Assumir de novo a Bandeirância da Civilização Ocidental
António Justo
Como reacção ao meu artigo “Falta de Cultura da Europa face a outras Culturas mundiais – Europa Berço da Cultura jurídica da Humanidade” recebi, dum digníssimo professor duma universidade de Lisboa, o seguinte reparo: “Penso que, na apreciação dos três pilares europeus, lhe faltou a identificação de um quarto: o braço armado da projecção lusitana da Europa”. O Professor tem razão e motivou-me a reflectir sobre o assunto e a dedicar alguns textos ao tema, sob o meu ponto de vista.
Status quo da Situação ocidental
Se do encontro da fé de Israel, com a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma nasceu o grande projecto cultural europeu, o seu agir ganhou expressão, a nível global, no “peito ilustre Lusitano”.
Os descobrimentos são, certamente, o quarto pilar da cultura europeia, o pilar do saber de experiência feito que Portugal soube concretizar. Sagres resumiu o saber (doxia) europeu e tornou-se no lugar da ortopraxia. Portugal ao saber-se Europa descobriu-se mundo. Por isso onde se encontra hoje um lusófono lá pulsa a alma toda do mundo.
Conseguiu-o porque resistiu ao espírito oportuno do tempo indo-se assim “da lei da Morte libertando”, como bem descrevia Camões n’OS LUSÍADAS dos descobrimentos. O alemão R. Schneider, grande conhecedor da alma portuguesa, diz no seu livro “Camões / Philipe II”p.120 “nos Lusíadas não se trata apenas dum povo, mas sim da Humanidade”. Sim, da humanidade que actuava no Portugal de então. Camões canta a alma portuguesa (ainda inteira) que, não se deixando levar pelas lutas/modas de reforma particularistas de então, manteve a visão filosófica cristã global da humanidade, cultivada à sombra das ordens na tradição de Carlos Magno, longe dos interesses meramente individualistas.
Portugal foi outrora o primeiro a expressar e a realizar o sentir e a pujança do ser europeu tal como hoje é o primeiro a expressar a sua fraqueza. Hoje como então Portugal é o palco de pontos altos da mudança. Outrora virada para o exterior e hoje de volta, para depois da crise moral e cultural se encontrar.
A Europa medieval, aquela velha árvore que depois de ter estendido as suas raízes às diferentes civilizações até então vividas, floresceu no Renascimento. Desta florescência surgiu o ramo protestante, que começa a afirmar mais o valor do indivíduo, do eu (factor emancipador, a individuação) enquanto o catolicismo continuou a acentuar mais o valor da comunidade. Dois polos necessários, na vida social, que se encontram hoje em radical conflito. De facto, a Idade Média, que é mãe, comunidade, é nós, deu à luz o eu (individuação). Este ao tomar forma no movimento emancipatório protestante sente a necessidade de se afirmar contra a mãe. Mãe e filho afastam-se. Hoje temos uma europa de filhotes sem mãe, que se extenuam no seu cacarejar e na contemplação das próprias penas. A Europa ao combater a maternidade torna-se infecunda e assim sofre o mundo todo. Não suportamos a diferença nem a coexistência de extremos, num condicionalismo de reduzir e simplificar tudo a dimensões uniformes e rectilíneas.
O ressentimento dos deuses germânicos contra Roma, no Renascimento, deu lugar ao desejo de liberdade que se fora articulando através da Idade Média e culminou na ruptura protestante com Roma. Assim se iniciam grandes convulsões religioso-político-sociais, e surge um novo sentir da vida, uma nova ordem económica, o capitalismo. A Europa rejuvenesce e transforma-se na procura de diferenciação e emancipação. A vertente protestante culminou no iluminismo, na proclamação da constituição dos USA e depois na revolução francesa e no enfraquecimento das monarquias. Esta importante vertente do desenvolvimento da Europa afirma o eu (a individuação) recalcando o espírito comunitário, o nós. Se na Idade Média a consciência individual ainda vivia em parte sob o manto da letargia institucional (nós à custa do eu) com o movimento emancipatório que ganhou forma no protestantismo começa-se a afirmar o eu (indivíduo) à custa do nós (comunidade). (Este movimento, encontra, actualmente, o seu extremo macabro no capitalismo liberal que reduz a pessoa a ego mercantil e transforma a essência do ego numa metafísica de consumo deixando o ser humano cada vez mais só no deserto do seu egoísmo.)
Com os descobrimentos, enquanto na Europa os países se ocupavam consigo mesmos, Portugal já adulto (numa Europa ainda adolescente) assume em plenitude a mundivisão católica e burguesa, aliando-a ao desejo do novo e do “saber de experiência feito”. Portugal precoce realiza o ideário europeu que florescia então nos jardins da Lusitânia. A Europa alcança, através das viagens portuguesas (descobrimentos), um novo panorama do mundo. Este em vez de afinar os espíritos do sentir universal deu lugar à afirmação dos egoísmos nacionais e ao instinto colonizador. Em vez do sentimento do nós católico e universal temperado pelo outro polo, o protestantismo, apenas este encontra expressão na afirmação particular seja a nível estrutural seja a nível individual. A Europa afirma-se na divisão, o norte contra o sul, o politeísmo contra o monoteísmo mitigado. O mundo, à imagem da Europa, afirma-se então na divisão e no contraste em vez de integrar os polos contrários como pretendia o eclectismo complementar da alma portuguesa expresso pela ínclita geração. O despertar dos individualismos nacionais leva à afirmação do particular sobre o comum. Impõe-se a ganância à curiosidade, projecta-se a puberdade contra a maturidade. Os deuses do norte vingam-se contra os do sul. O politeísmo intelectual e político, então iniciado, tudo justifica, restabelece a mentalidade bárbara, não reconhece pai nem mãe, chega-lhe o bordel.
Chegamos a um ponto de puberdade negadora duma tradição que lhe deu o ser e que é levianamente negada por uma sua parte. Esta não está consciente de que a negação provém da acentuação exagerada do outro polo que constitui a sua afirmação, o seu ideário. Entretanto o espírito emancipatório acentuou-se de tal modo que reprimiu o aspecto comunitário, só quer machos, a feminidade/maternidade constitui obstáculo ou é sufocada pelas estruturas vigentes, demasiado masculinas. Quer-se uma sociedade sem comunidade, querem-se filhos sem mãe. O ressentimento que hoje se expressa contra instituições, especialmente contra a EU, contra a Igreja católica, é o mais visível sintoma dum individualismo exacerbado que não conhece pai. O politeísmo da opinião não suporta a procura da verdade no sentido da unidade, circula em torno de si mesmo sem conhecer o sentido linear ascendente da evolução natural, individual e cultural.
A crise actual é uma crise cultural e moral duma civilização que perdeu o seu ideário; é o resultado da acentuação do eu contra o nós, do objecto contra o sujeito. Socialismo e capitalismo sofrem do mesmo vírus epocal. Todo o mundo sofre em consequência da crise espiritual europeia que vendeu a alma ao Mamon para continuar a afirmar o seu polo individualista. O capitalismo exagerado machista foi-se afirmando à custa da comunidade até ao extremo de hoje se afirmar contra ela, não tendo escrúpulos em destruir os próprios Estados.
Os países lusófonos, em vez de assumirem a nova mudança de consciência individual e histórica deixam-se destruir, sem tecto metafísico, seguindo sem reflexão própria os novos deuses e cultos que, de maneira anónima, em nome da emancipação se afirmam contra uma comunidade que albergue todos na complementaridade. A lusofonia, para assumir a bandeirância do progresso, tal como o Portugal de outrora, terá de descobrir-se a si mesma e de consciencializar-se e assumir o tecto metafísico que dê consistência à sua acção.
Outrora, enquanto os povos da Europa combatiam pela definição de suas identidades políticas, Portugal, que já tinha encontrado a sua identidade nacional, pôde dedicar-se à tarefa original de levar ao mundo o espírito europeu. A bandeirância que fez nascer Portugal é a mesma que o torna adulto e o leva à expansão. A revolução axilar do renascimento que explode por um lado no protestantismo na procura duma individualidade que se expressa no capitalismo e no espírito cívico, afirma, por outro lado, o seu carácter global (católico – aspecto comunitário) na continuidade espiritual da escola de Sagres.
Hoje encontramo-nos numa época axiomática da História na qual a crise não é só de ordem estrutural/mental mas espiritual. Os fundamentos que deram origem à grande árvore da civilização ocidental são descurados e as suas raízes sistematicamente amputadas. Em vez de nos preocuparmos com o que deu vida a esta árvore, serramos nela o próprio ramo em que nos encontramos. Depois da insónia desta crise surgirá porém o sonho que renovará o mundo; até lá os ventos da contradição continuarão a destruir pontos altos da nossa civilização.
Ao ressentimento dos deuses germânicos, com o seu espírito capitalista, sucede-se agora o ressentimento socialista aliado à derrocada dum capitalismo liberal injusto que, como um polvo, procura abrir os seus tentáculos num globalismo aniquilador de nações. Junta-se a feiura do turbo-capitalismo à fealdade do comunismo materialista na tarefa de reduzirem as estruturas de Estado a seus veículos de ideologia trituradora da pessoa.
O mito da Europa como vaca degenera-a agora em touro de cobrição. Como um touro de olhos fechados sai do curro ocidental para dominar o mundo, destruindo a cultura que lhe deu o ser, não respeitando os ecossistemas culturais. É verdade que as “constelações postnacionais” de que fala o filósofo alemão Habermas já não podem resolver os seus problemas sozinhas pressupondo isto o abandono de individualismos nacionais e culturais mas sob o tecto metafísico civilizacional que lhes deu o ser.
Se o desejo de individuação, no renascimento, deu lugar à “monolatria” protestante, o modernismo volta ao politeísmo anterior à civilização. Deixou-se de considerar o mundo como um conjunto de ecossistemas sociais com as suas leis e ordem inerente para os transformar em biótopos individualistas em que as divindades se sobrepõem umas às outras tornando notórias as fracturas a nível ideário, estrutural e pessoal. A nível ideário e cultural assiste-se à batalha do politeísmo contra o monoteísmo. Se o conflito surgido do renascimento (dois modelos de vida sob o mesmo teto metafísico) era expressão da força dum sistema e duma vivência, a crise a que assistimos hoje revela-se decadente (sem sentido, destroem-se modelos à margem dum ideário colectivo que justifique tal actuação). O saber deu lugar à opinião fundada em castelos no ar. A nação deu lugar a estados à mercê de mercenários que em nome duma europa mal-entendida se afirmam. Estes, para se sentirem mais à vontade mandaram a cultura ocidental para rua sem qualquer guarda–chuva espiritual. Resultado: chuva ácida nos biótopos naturais e nos ecossistemas culturais.
O capitalismo e o socialismo, dois filhos pródigos do cristianismo, depois de terem provocado grandes buracos no ecossistema espiritual ocidental, parecem, não querer voltar à velha casa paterna onde, juntos, a poderiam renovar, engrandecer e projectar. Preferem seguir o poder da monocultura masculina islâmica e a desorientação do politeísmo oriental. Nestas, o indivíduo encontra-se indefeso, à chuva, e sem privacidade com a própria divindade. Desprotegido e desalojado dos ecossistemas sociais, fica mais disponível para o mercado e aberto a ideologias baratas e a uma oligarquia anónima mundial.
Enquanto o espírito europeu envelhece, no Brasil e nos países da lusofonia, a antiga vontade poderia erguer-se. A lusofonia surge como lugar duma nova missão no mundo. Nela se podem congregar os anseios do velho Portugal com as ânsias das novas gerações. Como parte do legado, visto da perspectiva portuguesa temos o espírito universal católico, e os escritos de Camões, de António Lopes Vieira, de Fernando Pessoa, etc. Não chega apostar apenas em ideologias, estas passam como os ventos entre a alta e a baixa pressão, é preciso ter-se presente o eixo que tudo suporta e dá continuidade a quem conta com o futuro; para os lusófonos, este eixo é o cristianismo com a sua perspectiva mística do triálogo. A filosofia e a espiritualidade cristãs terão de, num processo de aculturação e inculturação, se tornar num verdadeiro tecto metafísico do mundo da lusofonia. Neste sentido será necessário manter o modelo católico calibrado com o espírito protestante. A bandeirância outrora assumida por Portugal na Europa espera por ser assumida e renovada por todos os países da lusofonia. A nova bandeirância já não será de carácter expansionista para o exterior mas para o interior, da quantidade para a qualidade num espírito integrativo e de complementação num processo de integração de espírito e matéria, de ecologia e tecnologia. A força em toda a natureza vem de dentro para fora muito embora seguindo o chamamento da luz; o mesmo se diga dos ecossistemas culturais e dos seus biótopos humanos. Não podemos continuar a cultivar árvores repelindo a floresta.
No passado dominou o princípio dialéctico (um sistema de pensamento redutor elaborado na contradição/dissecação) como princípio de pensamento e da realidade que se reflecte na nossa maneira de organizar a sociedade e a vida individual numa espécie de dicotomia entre indivíduo e sociedade, superior/inferior, sujeito/objecto. O novo pensar será trinitário equacionando o problema dos contrastes num triângulo circular ascendente. Numa cadeia de relações infinitas dum contínuo tornar-se, num processo espiral ascendente que transcende o espaço e o tempo na dinâmica da união que se não limita a um estado momentâneo mas se expressa na sua dinâmica relacional, numa nova Realidade que engloba o real aparente despetreficando-o para um estado fluido, para lá do momento e das amarras da definição que são o espaço e o tempo. A relação torna-se então processo pessoal e não estado, deixando de ser objectivável no todo e no particular. A Realidade desinforma-se para se consciencializar do ser in do processo in-formar. Então a relação torna-se pessoal, é tornar-se, essência relacional; o in (do in-formar antes e depois da forma numa dinâmica de pai-filho-paráclito) da a-perspectividade resolve a aparente contradição matéria-espírito, indivíduo-sociedade, eu-tu, na dimensão da vivência superadora da alternativa através do paráclito. O indivíduo passa a ser pessoa e a sociedade a ser comunidade. Nós só exercitamos a perspectiva funcional da relação e por isso petralizamo-la numa ou noutra identidade. Em Jesus cristo exclui-se a exclusão mútua de matéria e de espírito. Nele (JC) torna-se visível uma unidade dinâmica do tornar-se da petrificação (J) e do fluido (C); a relação duma com a outra possibilita-se num processo de mudança concretizado na relação pura (o paráclito). Aqui dá-se já não um progresso quantitativo (estados), negador do anterior ou afirmador do posterior, mas uma dinâmica da relação pessoal (de ipseidade) em que o outro participa do espírito comum a toda a realidade em relação. A base constante é a divindade subjacente a tudo, a todos comum, num processo universal sem funções dado a relação ser pessoal num eterno tornar-se (“eu sou o tornar-se”, dizia Deus a Moisés) para lá do acontecer. A oposição dialéctica do eu/tu, eu/objecto resolve-se na realidade trinitária dum eu-tu-nós. Passamos a não ter apenas o diálogo como o contrário do monólogo, como relaç1bo entre objectos, mas o triálogo como integrador do diálogo, do monólogo e do “objecto” num processo de sujeito-sujeito. A dialéctica passa a ser integrada como momento do processo e a não ser vista como realidade ou espelho da mesma. Isto tem como consequência uma outra forma de vida e de estar superadora duma pedagogia, duma política e duma economia meramente objectivadora.
Uma nova filosofia da vivência e de Estado pressuporá a união da filosofia com a mística, uma aplicação prática da filosofia trinitária.
A Hora da lusofonia está a chegar, precisam-se faróis por todo o espaço lusófono. Para isso terá de coadjuvar-se modernidade e tradição, maternidade e filiação, o indivíduo passar a ser pessoa e a sociedade a ser comunidade. “O espírito do mundo desce ao Brasil e abandona a América iankye. A China cairá brevemente com a sua crise demográfica e é preciso preparar a Lusa- áfrica pela mobilização do Brasil”, confessava-me o amigo. (continua)
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo, Pedagogo e Jornalista
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