O OCEANO EM NÓS

O Panenteísmo cristão e a Trindade como Fórmula da Realidade

A questão sobre a relação entre Deus e o mundo atravessa séculos da filosofia e da teologia. O panteísmo propõe uma resposta radical: “Deus é tudo e tudo é Deus”. Mas essa solução apresenta dificuldades: se tudo é Deus, até o mal e a injustiça não teriam realidade própria, seriam apenas expressões do divino. Também a singularidade humana seria dissolvida, reduzindo-se a uma gota indiferente de um oceano infinito, o que contraria a experiência cristã do pecado e da redenção.

O panenteísmo cristão oferece uma via alternativa sustentando que “tudo está em Deus, mas Deus é maior que tudo”. Assim, a criação participa de Deus, mas não o esgota, o mal é reconhecido como real sendo divinizado, e a pessoa humana conserva a sua identidade e liberdade. O cristianismo dá a esse princípio uma expressão única ao interpretá-lo à luz do mistério da Trindade.

Cristo e o Espírito: mediações da presença divina

O cristianismo não afirma apenas que o mundo está em Deus, mas que Deus entrou no mundo: o Filho (Cristo) encarnou, unindo humanidade e divindade “sem confusão nem separação” (Concílio de Calcedónia, 451). Ele é o Logos eterno por quem tudo foi criado e que, na encarnação, religa criação e Criador. Essa união indica que a criação pode ser elevada à comunhão divina sem perder a sua integridade.

O Espírito Santo, por sua vez, habita a criação, “renova a face da Terra” (Salmo 104,30) e conduz todas as coisas ao seu cumprimento. Moltmann lembra: “Deus não anula o ser humano na sua liberdade, mas confirma-o na comunhão com Ele” (Moltmann, Deus na Criação). Ele é a presença de Deus que sofre com o mundo e transforma-o por dentro.

O Pai, fonte e horizonte de tudo, mantém a transcendência e garante que o mundo não se confunda com o Criador. Assim, a criação não é absorvida, mas chamada à comunhão.

Ecos panenteístas na tradição cristã

Vários pensadores cristãos, em épocas diferentes, desenvolveram uma visão próxima do panenteísmo:

Máximo, o Confessor (séc. VII) via cada criatura como portadora de um logos enraizado no Logos eterno (Cristo). Para ele, a história culmina na recapitulação de todas as coisas em Cristo, uma deificação (theosis) que preserva e plenifica a criação.

Teilhard de Chardin interpretou a evolução como movimento cósmico em direção ao “Ponto Ómega”, Cristo, no qual tudo se integra sem perder identidade.”

Jürgen Moltmann descreveu em Deus na Criação, a criação como “morada da Shekinah”, o espaço em que Deus habita e sofre com o mundo, prometendo a sua renovação.

Raimon Panikkar formulou a visão cosmoteândrica, onde Deus, cosmos e homem existem em relação inseparável. Para ele, Cristo é o arquétipo dessa união não-dual, em que nada se dissolve, mas tudo se integra.

Todos, à sua maneira, convergem para a intuição central: Deus envolve o mundo, mas não se confunde com ele.

A Trindade como fórmula da realidade

O mistério da Trindade oferece a chave interpretativa mais profunda. Deus não é solidão indiferenciada, mas comunhão eterna: o Pai gera o Filho, e ambos dão origem ao Espírito. O ser divino é relacional por essência.

É justamente isso que distingue o panenteísmo cristão do panteísmo. No panteísmo, a gota perde-se no oceano. No panenteísmo trinitário, a gota permanece gota, mas vive em comunhão com o oceano. Cada pessoa é preservada na sua dignidade, chamada ao amor e à responsabilidade.

Esta visão tem implicações éticas e espirituais:

A pessoa humana não é ilusão, mas portadora de valor absoluto (dignidade soberana); a criação não é descartável em mera aparência, mas espaço da habitação divina e o mal não é ignorado, mas realidade a ser vencida na história.

Assim, a Trindade aparece como a chave de leitura da existência: a “fórmula da realidade” que sustenta o mundo, valoriza a pessoa e uma comunhão que tudo explica e integra, orientando a história para a plenitude em Cristo, sem dualismos maniqueus e sem dissolução panteísta.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil. O que mais preocupa não é só o crescimento: é o facto de que, ano após ano, a sociedade se habitua à estatística e não se indigna como deveria.

A realidade portuguesa

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1).

Um problema global, não apenas alemão ou português

Ainda que estes números se refiram especificamente à Alemanha e a Portugal , é fundamental sublinhar que o abuso sexual infantil é uma realidade mundial. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 5 mulheres e 1 em cada 13 homens afirma ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante a infância.

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado.

A cegueira da sociedade e a responsabilidade dos media

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas.  Muitos casos de abuso sexual com crianças dão-se no ambiente familiar e de amigos. É mais fácil fingir que não vemos. É mais cómodo acreditar que são “casos isolados” e não um fenómeno estrutural.

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores. Cada omissão, cada desvio de olhar, cada desculpa serve de escudo para que crimes continuem a ser cometidos.

Também o jornalismo não pode fugir à sua responsabilidade. Com demasiada frequência, a cobertura mediática do abuso infantil transforma-se em mais uma notícia de choque que dura 24 horas e desaparece no rodapé. O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação. O resultado é uma sucessão de títulos que chocam, mas pouco transformam.

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos.

Uma questão de dignidade e urgência de uma mudança

O combate ao abuso infantil não se resume a estatísticas nem a reportagens esporádicas. É preciso investir em mecanismos de prevenção e de denúncia eficazes e acessíveis, em programas de educação que ajudem crianças a reconhecer situações de risco, e em apoio psicológico que não revitimize quem já sofreu.

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares.

Enquanto a sociedade preferir olhar para o lado e continuar a tratar o abuso sexual infantil como uma vergonha escondida em vez de um crime hediondo a ser combatido, estaremos todos, sociedade, política e comunicação social, a falhar com aqueles que menos se podem defender. Precisa-se de uma mudança de consciência colectiva. É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O número, porém, vai muito além das estatísticas policiais. O mesmo estudo do INE estimou que cerca de 176 mil adultos entre os 18 e 74 anos sofreram abuso sexual antes dos 15 anos. Destes, mais de 70% nunca falaram com ninguém sobre o que aconteceu; apenas 6,6% chegaram a recorrer a entidades oficiais.

“Os números mostram que continuamos a ter um problema de subnotificação gravíssimo. A criança muitas vezes não encontra um adulto em quem confie para revelar o que sofreu”, afirmou a diretora executiva da UNICEF Portugal, Beatriz Imperatori. Segundo estatísticas policiais (INE): Em 2024, registraram-se 3.237 crimes contra menores, com 1.041 denúncias de abuso sexual infantil (32,2%) e 1.033 casos de violência doméstica (31,9%)

Cerca de 176 mil pessoas entre 18 e 74 anos relataram ter sido vítimas de abuso sexual na infância (até 15 anos); entre as mulheres, prevalência de 3,5%; homens 1,1% ine.ptDiário de Notícias.

A UNICEF Portugal calcula que até 140 mil crianças podem ser vítimas de abuso sexual infantil, segundo projeções com base nos dados da OMS Observador.

Portugal está entre os piores da Europa em proteção jurídica às vítimas. Os prazos de prescrição são considerados inadequados, comparativamente a países com medidas mais protetivas ObservadorExpresso.

 

LIDERANÇA ENTRE EGOISMO E ALTRUÍSMO

Liderar é caminhar na Corda bamba entre o Eu que se afirma e o Nós que se constrói

Do eterno diálogo entre o “eu” e o “nós”  (entre o eu e as circunstâncias) nasce a tensão que marca toda a vida em sociedade: a relação entre quem dirige e quem segue, entre o indivíduo que se afirma e a comunidade que procura dar consistência ao caminho. É dessa tensão que surgem os líderes, chamados a representar o coletivo perante cada pessoa, e a oferecer uma visão orientadora que tanto pode abrir horizontes como impor limites.

A liderança nunca é neutra. Implica sempre um certo sofrimento, individual e comunitário, porque o líder (a instituição) canaliza as energias dispersas dos indivíduos para metas comuns, muitas vezes mais elevadas, como se fossem etapas de uma peregrinação. Mas esse movimento traz também uma sensação de falta original expressa entre o tudo que o inconsciente comporta e a inevitável limitação da sua concretização nos passos individuais.

É nesse espaço de tensão, entre liberdade pessoal e pertença coletiva, que se treina a arte de liderar.

A vida não é um destino fixo. É um processo em curso, um diálogo contínuo entre o eu que somos e as circunstâncias que nos moldam. Desde que o ser humano tomou consciência de si – como expresso no relato bíblico de Adão e Eva – nasceu uma tensão inevitável: afirmar-se sem perder o vínculo ao coletivo (a Deus). Daí brotam a comunidade, a história e as instituições que tanto nos apoiam como nos condicionam.

É esse movimento que nos arranca da fusão com a mãe ao cortar o cordão umbilical. Primeiro, descobrimos o eu. Depois, reconhecemos o tu. Só então nasce o nós, que dá origem à comunidade e à história. Esse desenvolvimento podemos observá-lo resumido nas fases de desenvolvimento da criança que ao tornar-se pessoa se revela o cosmos em miniatura e resumo da história humana.

A história não é dos Neutros nem é dos Tímidos

A História raramente recorda o povo anónimo e os hesitantes. Exalta a memória da ousadia dos vencedores e o arrojo dos que avançam. Daí a tentação de acreditar que egoísmo e temeridade são virtudes sustentáveis. Mas a própria natureza desmente essa leitura simplista pois regista duas forças complementares: a afirmação dos mais fortes e a colaboração entre os mais fracos que se unem em grupo e colaboram, para conseguirem equilibrar o poder dos mais fortes.

O olhar humano procura sempre uma luz exterior. Por isso deixamo-nos guiar, com frequência, por aqueles que conseguem a dianteira e assumem o papel de líderes. Aquele que tem um objectivo na vida consegue mais facilmente arranjar o caminho para chegar lá.

A Coragem e a Escuta

Liderar exige coragem para romper barreiras e ousadia para inovar. Mas um verdadeiro líder sabe também parar, escutar e deixar que a mudança respire. Liderança não é apenas avanço, é também discernimento: o egoísta teme perder, o altruísta teme não servir, mas só o sábio reconhece que nenhum deles pode liderar sozinho.

Hannah Arendt lembrava: “O poder só é efetivo enquanto os homens se mantêm unidos.” O equilíbrio entre afirmação pessoal e serviço ao coletivo é o que transforma autoridade em liderança genuína.

Liderar não é desconstruir

O mundo não se divide em preto e branco. Liderar não é apenas derrubar o que já não serve. Muitas vezes é adaptar, reformular, preservar valores que resistem ao tempo. O líder, que seja uma personalidade, sabe quando quebrar e quando construir; sabe que a dúvida criativa ou até o fracasso fazem parte do processo e não o invalidam.

Egoísmo saudável – Altruísmo sustentável

Não é bom demonizar o egoísmo, pintado-o como vício absoluto. Há um “egoísmo saudável” que nasce do autoconhecimento e da autopreservação e torna o altruísmo sustentável. Quem se sacrifica sem limites acaba por se esgotar. Liderar é encontrar o ponto de equilíbrio onde o cuidado de si não anula o cuidado dos outros.

A Poesia nos Intervalos

Mudar exige coragem e desapego. Mas não se trata de saltar para o vazio, é preciso também encontrar uma base de apoio. Sem isso, a ruptura transforma-se em queda.

Talvez a grandeza da liderança esteja justamente aqui: na consciência de que a poesia da vida não acontece nas ordens nem nas revoluções, mas nos intervalos entre elas. É nesses espaços de pausa que se amadurece a visão, que se cultiva a escuta e que se prepara o próximo passo.

O verdadeiro líder sabe que não é no grito da revolução, mas no silêncio entre os passos, que nasce a mudança duradoura.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

UM NOVO TRATADO DE TORDESILHAS?

A Geopolítica da Mentira e a Guerra como Negócio

Vivemos num mundo de cortinas de fumo, onde a verdade é refém de interesses obscuros. Enquanto as populações são formatadas por uma informação pós-factual e manipulada, as elites jogam xadrez com vidas humanas. O recente encontro entre Putin e Trump não é um mero acaso diplomático: é mais um movimento num tabuleiro geopolítico onde a guerra, o consumismo e a pressão social servem para distrair as massas do essencial que é o poder e o controle.

A Traição como Estratégia

Os dois blocos – Rússia de um lado e os EUA  e a NATO do outro – alimentam-se da mentira:

A Rússia, que em 1991, nos Memorandos de Budapeste, prometeu respeitar a soberania ucraniana em troca das suas armas nucleares, (documento confirmado por arquivos desclassificados e estudiosos como John J. Mearsheimer), hoje justifica a invasão com o fantasma da “desnazificação”.

Por seu lado os EUA e a NATO, que, segundo registos diplomáticos revelados (cable de 1998 do embaixador dos EUA em Moscovo, Thomas R. Pickering), asseguraram verbalmente não se expandir para Leste, de facto engoliram metade da Europa Oriental, provocando Moscovo, violando o que o ex-embaixador norte-americano na URSS, Jack F. Matlock Jr., chamou de “promessa não escrita, mas real”.

A Ucrânia é o campo de batalha onde se joga muito mais do que território, ela é a luta pela hegemonia global. Em maio de 2022, um acordo de paz estava em cima da mesa, mas como confirmou o então mediador israelita Naftali Bennett, a NATO convenceu Kiev a rejeitá-lo.

E porquê? Porque, como analisa o professor Jeffrey Sachs (Columbia University), a guerra serve aos interesses estratégicos do Ocidente, mesmo que signifique o sacrifício de um povo inteiro.

A nova Partilha do Mundo

Estamos perante um novo Tratado de Tordesilhas, onde as potências redesenham o planeta conforme a sua conveniência. Tal como Espanha e Portugal dividiram o mundo no século XV, hoje EUA, China, Rússia e Europa disputam esferas de influência. Tal como o historiador Timothy Snyder descreve em “The Road to Unfreedom”, a Rússia e o Ocidente travam uma guerra de narrativas, onde a soberania dos Estados é secundária perante os interesses dos grandes blocos. Ao contrário do passado, a guerra não é apenas territorial é também económica, tecnológica e ideológica.

A Filosofia da Guerra Perpétua

Enquanto o filósofo Immanuel Kant sonhava com uma paz perpétua, o pensamento de Leo Strauss (e dos seus discípulos neoconservadores como Paul Wolfowitz e Robert Kagan) domina a política actual, segundo a qual a paz leva à decadência, a guerra mantém a ordem. Paul Wolfowitz, após a queda da URSS, defendeu que os EUA deveriam manter a supremacia militar e impedir a ascensão de qualquer rival, inclusive a Europa. Daí as revoluções coloridas, os golpes suaves, as guerras por procuração.

O cientista político John Mearsheimer (“The Tragedy of Great Power Politics”) diz que a expansão da NATO em direcção à Rússia foi um erro estratégico que inevitavelmente provocaria a Rússia. Esse erro estamos todos nós agora a pagá-lo e a justificar a militarização da indústria. Por seu lado, Noam Chomsky denuncia que as revoluções coloridas (como a Laranja na Ucrânia, 2004) foram operações de mudança de regime apoiadas pelo Ocidente.

Os fins justificam os meios (neste aspecto Leo Strauss opinava que Maquiavel “parecia ser um professor da maldade”. A lei moral é vista como instrumento de controle, não de ética. E, segundo esta lógica darwinista, os fortes devem dominar os fracos.

A Manipulação das Massas

Os media europeus e norte-americanos, seguindo a lógica da “Manufacturing Consent” (como definido por Edward S. Herman e Noam Chomsky), transformaram Putin no novo Hitler, porque uma população assustada aceita melhor a guerra. A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo, como escreve Michael Hudson em “Super Imperialism”, é manter o dólar como moeda global e o complexo militar-industrial no poder.

A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo é enfraquecer a Rússia, conter a China e garantir que o dólar e o complexo militar-industrial continuem a dominar o mundo.

Ao mesmo tempo, as pessoas discutem futebol, reality shows e inflação, ignorando que estão a ser usadas como peças num jogo muito maior.

Perante a situação real só resta acordar

Torna-se muito difícil não se deixar enganar. Por trás das bandeiras, dos discursos moralistas e das “causas justas”, há sempre interesses obscuros. A guerra na Ucrânia não é sobre liberdade é sobre poder, como demonstra Christopher Layne (“The Peace of Illusions”). O encontro Putin-Trump não é sobre diplomacia é sobre realinhamentos estratégicos e negócios.

O mundo está a ser repartido de novo. E, se não abrirmos os olhos, seremos apenas espectadores da nossa própria servidão. Os líderes da União Europeia não só perderam o rumo da Europa, traíram-na. Submissos, ajoelham-se perante os interesses bélicos e financeiros de Washington, esvaziando o continente não apenas geograficamente, mas também cultural e espiritualmente. Enquanto enterram o legado humanista europeu, transformam-nos em vassalos do projeto imperial americano, condenando a Europa a ser mero apêndice na nova ordem multipolar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A CONFISSÃO COMO INSTRUMENTO DE INDIVIDUALIZAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA

A Transformação do Mundo começa na Revolução silenciosa da Consciência

O processo de individualização da consciência humana, isto é, a emergência do eu autónomo em relação ao nós coletivo (à comunidade), constitui uma das transformações mais profundas e decisivas na história da mentalidade europeia e na formatação da sua jurisprudência, antropologia e sociologia. Esse desenvolvimento foi obra sobretudo da teologia e da filosofia seguida da política, sendo a Igreja Católica o principal agente na promoção da interioridade e da responsabilidade moral individual, que pouco a pouco conduz à individualidade de consciência.

Um dos mecanismos mais revolucionários e actuantes nesse processo foi a evolução do sacramento da Penitência, que passou de um acto litúrgico comunitário feito no início da missa, para uma confissão auricular privada. Essa mudança não foi só meditativa, como fomentou também uma nova estrutura de consciência, na qual o indivíduo, diante de Deus, assumia a sua culpa e liberdade, emancipando-se progressivamente da moral tribal ou dos senhores.

Neste artigo, procurarei analisar como a Igreja, ao confrontar-se com as sociedades germânicas baseadas em lealdades coletivas, instrumentalizou a confissão individual como meio de responsabilização pessoal, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência autónoma na Europa e para a autonomia das consciências individuais, criando assim a base para todas as aspirações emancipatórias.

A Moral Tribal e a Ausência de Interioridade ou Consciência própria

As sociedades pré-cristãs germânicas e celtas organizavam-se em torno de clãs e tribos, nos quais a identidade individual estava submersa no grupo; o indivíduo definia-se pela pertença à tribo e a obediência funcionava como lei natural interna de sujeição. A lealdade ao chefe e aos costumes ancestrais era o fundamento ético, não deixando espaço para uma noção de responsabilidade pessoal nem de pecado como ofenso pessoal a uma ordem que superasse de maneira transcendente a ordem dos costumes ou da chefia. A honra e a vergonha eram reguladas externamente, pela comunidade, e não por um exame de consciência interno.

Nesse contexto, a penitência pública, como era praticada nos primeiros séculos do cristianismo na liturgia da palavra, não produzia o mesmo efeito psicológico que nas sociedades romanizadas, já que a culpa permanecia um fenómeno coletivo. A Igreja, portanto, enfrentou o desafio de incutir uma moral baseada na responsabilidade individual em culturas que não concebiam o indivíduo fora do grupo. Este aspecto ainda se observa hoje a nível íntimo no islão. Só o desenvolvimento da consciência pessoal cria o espaço da subjectividade e este dá lugar à Liberdade.

A Revolução da Confissão Auricular: Interiorização da Culpa e da Graça

A partir do século VI, com a crescente influência do monaquismo irlandês, a prática da confissão privada, ou auricular, difundiu-se na Europa. O Penitencial de São Columbano (séc. VI) estabeleceu uma abordagem personalizada do pecado, no qual o penitente, em diálogo íntimo com o sacerdote, se confrontava com as suas faltas de maneira individualizada perante Deus.

Esse método representou uma ruptura radical com a ética tribal em favor da responsabilização pessoal: O pecador já não era apenas um membro do grupo que falhava, mas um eu que, perante Deus, assumia as suas ações criando-se nele um espaço interior próprio que comportava já liberdade. A alma tornava-se no local de encontro com o divino, onde a consciência individual se formava em paralelo com a consciência social. Dá-se assim a autonomia moral de modo que a autoridade última já não era o chefe tribal, mas a própria consciência, iluminada pela lei divina.

O historiador Michel Foucault constatou em “A História da Sexualidade”, que a confissão cristã foi uma das primeiras tecnologias do eu a exigir que o indivíduo verbalizasse os seus pensamentos mais íntimos, criando uma subjetividade interiorizada (1).

O processo de individuação da consciência individual foi-se processando durante a Idade Média onde pessoa e sociedade viviam na atmosfera do nós (comunidade) à custa do eu (indivíduo); a sobrevalorização da comunidade atafegava a individualidade mas pouco a pouco a ideia da filiação divina acompanhada da Confissão, geraram a pessoa humana com consciência autónoma frutificando no renascimento e ganhando especial expressão no protestantismo (2) .

O surgir da Ipseidade (mesmidade do eu): O Eu como Essência diante do Divino

A noção agostiniana daquilo que é o mais íntimo de mim mesmo (interior intimo meo) já havia preparado o terreno para uma concepção do homem como ser dotado de uma interioridade sagrada. A confissão auricular aprofundou essa ideia, fazendo da alma um espaço onde o indivíduo, na sua ipseidade (a “mesmidade” do eu), se confrontava com a transcendência e com o agir sociopolítico.

Essa dinâmica teve três consequências fundamentais decisivas: alcança a soberania da consciência individual. O indivíduo passou a ser julgado não apenas pelas suas ações externas, mas também pelas suas intenções internas. Dá-se também a relativização das instituições humanas pois se a alma respondia diretamente a Deus, então nenhuma autoridade terrena, nem mesmo o grupo tribal, podia reivindicar soberania absoluta sobre ela. Na sequência acentua-se a liberdade pessoal porque o indivíduo, ao reconhecer-se como sujeito moral autónomo, ganhou as bases para um processo emancipatório que se expressou de maneira relevante no protestantismo e culminaria, séculos depois, no Iluminismo e na noção de direitos humanos.

A Igreja como Agente Paradoxal da Modernidade

A prática da confissão individual foi, assim, um dos grandes fatores de individualização na Europa medieval, tornando-se como o ventre progenitor do eu que deixa de ser mera sombra da comunidade. A Igreja ao substituir a penitência pública pelo exame de consciência privado, não só se adaptou às mentalidades tribais, mas transformou-as, criando as condições para o surgimento de uma consciência pessoal autónoma.

Paradoxalmente, a mesma instituição que muitas vezes é associada politicamente ao autoritarismo foi certamente a principal promotora da interioridade e da responsabilidade individual, valores que mais tarde se desdobrariam na cultura moderna. A confissão, nesse sentido, não foi apenas um sacramento religioso, mas um ato revolucionário que ajudou a forjar o eu ocidental (a consciência individual e cultural-social).

O cristianismo, na sua vocação de aculturação e inculturação, ergueu-se como ponte entre mundos, buscando elevar costumes fechados e religiosidades cingidas por fronteiras estreitas. Pretendia libertar a moral das amarras do hábito e do peso dos usos herdados, conduzindo-a do círculo apertado de uma ética local à vastidão de uma moral aberta, cuja finalidade não se esgota na coesão social, mas se cumpre na dignidade do indivíduo que, em plena consciência, se torna autor e juiz de si mesmo.

Formar consciências livres e soberanas era a sua meta. Por isso, mais do que confiar apenas na razão que disseca e argumenta, acolheu a intuição, esse olhar interior que não se perde em utopias de salvação universal, mas se ancora na certeza de que Deus habita no mais íntimo de cada ser humano, como uma gene divina e a salvação individual e universal começa por aí. Só Ele conhece o nosso ser até ao fundo, e o verdadeiro saber é a aventura de descobrir-se a si próprio. A transformação social de qualidade, não brota de decretos ou sistemas, mas da lenta e silenciosa evolução da consciência individual.

Hoje, a fé vê-se sacudida pelo vento de um modernismo impetuoso, ferida também pela quietude excessiva em que se deixou adormecer. A espiritualidade cristã, porém, é movimento, é crescimento contínuo; não se compraz num esoterismo fechado, servido à la carte, nem na redução de todas as sendas da existência ao culto do próprio ego.

O verdadeiro equilíbrio exige um conservadorismo vivo, que saiba abrir-se à criatividade e ao novo, não como moda efémera, mas como salto ousado para o desconhecido com sentido. Neste ponto, tanto o wokismo como um tradicionalismo imóvel se encontram partilhando extremismos, oportunismos e medos que asfixiam a criação e detêm o desenvolvimento do homem e da comunidade.

A pessoa desperta não clama por revolução nem por contrarrevolução. A sua revolução é íntima, invisível aos olhos apressados, mas fecunda. É o balanço harmonioso entre opostos, movimento que gera vida, respiração que conduz ao horizonte de uma cultura da paz.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

 

(1) Henri-Louis Bergson (1859–1941), com a teoria do élan vital, procurou unir ciência e filosofia, acabando por aproximar-se do catolicismo. Rejeitou explicações mecanicistas, defendendo que a evolução tende para formas mais complexas, culminando no ser humano. Para Bergson, é a intuição e não apenas a razão analítica que permite o contacto directo com o núcleo da realidade. Deus está no íntimo de cada pessoa, e a salvação resulta dos dons divinos e da liberdade humana. Como a natureza não possui essência divina, restam duas opções: ou reconhecer Deus ou divinizar a natureza. Esta última opção leva ao panteísmo.

(2) Lutero garante a Emancipação como Princípio impulsionador da Idade Moderna: https://www.amazon.com/garante-Emancipa%C3%A7%C3%A3o-Princ%C3%ADpio-impulsionador-Moderna-ebook/dp/B076859PZT

Bibliografia

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade, Vol. 1: A Vontade de Saber:

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna.

DELUMEAU, Jean. A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII-XVIII.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.