Educação no contexto do 25 de Abril

Arte de Educar

Ciências da Educação e o pensar correcto
A Europa tornou-se na época de sessenta e setenta o campo de experimentação dos grandes protagonistas da liberdade e da renovação. De facto urgia uma mudança radical duma sociedade formalista com estruturas e comportamentos demasiado estáticos.

Da revolta contra os caudilhos do tempo (nazismo, estalinismo, fascismo italiano, autoritarismo português) e contra a tradição surgiu uma aliança concertada de todas as forças relevantes na sociedade europeia. Políticos, sociólogos, psicólogos e pedagogos assenhoreiam-se da ribalta do poder e dos lugares charneira da sociedade. Aliam-se na luta contra a autoridade, contra o poder estabelecido, numa atitude adversa a instituições e normas portadoras da memória da tradição. Pouco a pouco fazem o seu saneamento das instituições ocupando-as. A sociedade aplaude. Em nome dum antifascismo difuso abdica-se do carácter crítico e da dúvida metódica. O espírito sadio conservador é difamado e estigmatizado, refugiando-se inseguro à margem da sociedade. Iniciara-se a época do pensar correcto alérgico a personalidades com coluna vertebral erecta. Um discorrer social leve instala-se. De modo simplicista abdica-se da análise das formas e métodos de legitimações autoritárias, o que vem servir a nova classe na escalada do poder. Muitos dos manifestantes e arruaceiros de ontem são os senhores de hoje.

Assim dum movimento anti-autoritário e anti-reaccionário foi possível instalar-se nos novos sistemas a atitude autoritária escondida sob o manto do revolucionário, do democrata, do tolerante. Em contrapartida, em relação à verdade do passado, instala-se a opinião como absoluto, o que vem servir uma praxe irreflectida. É a época das ideologias e do pensar oportuno, do conveniente. A disciplina foi desautorizada por uma pedagogia nascida da reacção anti-autoritária, contra a chamada sociedade burguesa que exaltava a obediência. As ciências da educação tornam-se veículo do novo pensar oportuno. Nas instituições de ensino mais do que especialistas queriam-se assistentes sociais…

Decepção colectiva
Na consequência de tanto à-vontade, de tanta adolescência, as sociedades europeias e a sociedade portuguesa em particular encontram-se hoje à chuva. Apesar dum relativo bem estar domina por toda a parte um sentimento decadente e de insegurança. Observa-se uma certa desorientação, no público consumidor de imagens públicas, acompanhada dum certo descrédito em relação às elites. De facto os apóstolos da liberdade de ontem confundem-se hoje, nas suas formas de actuar, administrar e governar, com os actores do passado que destronaram e estigmatizam.

Porque mantêm as rédeas do poder, continuam com o espírito ensombrado, negam a necessidade de orientação e reflexão, escondendo-se por detrás de incógnitos apontando como fundamento do seu agir para o estrangeiro e para as orientações europeias. Ofuscados em nevoeiros de ideologias irreflectidas agarram-se a bolhas empoladas de promessas de progresso e à defesa das conquistas de Abril como se estas se tivessem tornado propriedade dos novos detentores do poder e da influência. Contraditórios em si acordam os espíritos sonâmbulos do passado. Reagem como as galinhas no poleiro ao sentirem o outro galo nas redondezas.

Mundivisões subjacentes às teorias concorrentes da educação
Educar quer dizer dirigir e pressupõe a capacidade de assumir responsabilidade. Na família, na escola ou nas instituições sociais e estatais quem dirige não pode abdicar da capacidade de orientar. Também na escola o docente deve ser modelo, orientador para ser reconhecido como autoridade.

Para Rousseau o ser humano é bom. Não precisa de intervenção, carecendo apenas de acompanhamento. O desenvolvimento positivo é para ele um pressuposto natural. Esta visão tem sido orientadora na prática da política escolar.

Para a visão cristã ao contrário o género humano vive na polaridade entre bem e mal; traz em si potenciais positivos e negativos de toda a ordem. Por isso precisa de modelos comunicativos e de orientação participada para fortalecer o bem que traz em si e transformar as forças do mal em factores potenciadores de bem. O respeito mútuo gera autoridade. Aqui não se trata tanto de aplicação de ideias mas sim de vivência no relacionamento.

É ilegítimo formar-se o ser humano à base e em serviço duma ideologia ou da própria imagem. O ser humano, como imagem e participador do divino não pode ser petrificado numa imagem desejo, numa doutrina, teoria ou práxis. Só na autonomia poderá atingir um estado de consciência livre não amarrado a ideologias ou crenças sejam elas pedagógicas, científicas, políticas ou religiosas. Conduzir e orientar alguém implica em si o risco da petrificação dum sistema. A orientação acontece em processo, num decurso em que o educador desbrava o caminho do jovem para a liberdade, para si mesmo. O encontro da liberdade é porém feito pelo jovem não sendo este reduzido a objecto obrigado a seguir a liberdade que eu penso. Cada pessoa terá de descobrir, conquistar a liberdade na disputa consigo mesmo e com o mundo. Tem de se dar a si mesmo à luz. Os outros são as parteiras conscientes da sua missão.

O equívoco da esquerda
A esquerda reagiu com razão a uma sociedade e a uma pedagogia que vivia de atitudes e de virtudes petrificadas e portanto alienadoras. O problema é que a esquerda tendo embora feito uma crítica justa à sociedade burguesa caiu no erro do fundamentalismo ideológico militante, ainda reinante. Apenas substituíram umas crenças e práticas por outras caindo nos mesmos dogmatismos e oportunismos sem chegarem a perceber o espírito místico que estava por detrás da revolta. Tornaram-se cegos a guiar outros cegos!

A partir dos anos 60 a esquerda ao basear a sua imagem do ser humano em Rousseau que considera o ser humano como bom em si e a sociedade como má, inicia uma avalanche de consequências incalculáveis. A sociedade ascendente apadrinha este modelo atendendo às esperanças socialistas em curso e à revelia contra as instituições e a igreja tidas como mal e impedimento ao desenvolvimento do bem do homem espontâneo.

A nova elite abandona o indivíduo a si mesmo interessando-se apenas com a mudança e o melhoramento da sociedade. Equivocava-se ao pensar que alterando certas situações ambientais da sociedade o homem se modificaria automaticamente. Desleixa assim o essencial. Os seus actores que inteligentemente ocuparam a política, a administração do estado e os serviços continuam irreflectidamente de cabeça erguida sem ter de dar contas a um povo que apenas pressente a decadência mas já não tem espinha dorsal nem entendimento para saber o que quer nem o que se passa.

Assim, nas últimas duas gerações as crianças e a juventude foram abandonadas a si mesmas e confrontadas com formas autoritárias desautorizadas num ambiente lascivo de desinteresse. É notória a falta de participação interior. A vida agora acontece na rua, na ágora onde o que vale é a máscara. Em nome da liberdade querem-se “boys” e másculas. A sociedade civil, também no caso de Portugal, erradamente para se auto-afirmar, desautoriza a disciplina e as autoridades, mete no caixote do lixo da história indiferenciadamente autoridades e atitudes autoritárias. Ao fim e ao cabo trata-se duma sociedade experimental em que todos reagem sem saber porquê nem entender bem para quê.

É óbvio que uma educação integral e equilibrada não poderá deixar de apontar para as atitudes autoritárias nas formas de trato ou de governo, não se limitando a difamar sistemas e pessoas. Todos eles têm aspectos positivos e negativos independentemente do seu carácter manifesto ou axiomático. A atitude é formada através da experiência no currículo de cada um, não havendo uma explicação monocausal para a realidade social e individual como pretende a ideologia.

A educação terá de ser desideologizada e passar a ser assistida por uma ciência ainda a emancipar-se do pensar correcto do tempo, para, no encontro e reconhecimento do indivíduo como ele é, – no seu ser “bom” e “mau” – , possibilitar o estímulo das potencialidades no processo de desenvolvimento. Na educação é necessária uma discussão sobre o equilíbrio entre o carácter individual e social e entre as relações família e estado. Paradoxalmente o Estado liberal adoptou certos vícios dos sistemas marxistas sendo os consequentes defeitos já palpáveis no estado doentio em que se encontra a família e concludentemente a sociedade.

Revolta – o factor constitutivo de identidade
Para o educador a dificuldade estará em manter o balanço entre obrigação e liberdade. Não há caminho para a liberdade sem catarses nem subordinação. O educando terá de reflectir e dar-se conta do seu ser condicionado. A subordinação à vida no reconhecimento das suas leis não significa a abdicação de ser para a liberdade mas sim o desenvolvimento da consciência no sentido de integrar em si o todo sem permanecer rebelde, o que, neste caso, significaria uma emancipação desintegrada, superficial e anómala contra a realidade de se ser ente interrelacionado. O ser humano não é só espírito, ele é também matéria, muita matéria em processo de espiritualização.

O adolescente para concretizar o corte do cordão umbilical tem de se tornar resistente e mesmo de se revoltar, tal como fizeram Adão e Eva no processo de passagem ao estado adulto. A revolta está na essência do ser humano, a auto-afirmação perante o ambiente e a norma. Só assim se chega à própria identidade, doa ela ao ambiente, à ideia de Estado ou de Deus! A tendência de impedir a revolta em vez de a reflectir é uma reacção egoísta e exploradora por parte da sociedade e do educador de reacções primárias. Pais e professores devem estar preparados para aceitarem a revolta adolescente. Estes é que são as pessoas de relação, da autoridade, ocasionalmente representantes da proibição do comer da árvore proibida mas que transmitem ao vivo princípios morais comuns e valores como solidariedade, respeito, honestidade, afecto e responsabilidade na liberdade.

O educador tem um certo adiantamento no que respeita ao valor de certas experiências e potenciais aquisições, bem como na avaliação dos talentos e inclinações do educando. O educador consciente aprende também ele, no contacto directo com o educando, a distanciar-se dos próprios desejos e projecções no respeito pelo formando que é um original único. Não lhe pode aplicar uma forma pré-idealizada. Decide-se em diálogo, mas uma vez iniciado o caminho não se cede à primeira resistência.

No diálogo e na abertura, pode-se não saber exactamente o caminho mas na caminhada comum vão-se tornando claros os passos a seguir. Na provisoriedade, o adulto porém sabe que o que propõe é bom para o adolescente. Como adulto sei que há coisas positivas e tenho de dar segurança ao filho ou ao aluno. Essa segurança é porém dinâmica e processual, até porque o adulto não é nenhum produto acabado, e a educação é processo dinâmico.

A função do educando é dolorosa, é um processo maiêutico porque por um lado não pode abandonar o adolescente a si mesmo e por outro não deve impor a sua ideia. Educação é um sistema que envolve as duas partes em crescimento recíproco de maturação na caminhada educativa conjunta de relação e ressonância, progredindo as duas partes na experiência, não dependentes de ideias mas abertos à fantasia. Como caminhada comum há diferentes fases a transcorrer.

Concorrência entre os parceiros
Um problema é a concorrência entre a intervenção do Estado que a partir dos 16 já permite o consumo do álcool e do tabaco, além doutros direitos por que se não responsabiliza. Independentemente da função protectora do Estado, este intromete-se demais entre a criança e os pais, entre alunos e docentes. Muitos educadores para não entrarem em conflito com interpretações da lei desinteressam-se e abandonam os educandos a eles mesmos.

Na escola, como posso observar na minha actividade docente, muitos adolescentes já esperam com ansiedade por cada etapa para poderem dar-se aos excessos que a lei lhes permite, numa atitude de auto – afirmação perante os educadores e os colegas. O legislador tem uma perspectiva errada ao partir da ideia de que há um método de introdução ao consumo do álcool ou do sexo que conduza automaticamente à aprendizagem do trato regrado do mesmo. Uma escola que se limite a ensinar coisas não compreendeu o essencial que é ensinar e viver o sentido delas.

O problema põe-se sob o ponto de vista do desenvolvimento psicológico do adolescente no aferimento da experiência a fazer com a sua maturidade. Logicamente a vida é, em grande parte, o resultado de experiências e ao fim e ao cabo cada um é o resultado das suas. Isto porém não justifica a conveniência de uma experiência qualquer. Dado que cada pessoa é diferente torna-se quase impossível situar o ponto da sua maturidade para cada acção a desenvolver no seu currículo. Ensino – aprendizagem é um processo dinâmico na abertura para a liberdade.

Aqui encontramo-nos numa encruzilhada sem sinais de trânsito. A questão situa-se a nível de legitimação dos critérios de maturidade, e autonomia. Nisto cruzam-se interesses familiares, escolares, individuais, políticos, económicos e ideológicos muitas vezes em concorrência. O fenómeno torna-se mais complicado quando um estado pretensamente democrático faz tudo por tudo por manter o monopólio do ensino escolar. Isto contraria o princípio democrático e o princípio da liberdade de ensino e da liberdade de sistemas e de indivíduo.

Educar é ensinar a aprender
A educação quer possibilitar a estabilidade de auto-consciência no educando de maneira a este poder resistir com eficiência às contrariedades do dia a dia e do ser. Para isso precisa da confiança e dum espaço próprio onde se possam abrigar e recuperar forças para encarar os novos desafios. Naturalmente que o adolescente, perante as nuvens ameaçadoras do mundo adulto que repudia, poderá ter a tendência a regredir ao seio materno onde a protecção é meramente maternal ou ao seio de grupos afins. A questão a pôr será – qual o lugar de protecção será melhor: o escolhido pelo adolescente ou o oferecido pelo educador…

Os jovens encontram-se desprotegidos perante um mundo meramente mercantil que apenas está interessado em ganhar dinheiro com as suas necessidades. O Estado, por seu lado encontra-se sobrecarregado sendo inapto para a tarefa que assume por estar sujeito à ideologia de quem assume o governo e por leis de mercado a que o Estado se obriga. Tanto a configuração dos estabelecimentos de ensino bem como pedagogias e didácticas não se encontram em conformidade com os nobres objectivos do ensino em geral. Há um precipício entre a realidade e as intenções dum estado isento. Neste sentido o Estado mais que interessado em que o educando aprenda a aprender está empenhado em conduzi-lo. Por isso está mais empenhado em que o aluno aprenda coisas do em que ele compreenda o sentido delas. As últimas medidas do ME em relação à avaliação dos professores apontam mais para que os alunos andem na escola a aquecer os bancos da escola do que em que saiam delas capacitados e habilitados para a vida. Quer-se uma democratização da incompetência, apesar dos resultados das investigações PISA que documentam o estado catastrófico do nível dos nossos alunos. Educar, mais que ensinar a prender, é um processo mútuo de aprender a aprender, doutro modo constroem-se mundos paralelos: o das ideias e o da prática.

Pedagogia dos anos sessenta e setenta em função da política
A pedagogia dos anos 60 e 70 sonhava com um lugar de protecção para o indivíduo em que este, longe do medo, conseguisse experimentar e experimentar-se. Esta ciência pedagógica surgiu da reacção contra o fascismo e contra a tradição.

Queria-se uma educação em liberdade, uma nova sociedade correctora daquela que tinha levado às guerras europeias. Contra o tabu da tradição cria-se o tabu do novo, do progresso, em contra – afirmação. Acredita-se ingenuamente ou funcionalmente na verdade e na liberdade. Ao querer-se um ser humano livre como um passarinho esqueceu-se que este também tem ninho e está sujeito à assistência dos pais…

Na luta por impor novos ideais sociais para criarem uma sociedade civil secular, desvalorizaram os rituais religiosos e familiares da configuração do dia e da semana (refeições comuns e liturgia semanal) sem criarem rituais seculares substitutos. A autoridade foi questionada como se ela fosse um impedimento ao desenvolvimento. A autoridade do professor foi sistematicamente minada, questionando-se o seu carisma, submetendo-o a práticas protocolares para assim o desvincular do aluno e o tornar totalmente disponível para a ideia colectivista do Estado em voga.

(Ao contrário, a experiência de quem ensina confirma que o aluno manifesta respeito pela autoridade. Esta prática pude fazê-la já bem cedo em Bragança nos anos 71-73. No meu primeiro ano de estágio como professor procurei aplicar as teorias aprendidas na psicologia e pedagogia anti-autoritária (A.S.Neill, Virgínia M. Axline, Wilhelm Reich, Paulo Freire e outros ) introduzindo também o tu no trato entre professor e aluno. No fim do ano confrontei-me com o meu descontentamento e com o descontentamento dos alunos. No ano seguinte adoptei o método baseado na psicologia do desenvolvimento da personalidade e do comportamento de Carl Rogers tendo-se patenteado então grande sucesso e contentamento por parte de toda a comunidade escolar. O colégio era um internato e externato ao mesmo tempo com alunos internos de bom quociente de inteligência que provinham de meios degradados do Porto e de Coimbra. A estes era-lhes proibido sair do colégio sem acompanhamento atendendo ao perigo de fuga e outros. Facto é que, no segundo ano, a estes alunos já lhes era permitido passear por Izeda sem a contínua presença do professor monitor.)

Nos anos sessenta e setenta a pedagogia e a psicologia deixou-se obcecar pela ideia de liberdade individual procurando explicação para todos os maus sintomas individuais do jovem e da criança na malfazeja educação dada por pais e instituições. Isto vinha de encontro aos interesses da política que queria pôr a família e o indivíduo sob a sua tutela. Via-se nas famílias e na sociedade, que tinham sido responsáveis pela história trágica europeia, os malfeitores a combater. Na escola deu-se o mesmo processo. Ainda hoje se cede à tentação de reduzir a disciplina de história a uma disciplina de pedagogia. É enjoativa a maneira como se assiste a acções de formação para professores em que a ideologia é bebida imperceptivelmente por docentes desatentos. Uma pobreza franciscana entre pessoas todas bem intencionadas!… Seria de chorar se não fosse tão divertido!…

O mesmo se pode observar na tendência de acabar com a disciplina de Filosofia nos cursos do ensino complementar. Querem-se pessoas dóceis ao sistema com capacidade para terem opinião ideológica mas com incapacidade crítica para as questionar.

Assiste-se ao costumado jogo do rato e do gato. Questiona-se a problemática em termos de gerações o que leva a culpabilizar os mais velhos desautorizando-os. O processo ideológico da era sessenta era tão radical que envolvia todos os sectores do saber. Por outro lado a geração pós-guerra acumulou tanta riqueza na Europa central que o optimismo económico não deixava momento para se questionar a prática social.

A prosperidade fomentou uma moral longe da realidade humana, uma moral para meninos-bem filhos de pais com cargos, uma atitude irresponsável e leviana de que hoje todos sofremos.

Facilmente a reacção contra uma sociedade monolítica impeditiva de qualquer emancipação justificou oposição tão exagerada deslegitimando toda a autoridade legítima ou ilegítima.

Tal, como confessa Daniel Cohn-Bendit instala-se contra a ideologia autoritária a ideologia anti-autoritária questionadora não só da autoridade como também da ordem social.

O sonho do movimento anti-autoritário era conseguir uma forma política geralmente de cunho marxista que se impusesse por ela mesma, tornando a autoridade supérflua. Um sonho que também eu sonhei mas que não passa duma utopia. Importante é a abertura à experiência como factor corrector, pressuposto difícil para caracteres obsessivos. A experiência mostra que a legítima aspiração e exigência do ser humano para a autonomia e independência terá de acontecer numa dinâmica entre o indivíduo e a sociedade não podendo aquele viver sem esta.
O desenvolvimento é doloroso mas, nessa dialéctica, a supra-estrutura deve reconhecer na autonomia e individuação de cada membro o seu mais elevado motivo e fim.

A palavra anti-autoritário desapareceu da ciência pedagógica, permanecendo porém o direito à revolta. Seria óbvio que esta revolta passasse a ser um direito humano que assiste a toda a pessoa. O direito de tudo questionar mas não como ideologia ao serviço dum sistema político ou social, tal como acontece no pensar correcto estabelecido. Todo o pensamento deve ser corrigido pela vida.

A revolta porém não pode ser arvorada em bandeira ou no direito do adolescente perturbar a aula e não respeitar o docente. O aluno tem, no sistema escolar, meios de recurso e de auto-defesa institucionalizada.

A dificuldade é que o Estado não cria as infra-estruturas escolares com um mínimo de pressupostos para que a turma ou conjunto de turmas dum nível escolar tenham um desenvolvimento sadio numa comunidade escolar coesa. O Estado confessando-se embora democrático tem uma prática antidemocrática. Ele desresponsabiliza o indivíduo logo à partida, no seu processo de formação, considerando apenas a turma e o professor como aplicador dum programa rígido superiormente ordenado.

A auto-suficiência dos professores é geralmente questionada por uma política que não aceita o erro no seu sistema. Isto independentemente de haver muitos professores sem vocação para a profissão que exercem ou que foram obrigados a perder a aptidão que inicialmente tinham.

Numa sociedade que se quer terreno de construção não são aceites valores nem o cultivo da tradição. Antigamente dava-se importância à aprendizagem de muitas virtudes, entre elas a das boas maneiras. Uma estética do trato anteriormente aprendida também na escola tendente a formar personalidades é hoje vista como teias de aranha do passado a remover. Cortesia cheira a corte, a monarquia, a princípios. A virtude reduz-se a palavra arcaica e certos valores pelo facto de terem sido abusados na sociedade tradicional são agora vistas como impedimento ao desenvolvimento e à implementação do novo regime. Obediência cheira a burguesia, hoje quer-se subserviência. A virtude todavia é o meio de dois extremos o que proporciona um bom termo de orientação. Cortesia significa tomar o outro em consideração. Isto vai naturalmente contra a centralização no ego o que não agrada à ideologia anti-autoritária. O problema da pedagogia de ontem e de hoje permanece o mesmo: fazer da civilidade adestramento. De resto ainda resta a questão dos destinatários da educação: a mediocracia ou o precariado…

É um equívoco condicionar a liberdade do adulto à liberdade da criança como queria Rousseau e um certa tendência da psicoterapia. O problema da sociedade de hoje é que tem pedagogos a mais e personalidades a menos.

O desenvolvimento da história acontece de forma pendular de um extremo para o outro sobrevivendo sempre o meio-termo. Cada biótopo social precisa duma outra pedagogia dado esta ser relação, caminho em conjunto e este implicar encontro, identificação, compaixão.

Numa sociedade cada vez mais fria e mais sujeita à lei do mercado torna-se cada vez mais carente, mais carente também de certas virtudes de que já não se faz ideia hoje. Para reconhecer e respeitar a juventude é preciso conhecê-la primeiro e entender o seu ambiente. Um pressuposto para o desenvolvimento será abandonar a forma de pensar orientada para os problemas substituindo-a por um pensar orientado para as soluções.

António Justo
Pedagogo
“Pegadas do Tempo”

António da Cunha Duarte Justo
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Maria – Maio – Fátima

Maria, tal como a natureza em Maio, tem as mais diversas expressões. As diferentes devoções a Maria são também elas manifestação da multiplicidade da realidade e das imagens da alma humana.

Maria, tal como a alma humana, tem mil rostos. Expressa-se como mãe, rainha, virgem, auxiliadora, a Senhora de Lurdes, de Fátima, etc. Nela se manifesta também a nossa geografia espiritual, o nosso ser de paisagem no tempo e no espaço. Em Maria se manifestam a escrituras e a tradição, a espiritualidade e a teologia, o rito e o folclore. Nela, tal como em Cristo, se encontra o ser humano completo.

A teologia feminista procura ver nela sobretudo a dimensão humana (1). Em Maria a mulher foi expropriada. Ao pôr-se na disponibilidade do acto criativo, Maria e com ela a mulher é libertada das correntes que a submetiam ao homem e à sociedade. Na sua disposição ao espírito ela torna-se o protótipo da criação, da arte – o dar à luz em si. Torna-se a imagem de todo o artista cujo programa se realiza no Magnificat. Nele se revela o segredo do processo de expropriação, o programa para todo o homem e mulher na integração da polaridade, superando assim a exploração e o domínio sobre o outro.

Na teologia feminista Maria, como todos os símbolos religiosos, pode ser vista das mais variadas perspectivas. Maria é ao mesmo tempo submissa e insubordinada. O movimento das mulheres procura em Maria marcas em que se apoiar. O feminismo radical, numa estratégia polarizante procura conquistar terreno vendo em Maria a deusa das origens. Muitas vêem nos evangélicos, na sua acentuação só em Cristo, a esconjuração dos restos da feminidade. Independentemente dos abusos masculinos na interpretação do divino deve recordar-se que o Cristianismo original não é de conotação sexual nem se deixa reduzir a interpretações, a perspectivas e maneiras de ver próprias do tempo. Estas dependem do desenvolvimento da consciência humana e do espírito da correspondente época, o que torna as interpretações relativas. Fé mais que um credo é uma vivência, uma mística e só assim universal na sua integralidade.

Muitas das imagens de Maria são pré-cristãs. Maria cristianiza as deusas pagãs e assume as suas residências. Nela se reúnem todas as metáforas femininas. Ela é a Deusa secreta do Cristianismo. As suas aparições expressam o grande poder da realidade do inconsciente.
Também o peregrino no seu peregrinar se sente como parte dum todo, o povo, a natureza a responder ao chamamento interior. (Também por isso será debalde muito do esforço de padres na tentativa de racionalizarem mais as promessas de crentes).

De momento assiste-se a um novo irracionalismo na procura de muitas pessoas por dominar a própria vida. Este favorece tudo o que está fora da tradição bíblica interessando-se por uma interpretação feminista espiritualizado a maneira própria. O negócio com os devocionais floresce. A capacidade de compreensão simbólica tornou-se muitíssimo difícil. O mundo da racionalidade trivial não deixa espaço para imagens ficando estas reservadas ao mundo da religião e da arte. A alma porém revela-se e fala através das imagens.

Maria é a mulher fértil que transmite a vida. No princípio está a mãe original. A mulher traz a vida sem a intervenção do homem. Maria virgem e mãe é a metáfora dum novo começo. As imagens de Maria surgem da base. Ela torna-se o protótipo, a mãe da Igreja; ela encontra-se no centro de cada mulher, de cada homem.
A humanidade de Jesus foi em parte absorvida pela cultura. O problema é que uma humanidade radical torna supérflua a tradição, a memória. Na memória porém dá-se o nascimento espiritual.

“Aquele que faz a minha vontade é meu pai, minha mãe e meu irmão”. Jesus faz ir pelos ares os papéis a que as pessoas se encostam, sejam eles familiares, sociais ou religiosos. Com Jesus e com Maria irrompe o tempo do homem-mulher adulto. Para João a filiação divina só acontece no espírito santo. Maria, a pessoa, engravida por obra do espírito santo, por força do espírito. A dimensão do espírito é reconhecida como essencial, como formadora da realidade mas não definível nem localizável só no particular.

Para Mateus Jesus reúne em si as esperanças dos judeus na adopção de Jesus por José, descendente da casa de David, e no totalmente novo como filho do espírito. Ele é o esperado que através do espírito apresenta o totalmente novo, não precisando doutra legitimacao. Deus intervém assim, através do espírito histórica e misticamente. A imagem judaica tradicional de Deus é superada. Maria, na anunciação e concepção, embora ligada a David indirectamente através de José, realiza nela a aliança histórica de Deus ao povo de Israel alargando essa aliança a todo o indivíduo através do gerar por acção do espírito. (Naturalmente que na bíblia se trata de teologia e não de mera biologia como gostariam aqueles que sonham com uma igreja muda.) O acto legitimador não se reduz ao institucional histórico, ele passa a ser o Espírito que sopra independentemente de condicionamentos.

No Magnificat, as vítimas tornam-se sujeito da acção. A salvação vem de baixo.
Hoje é mais que nunca necessária também uma exegese com uma veia mística. No caminho místico dá-se a convergência da transcendência com a imanência.
Não podemos reconhecer só a terra como deusa, como quer o feminismo radical nem só o céu como horizonte descontextuado como pretendem outros. Num processo aberto à mística conseguir-se-á reconciliar o mundo das ideias com o da realidade, o mundo do espírito com o da matéria. Seria falso desmiolar os mitos. Mito age a partir do que está escondido no encontro da força vertical com a força horizontal. Todo o componente da realidade está integrado num todo global, num sistema dinâmico relacional na interligação dos campos físico, fenomenológico e espiritual como se vê na realidade trinitária.

No mês de Maio por todo o mundo católico se observa grande actividade em torno de Maria. Muitas vezes as celebrações litúrgicas são orientadas por leigos. Nestas liturgias marianas privilegia-se a feminidade.

Um aspecto importante que se enquadraria dentro desta espiritualidade seria a introdução de ritos de imposição das mãos em todas as paróquias. Aí todos os participantes poderiam, na resposta à diversidade dos dons do espírito santo, criar ritos em que também o tratamento do corpo, a cura dos fiéis presentes se tornassem práticas usuais mediante a imposição das mãos por parte dos fiéis. Isto corresponderia a uma necessidade real e cuja vulgarização poderia ter como orientação a bênção dos enfermos realizada em Fátima nos dias treze bem como certas práticas dos movimentos carismáticos. As liturgias marianas poderiam tornar-se um exercício mais adequado às necessidades do lugar e do tempo.

António da Cunha Duarte Justo
“Pegadas do Tempo”

(1) Sabe-se da investigação teológica que o modo de pessoas compreenderem a bíblia depende muitíssimo da sua pré-atitude. “Na cabeça do leitor surge um texto virtual, que se pode distinguir muito do texto bíblico em questão”. Também o modo de compreender o texto se processa diferentemente. Enquanto que leitores ligados à igreja compreendem o texto num contexto global bíblico, leitores sem experiência eclesial procuram o acesso ao texto através da perspectiva histórica.

António da Cunha Duarte Justo
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25 de Abril

O grito e a ânsia do povo português continuam, hoje como ontem, vivos na canção de José Afonso – a melhor ordem do dia:

„Grândola, vila morena
Terra da Fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade…

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade…
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade.”

Este dia da liberdade e da democracia, iniciado pelos capitães de Abril, pretende ser símbolo da dignidade humana a restabelecer, o início dum processo sempre novo alheio à estagnação em ideias, em conceitos ou sistemas.

Esta dignidade humana amordaçada a nível social tinha levado muitos de nós a combater na clandestinidade, em sindicatos e outras instituições, por um dia de aurora como aquele dia do Zeca Afonso e do “movimento das Forças Armadas”. Aquele dia queria persistir em continuar madrugada e à tardinha o Sol não se queria pôr, nele os direitos humanos prometiam florir nos cravos vermelhos para um povo “Zeca”. Naquela alvorada é derrubado um regime autoritário que não tinha lugar para a expressão dos direitos humanos e sociais mais fundamentais.

Por alguns tempos nos sentimos povo no despertar da sua consciência para uma sociedade a caminho nas esperanças partilhadas. Ideologia com fé de premeio ajudam a suportar a ditadura da realidade!

O ardor do sol da esperança era tanto que os cravos começaram a murchar. O povo que se tinha levantado para se pôr em movimento depressa se viu confrontado com o estaticismo dos contra-movimentos ideológicos. Da luta contra o incrustamento dum sistema surgiu a desilusão da instalação dum outro mais flexível mas que peca de erros semelhantes. De facto, a sociedade e o ser humano são processos e não sistemas imóveis. O povo no seu instinto processual viu-se justamente envolvido na defesa dum processamento que não se queria sistema empedernido auto-suficiente e estático. Por isso do mesmo instinto e desejo de mudança do outrora permanece no povo o desejo da mudança do hoje.

Aquela aurora promissora foi porém em pouco tempo ensombrada pelas nuvens ideológicas estáticas que concebem o mundo em termos hirtos de imperialismos. Assim dum imperialismo de estilo americano se quer passar ao outro imperialismo de cunho russo. Os problemas colaterais da revolução tornam-se mais presentes. As vítimas do regime Salazar dão lugar às vítimas do regime soviético (abandono dos pretos colaboradores do sistema português à chacina do imperialismo russo com a incondicional fuga dos portugueses que há centenas de anos viviam e se tinham identificado com o “ultramar”- “os retornados”).

O 33° aniversário da revolução dos cravos constitui uma oportunidade para todos os portugueses participarem na democratização presencializando a revolução dos cravos já demasiadamente encrostada. Outrora houve gente valorosa – não salvadores! – que surgindo dum sistema autoritário soube renová-lo; do sistema de hoje mais aberto e livre, seria de esperar que surjam os transformadores do sistema de hoje. Não chega lutar contra os ópios de ontem, é preciso estar atentos aos de hoje.

Dos cravos é a cor
A vermelha também
Ao jogo das cores
O povo aí vem

Revolução é processo. A liberdade não é pacífica, não o pode ser!

Neste sentido, viva o 25 de Abril, ontem e hoje!

António Justo

António da Cunha Duarte Justo

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Conferência da Segurança Internacional de Munique

Um mundo cada vez mais instável
Numa altura em que o mundo se encontra ameaçado por crises e inseguranças como nunca, encontram-se reunidos 250 políticos e especialistas na 43ª, Conferência de Segurança internacional em Munique para tentar sair dos impasses da política internacional.

O quarteto EUA, Rússia, EU e ONU têm interesses próprios demasiado contraditórios que têm levado a política internacional a marcar passo, há já muito tempo. Por detrás dos conflitos, Irão, Iraque e Palestina escondem-se os interesses estratégicos e controlo da energia e das vias internacionais de cada um.

Como factor de insegurança revela-se o Presidente Putin, um autocrata dum país em que não há liberdade nem independência parlamentar mas, que quer pôr em jogo o trunfo da cartada russa por toda a parte. Com a aventura americana no Iraque a Rússia ganhou terreno no médio Oriente.

A conferência não terá grande sucesso no que respeita ao impedimento do armamento atómico do Irão porque a Rússia vê aqui uma óptima oportunidade de estar presente no palco internacional e de poder pressionar europeus e americanos com a cartada do Irão. Por seu lado o Irão ri-se das iniciativas da Europa, América e da Rússia porque sabe que entre eles há interesses incompatíveis. Assim mais uma vez não conseguirão uma união no agir. Não chegarão a acordo nas sanções económicas a determinar para o Irão, previstas pelo conselho de segurança da ONU. A chanceler alemã Ângela Merkel apelou ao Irão que se sujeitasse incondicionalmente às exigências internacionais para não ficar internacionalmente isolado. Certamente em vão.

O armamento nuclear do Irão será o grande problema do futuro e para mais num país com um presidente que nega o direito de existência a Israel.

O mundo caminha a grandes passos para uma grande crise atómica e para uma instabilidade estrutural. É certo que as crises não se podem solucionar apenas com meios militares.

A Nato encontra-se em grande crise como se torna visível na sua intervenção militar no Afeganistão. Aqui a sua responsabilidade global é posta à prova não havendo colaboração suficiente entre os poderes ocupantes. A Europa segue uma estratégia e interesses diferentes dos americanos. Desde 2003 a EU já fez duas intervenções em África sem o apoio da Nato. A EU está disposta a maior engajamento militar, mas à própria conta e responsabilidade. Está interessada na África e no controlo internacional do óleo. Por outro lado a Alemanha está interessada no controlo do mercado livre mundial e na manutenção livre das vias marítimas mundiais. Como país exportador número um a segurança da economia alemã depende da estabilidade e segurança nas vias de comunicação.

Por outro lado a segurança mundial dependerá no futuro, sobretudo da segurança da energia.
A estratégia americana neste sentido vai do médio e próximo oriente até ao mar Cáspio. Os americanos querem quebrar o monopólio russo do transporte de óleo e do gás. Para isso querem que as matérias-primas do mar Cáspio sejam conduzidas ao oceano Índico e Turquia. Com esta estratégia seriam diminuídas as receitas do transporte de óleo e gás com as quais a Rússia financia em grande parte o orçamento nacional.

Exteriormente a conferência manifesta-se interessada na segurança mas no seu sei interno há grandes lutas, visíveis nas declarações de Putin.

Por tudo isto não se poderá esperar estabilidade internacional. O empenho militar é muito precário sendo ele a ponta de lança de interesses económicos. Se se pretende realmente criar mais segurança e paz terá que se mudar de estratégia. Para isso ter-se-ia de usar de meios pacíficos com apoio eficiente ao desenvolvimento dos países pobres e um comércio mundial mais justo.

Com a Alemanha à frente a Europa poderia servir de modelo para uma política internacional racional e eficiente. Esta hipótese parece tornar-se cada vez mais distante se tivermos em conta que se tem dado progressivamente uma militarização da política europeia.

António Justo

António da Cunha Duarte Justo

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Democracia ou marxismo camuflado ao serviço do turbo-capitalismo

Em nome da liberdade cada vez nos encontramos mais presos à soga de leis labirínticas. Sob a aparência dum pluralismo partidário legitimamos um sistema autoritário que, entrando paulatinamente pela porta do cavalo, cada vez nos domina mais. À sombra dum estado paternalista fomenta-se um estado proletário. O que se torna preocupante é o facto de apenas uma nomenclatura bem enredada em ordens e burocracia estar satisfeita.

A democracia encontra-se doente e desorientada. Cada vez tem menos valores comuns que a autorizem. Parece viver-se em tempos de diletantismo geral.

Por um lado espera-se tudo dos políticos e por outro não se confia neles. Um dilema que mostra a própria impotência e contradição dos descontentes. O problema é grave tornando-nos também dependentes duma democracia moralista, à tona dos sentimentos, cada vez com menos valores comuns.

Os políticos não falam claro. Vivemos cada vez mais num sistema de grupos de interesse complicado. Na complicação é mais fácil iludir porque esta favorece a falta de transparência que ajuda os intermediários. Dela vivem os interesses de instituições jurídicas, políticas, sociais e económicas. Uma sociedade de bastidores e com muitos biombos! Um sistema bom para iniciados e “oportunistas esclarecidos”. Estes vivem bem na sua coutada.

Pode haver da parte de algumas personalidades e políticos interesse numa mudança para melhor só que estes, ao depararem com os coutos do próprio partido ou dos lobies, acomodam-se. Política não se pode reduzir a lobiismo. Os políticos estão dependentes da arbitrariedade das multinacionais. Para estas o que conta são os postos de trabalho mais baratos à custa das democracias. Hoje vivemos a ditadura do globalismo. O bem-comum das economias europeias é posto à disposição dos especuladores accionistas internacionais. Processa-se um transfer de capital das camadas baixas e médias para as grandes multinacionais. Se o transfer fosse feito em benefício das economias mais fracas ainda se compreenderia. Os políticos que agora andam ao sabor das ondas da economia sabem que um dia podem nacionalizar as empresas mas a que custo? Uma outra grande possibilidade é o recurso à bancarrota da moeda a nível internacional.

A vontade popular perde sentido neste contexto. Por outro lado, os políticos nacionais reduzem-se a meros aplicadores das normas europeias. O estado entre a alternativa de seguir a vontade dos investidores e a vontade popular vê-se obrigado a optar pela primeira. Os políticos não o podem dizer publicamente ao povo porque então isso desagradaria os investidores que querem explorar à vontade e sem má consciência. Assim os políticos são reduzidos a transmissores e legitimadores do anonimato de irresponsabilidades ilimitadas.

A nível político europeu os políticos mostram-se cobardes não deixando o povo votar para a Constituição. O povo torna-se apenas pretexto! Há apenas um problema atmosférico: é que o povo cada vez nota mais o que se passa, mas, como é povo, contenta-se com o sofrer.

Se surgem alguns “populistas” logo os políticos se insurgem contra eles esquecendo que também eles não respeitam a vontade popular ou não intentam nada para a mudar. A democracia tal como outros sistemas não suporta nas suas estruturas pessoas que pensem por si mesmas. Corrijo, a democracia não, mas sim aqueles que se apoderaram dela. Falam da diferença mas não lhe dão espaço.

Numa noite de insónia democrática!
Com os representantes dos partidos corre-se o perigo de se caminhar para os mesmos problemas que cometeram as ditaduras comunistas: esquecerem o povo e confiarem apenas na nomenclatura, no aparelho administrativo dependentes dum comité central. Enquanto que os comunistas puseram o povo na rua os “democratas” parecem encurralá-lo simbolicamente no parlamento.

Os partidos formaram-se e retalharam o povo no parlamento. A princípio cada partido tinha uma filosofia própria, a sua verdade. Como o povo não mastiga filosofia faz-se uma açorda parlamentar. Cada partido mete no panelão parlamentar o seu tempero. Na mistura não se preocuparam com os problemas estomacais do povo. A princípio ainda afirmavam que o segredo da receita estava no mexer da mistura. Por fim, à vontade, acordaram entre eles que o importante do guisado estava no cheiro. De facto não consta que tenha morrido alguém por causa do cheiro. Muito menos ainda do cheiro a democracia! Entretanto nalguns meios a democracia já tresanda e o povo, de tanto cheirar, até parece que tresanda também. Em compensação os homens da colher de pau cada vez são mais iguais e cheiram mais a próximo.

Nos partidos, a princípio, ainda havia homens com opinião. Como agora o que importa é o cheiro esses homens baixaram a bola e em vez deles surgiu a opinião da máquina, a opinião da fracção parlamentar. Reduzidos a cozinheiros, os parlamentares desabituaram-se de pensar porque bastava açorda. Como o povo só podia levantar a mão de quatro em quatro anos esqueceram-se dele também. Como o povo tem memória curta esqueceram-se uns dos outros. Em quatro anos acontece muita coisa! E no fim resta um estado de tachos.

Entretanto os parlamentares depois de tanta açorda e de tantos tachos já nem o cheiro distinguem e adquirem também qualidades de mimetismo. A diferença apenas está nos tachos. Não importa o que vai dentro. O progresso é de tal ordem que até a cor dos tachos se torna mimética também. Os nossos políticos são cada vez mais sociáveis, mais socialistas. Na açorda que fazem metem tanta droga que cada vez nos amarra mais ao sistema! Sem notar bebemos todos a mezinha marxista. Cada vez nos encontramos mais amarrados, nos sentimos mais dependentes, tendo a impressão de nos tornarmos proletários dum estado ordenador. Basta o cheiro a democracia ao som do canto das liberdades abstractas, ou melhor, dos outros! Entramos num estado gasoso, num estado de graça. Prescinde-se do pensar. Se antigamente a religião era o ópio do povo hoje é o pensar, o pensar correcto. Em nome da igualdade e do progresso acaba-se com as cabeças, com as diferenças, bastam braços e bocas!

A ideologia é tão forte que até a natureza é envolvida: as árvores maiores são fascistas. Quem sobressai é fascista, a não ser que tenha engordado à conta da ideologia, do partido. Para melhor viver será melhor amputar parte das funções cerebrais.

O povo cada vez vai tendo mais a impressão de que quem ganhou com a revolução foram os ardinas da revolução. Para estes os postos, para o povo as tais liberdades democráticas que geralmente mais interessam aos sempre novos “burgueses”. Os lugares dos tais fascistas de ontem são ocupados pelos democratas de hoje. Os primeiros pediam disciplina e retenção ao povo, os novos pedem apenas os votos de quatro em quatro anos e mais impostos, oferecendo em contrapartida a liberdade e igualdade no sofrer. Aqueles exploravam individualmente, estes anonimamente. A pequena diferença é que estes são legitimados pelo domesticado povo.
Presos ao obscurantismo dos factos falam de liberdade no seu mundo servo.

Para possibilitarmos o exercício duma democracia mais humana teremos todos que nos co-responsabilizar na construção dum povo digno. Para isso será necessário o trabalho individual e colectivo no fomento duma nova mentalidade. Doutro modo correremos o perigo de continuarmos a ser narcisistas aprisionados na fortaleza da normalidade, do habitual. Então as elites continuarão a ter razão com a sua desculpa para não ouvirem nem ligarem: na casa sem pão todos ralham e ninguém tem razão.

Uma recomendação: Limite de mandatos para funcionários superiores seria uma medida contra a corrupção. Além disso não permitiria que pessoas como Mário Soares descessem tão baixo impedindo-os de estragar a sua figura.

Não chega viver e deixar viver. Confiança é boa mas controlo é melhor!
Se estamos verdadeiramente interessados no fortalecimento da democracia temos que lhe dar mais possibilidade de participação, tal como na Suiça.

António Justo

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