da realidade e aceitar que, no início, a luz fere antes de esclarecer. Mas é essa breve dor que nos salva da longa noite da ilusão. Processo igual dá-se no acto da mãe que dá à luz!

Pegadas do Tempo