A Vida desafia-te no Outro

O que é que a Vida faz de ti e que queres fazer da tua Vida?

 

António Justo

Há meses encontrei um par de amigos embebidos um do outro: Ele esbelto e nobre, todo leão, ela jeitosa e distinta, fazia lembrar uma gata persa. Viveram alguns meses primaveris mas já se nota neles o desgaste rotineiro, com o nevoeiro outonal a apontar para um inverno já sem folhas e com poucos vislumbres de nova primavera. Os dois são personalidades nobres e extraordinárias, jovens ainda! Como todos, sofrem porque não notam que o que querem mudar e combatem no outro é a própria parte (polo) ainda oculta que cada um de nós traz em si, sem se aperceber dela. Homem e mulher são dois polos duma mesma realidade: o Homem integral, a humanidade!

 

Por vezes, perdem-se no jogo das escondidas, num tactear temeroso de interpretação recíproca de gestos e intenções. É certo que o gato, quando quer o carinho de alguém, não se vem logo pôr no colo da pessoa. Primeiro começa por encostar-se às coisas que se encontram em redor dele, para se fazer notar, à espera que se lhe passe a mão, para, poder então, prostrar-se a seus pés. Neste rodeio esconde o seu orgulho e satisfaz a necessidade de maneira formal.

 

Depois das intimidades primaveris estão a acentuar a parte superficial (fenomenológica) do ser (o ego), num jogo fatal de distanciamento e aproximação no tapete do pensamento. Ela ama-o profundamente mas tem medo de ser desiludida duma imagem de homem distante; ele ama-a também mas tem medo da desilusão duma imagem de mulher distante. Chego a ter a impressão que os dois se vingam, um no outro, da mãe (da mulher e do homem) em reparação duma infância inocente perdida. Adoram a mãe em actos de feminidade e masculinidade distorcidas. Nos intervalos lambem as feridas. Enquanto o cordão umbilical subsistir, maior será o desejo de liberdade e maiores serão as estratégias inconscientes para se não libertar da mãe (da fixação num só polo). O corte do cordão umbilical levará à construção dum eu não dependente, dum eu que integra o outro nele mesmo. Doutro modo este será sempre um obstáculo a uma união que se tornaria, inconscientemente, num obstáculo à simbiose primeira e que se quer manter à custa duma autonomia simulada. Na relação, nuns acentua-se mais a necessidade de se definirem pela demarcação, noutros pela simbiose.

 

Os dois sofrem de dores que por mim passaram e passam: as dores que geram a diferença das estações e deixam a voz do vento (tempo) nos corações. Ele sofre porque a queria mas nota que ela resiste a ser à maneira como ele a gera: à sua imagem e semelhança ou pior ainda à imagem e semelhança de suas ideias e ideais. No seu sofrer, ele refugia-se nas alturas intelectuais da águia, cada vez mais distante da natureza e mais queimado pelo sol da razão, não se apercebendo dele próprio, devido a tanto ver.

 

Ela, hipersensível, sofre praticamente da mesma razão. Só que desce ao profundo dos sentimentos e, encharcada de tanta emoção, por vezes, pouco vê além dela, devido ao nevoeiro emocional que a envolve.

 

Se não fosse o problema comum, realizariam neles o paraíso terreal antes da queda de Adão! Um problema conhecido de cada um, numa vida de espreita atrás do tempo à espera do próprio momento. Os dois sofrem como cães de orelhas pendentes e de desejos castigados, e fingem coragem e soberania de um perante o outro: aquela soberania construída que os impede de se encontrarem porque ainda não descobriram os opostos a descobrir, neles mesmos. Concebem a vida e o outro como dia com sol sem amanhecer nem anoitecer. Não seria oportuno adiar a vida numa concepção. Também não chega viver um dia de cada vez! De facto, o nosso futuro pode ser atropelado pelo presente e afogado na cisma de porquês e de soluções!

 

Na ressonância da vivência quero descer à cave da vida e, contigo homem contigo mulher, fazer uma caminhada que é vossa e minha. Quando falo de ti, és tu e ele, ela e tu, e eu também! Em nós se juntam os polos opostos dum acontecer mais abrangente mas que persistimos em esquecer! Esquecemos a lei da complementaridade duma realidade maior  e de que somos uma parte!

 

Para possibilitares o verdadeiro encontro com ele/ela, terás de te concentrar no teu âmago e deixar de viver na e da distracção para te poderes reconhecer no todo e consequentemente nela/nele também. Ao encontrares-te no todo já “tens” o outro que então descobres em ti. Ele deixa de ser objecto, desejo ou projecção. Aí no encontro descobres a humanidade, a tua plenitude, passando a sentir o prazer da ressonância da feminidade e da masculinidade (do eu e do tu no nós), tudo em ti mesmo: os polos que pareciam antagónicos ao serem reconhecidos como parte essencial de ti mesmo geram novas energias e uma criatividade de auto-realização. A mesmidade ilimitada que surge da vivência da essência de si, de Deus e mundo no próprio centro, o eu-nós espiritual, entra na ressonância da relação pessoal e tudo compreende e supera. Então torna-se natural reconhecer a própria vulnerabilidade e nudez e deixar-se envolver e entregar ao outro; então torna-se natural perdoar e pedir perdão, desculpar e pedir desculpa; o perdão limpa e purifica o nosso espírito e fomenta a maturidade e a metanoia. As feridas causadas pelo querer ter razão revelam-se então como sombras que encobrem o outro e não passavam, muitas vezes, de formas de autopunição. Urge pedir perdão também a nós mesmos para podermos reconciliar os opostos e assim viver em paz connosco e com os outros. Torna-se importante pensar e questionar o próprio pensamento, para o poder então sentir. Torna-se importante ordenar a hipersensibilidade para se poder integrar a racionalidade do outro. Como se vê, somos todos muito iguais e muito diferentes; somos constelações onde acontece e se cruzam o eu, o tu e o nós.

 

Contas com o soalheiro da vida alegre mas não com o escuro da dor. A dor, porém, é a brisa que te leva para lá do tu e do eu, o lugar onde o tempo descansa e se perscruta a eternidade. Quando chegas a esse lugar, o passado e o futuro descansam para dar lugar ao brilho da luz imortal a cintilar no teu interior. Quando a chuva cai e o vento norte zune no teu ser, procura descer as escadas da meditação até ao teu interior. Uma vez lá, sentes o calor da energia divina a subir em ti. Então os nevoeiros do medo, da agressão começam a evaporar-se como o orvalho em manhã risonha. A paz e a alegria penetram em ti e tu emerges num agora eterno. Então as preocupações, desejos e receios não passarão dum bater distante de ondas à superfície dum mar profundo. Nesse oceano a minha alma ganha asas, chora, fala e canta e leva-me com ela ao cimo da montanha donde avisto o meu corpo, o meu ego, e sinto uma força maior que o puxa.

 

Na dificuldade, reservo alguns momentos para mim e começo por inalar a força positiva, a graça divina, que sinto a soprar em mim. Então o meu eu profundo e superior (ipseidade) – a minha permanência e a subsistência do mundo em mim – ilumina as dificuldades. Passo do pensamento e das sensações para o estado da intuição. Aí na cave do meu ser surge a fonte do bem e a energia da afirmação que transforma a disposição negativa em humor positivo fazendo reconhecer e sentir o aroma e o colorido da vida. Aí inspiro o bem, o belo e o amor num exercício de autossugestão que me leva a sentir o amor universal. Passadas as camadas do ego entro no meu âmago que participa do ser divino, o meu eu espiritual. Neste estado da minha ipseidade brota a vida eterna, a sabedoria e a força – a vida divina envolta no meu ser terreno.

 

Para embarcar e me compadecer com o outro com Deus e com o universo, não chega a introspecção, o discernimento; também é necessária a fé: a força positiva ascendente. No fluxo dos acontecimentos também o JC (Jesus) desceu aos infernos onde se encontram os indefesos e desamparados para os levar ao bem. Também eu, também tu descemos com ele para nele erguer a vida.  A experiência da paciência revela que tudo passa e que a graça, a benevolência, tudo sustenta. O desânimo leva-nos a olhar para o chão, prendendo-nos a ele. Fomos, porém, feitos para andarmos direitos e quando caímos nos levantar. Se, por vezes, nos encontramos encerrados na caverna, ao interiorizarmos a paciência do silêncio, notaremos o sol que nela entra e nos puxa para o alto.

 

O desapego das ideias e das coisas, como ensinavam os padres da igreja, ajuda a suportar a bagagem dos medos, desejos e preocupações que a vida traz consigo. Ao descermos ao interior da natureza entramos em sintonia com o universo reconhecendo nela e em nós o sol e a sombra dele num jogo alegre com o destino. Se as sombras da frustração desanimam, o perdão dá consolação e paz. A água da vida com as suas ondas, que à primeira vista nos parece avassalar e empurrar para a margem, também nos suporta se tentarmos mergulhar no seu interior.

 

O sol brilha para todos. Quanto mais abrirmos as folhas do nosso ego (autoestima exagerada), dominando-o, mais o sol penetra e dá cor à folhagem da nossa vida fazendo aquecer e pulsar o nosso coração. Então os estames brotam do nosso gineceu, o pólen voa e a seiva corre. A sombra das ideias negativas, as preocupações materiais e espirituais afrontam-nos e muitas vezes nem notamos que o que traz o dia é o Sol.

 

Em tempos escuros, entro no silêncio do templo e, aí, aceito as dores do corpo e das emoções e, ao orar, esses laços se desfazem passando a sentir uma realidade nobre. Então as tempestades das ideias observadas do interior perdem as forças das suas ondas e o intelecto transforma-se num mar calmo. Aí já não guio a vida mas a vida guia-me em mim. No meu interior abre-se uma porta que dá para o jardim do silêncio onde vive a sabedoria. Dele surge a força que arreda a dor. Chamaria a esse lugar, o jardim da Trindade onde o material e o espiritual, a tristeza e a alegria se encontram em acção inspirada e não na reacção. Uma vez chegado ao átrio do silêncio notas todas as forças em oração e sentes os entretons e riqueza de bemóis e sustenidos para lá das vozes do ego. Aí no teu interior sentes o “Reino de Deus”, a verdade em ti. Então, sentado à margem da ipseidade já longe das lutas do ego ouves o rumor do mar e do tempo a dar consolação. A natureza levanta-se e anda e seu coração brilha e pulsa no Sol que chama toda a flora a erguer-se e a segui-lo. Então Deus fala, tu e ela, ela e tu, nós, com Deus, participamos do mistério. Deus beija a terra no Sol e beija o Homem na inteligência. Então no encontro com a natureza, Deus reza em nós, para lá do nosso estádio de deserto, savana ou floresta virgem.

 

A dor e as dificuldades são a nossa escola. Quando à noite me envolvo no universo, apagam-se as luzes do meu orgulho e a nuvem da humildade cobre o deserto do meu ego. Na fraqueza sinto o surgir da força universal que me suporta e traz ao colo. Sinto então a energia das ondas em mim, o outro lado da calma. As ondas e o movimento não deixam que a água do meu oceano apodreça. Sim, o sal da vida é doloroso e o desenvolvimento é esforço, mas imagina a água do mar sem sal nem movimento… O azedo faz parte da vida; ele é o sal que a tempera e lhe proporciona duração.

 

Tenho de procurar a verdade tal como o botão procura o sol no verde para poder brilhar no colorido das pétalas. O que muitas vezes espero do outro é simplesmente a satisfação do meu ego, aquilo que o rebaixa a ele e me opia a mim. Tal como o verde das folhas se perde para ressuscitar nas cores da flor assim deve morrer o meu ego para poder ressuscitar na realidade do novo Adão (o meu eu profundo e nobre). Uma vez transformado o ego, encontro-me no chão da divindade onde se encontram as pessoas da trindade: ela, tu e eu, no nós abrangente do Paráclito. Aí a dor passa a ser o tempero e o movimento a relação entre incarnação e ressurreição. (Para mim, a Trindade é a fórmula da realidade toda numa). À desilusão na vida emocional e à dor na vida corporal segue o louvor (agradecimento) na vida espiritual. A cruz apenas me acorda da matéria para o espírito. É necessidade inerente à vida onde o sol brilha e Deus nos sustém. Quanto mais alto fica o monte do calvário mais se avista da vida. A felicidade não se encontra ao nível do pensamento porque este é alérgico à dor e esta encontra-se no seio da natureza tal como o sangue no nosso corpo.

 

A vida é feita de dor e alegria, como o dia contem a noite. Dor e alegria são mais que experiência; são condição vital. A fuga à dor é uma força instintiva do ego; é prisão à concupiscência sem compreender a necessidade da prisão do ter pena de si mesmo. Por trás dos acontecimentos há energias. Muitos ideais religiosos pretendem uma reacção positiva a diferentes situações. Autonomia e autoestima são valores de inter-relacionamento numa realidade do nós em que floresce o tu e o eu.

 

As bofetadas do destino estão em relação com o ego, a zona inferior do ser. A chave para se apagar as dores exteriores encontra-se no interior do coração. A força e a vontade exercitam-se resistindo à fraqueza.

 

Não reajas ao primeiro estímulo ou à primeira ideia; espera um pouco, conta até dez, não resignes. Se sentes ódio, imagina o sol do perdão que abre o horizonte. Sofre com o outro a dor que ele talvez ainda não sente. Tem compaixão – essa qualidade de sofrer e se alegrar com a natureza no outro. Se te queres superar, ora; na oração – também na oração secular – encontras a ressonância do todo no louvor e no perdão.

 

Há dias, uma pessoa amiga de 35 anos, em S. João da Madeira, pedalava numa bicicleta, quando seu coração deixou de bater. Caiu para o lado, deixando dois filhos, de três e cinco anos, uma mulher e uma grande casa. A dor subiu às casas deixando, banhadas em lágrimas, a família e amigos. O meu amigo Toninha “desceu aos infernos” banhado em lágrimas para depois “subir aos céus” e nos poder receber com um sorriso, a nós que lamentávamos a morte do seu filho.

 

A dor extrema leva-nos ao conhecimento último sobre a realidade da vida. No centro do eu profundo, o instinto e o ego são iluminados. Nestes momentos nem a religião apresenta solução para o mistério da vida, apenas ajuda a recuperar energias para novas etapas num processo de contínua mudança que pressupõe um contínuo repensar e metanoia. Em momentos trágicos, só o espírito pode mover as energias latentes em nós. Humildade e paciência são o plinto para se superar a frustração, o medo e a dúvida. As ventanias do destino obrigam-nos a agarrar-nos ou a deitar-nos ao chão para depois nos erguermos. É a lei da vida. Também as rajadas do Outono tiram as folhas velhas das árvores para darem lugar a novas.

 

Resta-nos a generosidade e a compaixão. Faz bem a quem te faz mal. Ao perdoar, domestico o próprio ego. Na compaixão lavam-se as feridas da lembrança e regeneram-se as lágrimas engolidas. “Perdoai, como nós perdoamos”, diz o mestre da Galileia. Endurecimento é lei da matéria mas não do espírito. É preciso mudar a configuração da vida para poder mudar-nos a nós e mudar a sociedade.

 

Como a natureza segue o sol também nós temos de formar a vontade, uma vontade superior com uma meta teleológica a atingir. Para isso teremos de começar por nos perguntar o que queremos fazer da vida e o que a vida tem feito de nós. Para seguires a vontade superior teremos de depor as armas do ego, que são as armas da convicção e do querer ter razão numa realidade descontextuada. Teremos de entrar na ressonância universal. Para isso, além de procurar o bem é necessário entrar no relaxe corporal e espiritual, exercitando a fé integral. A resistência encontra-se em nós procurando fazer passar toda a energia da vida pelo pequeno fio de resistência que é o nosso ego (eu inferior). O ego serve-se das muletas do pensamento e do sentimento filtrando tudo à sua medida, encrustando a dor. Debaixo das ondas da dor descansa imperceptível a vida interior.

 

É preciso penetrar para lá das crustas físicas, mágicas ou mentais que constituem as órbitas do ego, para poder entrar em esferas superiores na ressonância da compaixão com o universo e com Deus que constitui o centro da ipseidade (eu nobre e profundo). Através do caminho da introspecção que conduz à vivência interior, o corpo e o espírito entram em sintonia começando tudo a fluir no amor.

 

Para facilitares o acesso aos reflexos da graça e à paz interior coloca-te numa posição agradável, inspira profundamente (respiração ventral) o sol e o amor e deita para fora a treva, expira os cuidados que tens em ti. Mergulha na energia divina, ela está em ti, está em tudo e cura tudo. Corpo e espírito mesclam-se um no outro. O corpo é expressão do espírito tal como a natureza é expressão do espírito universal. Tudo surge do espírito e se encontra a caminho dele. O universo vive em contínuo dar à luz, tu e eu, nele, também. A Terra regista no seu ser as diferentes regiões naturais/climáticas e também os ventos com as suas altas e baixas pressões que contribuem para um equilíbrio de afirmação e repouso a caminho de nova fase. Também as pessoas variam entre o entusiasmo e a depressão registando nelas as diferentes mudanças. Constatado este fenómeno comum à natureza e ao estado de alma das pessoas, há que intervir agindo para se não deixar ir na enxurrada de apenas reagir.

 

Amiga, amigo, desce à cave, despe-te da roupagem do ego que te não deixa sentir o calor e a maciez da pele do outro. Confia e confessa-lhe teus entusiasmos e mágoas. Desnudado e paciente transformarás os ferimentos do outro, modificarás aquelas dores que te fazem sofrer a ti e ao outro; elas transformar-se-ão em alegria para ti no outro. Em baixo, no chão da vida, nu experimentas a energia universal. Então sentes a energia do movimento de rotação e translação a convergir em ti e te descobrirás, com o outro, a caminho do ponto Omega de Teilhard de Chardin. Aí se junta a energia masculina e a energia feminina num só ser, o ser adulto. Então as ideias negativas, que são o veneno do sentimento e do pensamento criam novos espaços novas atitudes, salvando-vos um ao outro. Então os géneros não se juntarão para se afastarem. Um não quererá mudar o outro; não será mais professor um do outro, mas sim aluno um do outro. Um é a oportunidade existencial do outro para se poder desenvolver.

 

Desce à cave mas descobre, ajoelhado (a), em oração, na nudez assumida, a causa da resistência dum ao outro que impede a mudança para uma nova acção. Pela nudez passa e corre a água salutar que em vós jorra.

 

Enquanto o ego for movido apenas pelas forças centrípetas da inteligência e da emoção o eu adulto e o outro serão desvirtuados. Então seríamos meteoritos, que embora brilhantes, se encontram em queda livre, à margem das forças ordenadas nas órbitras da criação, faltando-lhe a ligação ao espírito do todo que tudo sustém (trindade!).

 

O Filho do Homem veio em Jesus e no Cristo e nós realizamo-lo também. Nele e em nós se reúne a deidade à criatura. Esta é a perspectiva: agir, ser senhor/a, e não apenas reagir como faz o escravo/a. Até a Terra reconhece que não é autónoma, reconhece e dá lugar ao Sol no seu ser. Fazemos parte duma ordem universal e do mistério para o qual importa orientar o nosso saber e sentir. Se entrares em ti, no âmago do ser, o espírito te guiará e não o ego. Não te tornes dependente; tens a gene do divino. Aceita a ordem universal a que pertences, não te tornes satélite e menos ainda meteorito. Não te sobrecarregues nem sobrecarregues o outro. Cada dia traz, para cada qual, a sua carga e esta já é suficiente.

 

O fatalismo tal como a liberdade da vontade são verdades condicionadas. Não podemos andar sem meta. Como o dia, trazemos em nós o sol e a noite, a alegria e a dor, a transitoriedade e a eternidade. Nós somos o sentido do ser!

 

Antes de tentares mudar alguém ou criticar uma situação ou nega-la pergunta-te primeiro qual é o ensinamento que ela te quer dar. Admite as leis da vida. Não fujas nem fiques na câmara escura do teu ser. Reconhece a luz. Se te orientares pelo espírito as mazelas perdem o brilho que o ego lhes empresta. O bem vence sobre o mal embora aparentemente pareça o contrário.

 

A dor duma pessoa centrada no ego (em si mesma) é mais forte porque não tem sentido. Só o tempo a apaga. O que se encontra nas esferas do espírito ultrapassa o tempo, conduz a uma maior consciência, uma compreensão integral dum todo complementar; nela se experimenta o sentido profundo da vida que não se pode confundir com o sentido dos remos que a empurram.

 

A dor pode purificar o ego egoísta no sentido duma identidade superior. O ego identifica-se no acontecimento e perde-se na percepção do mesmo. As vivências e experiências são oportunidades para dominarmos os acontecimentos sem nos tornarmos vítimas deles. Para isso, é necessário andar de braço dado com a vida no bem e no mal, para ir mais além.

 

Se desejas mudança em ti terás de mudar o teu ambiente, se desejas a mudança do outro tens de te mudar a ti primeiro. Sem mudança não há futuro e o presente não passa de recordação! A decisão é tua.

 

Quanto às feridas que uma pessoa tem é necessário deixá-las cicatrizar, doutro modo, quanto mais se arranha nelas mais elas sangram e se apoderam de ti. Se se torna difícil colocar os vestidos no cavide, por outro lado, também a nudez não é inocente…

 

Se queres ser tu, tenta pensar e agir a partir do nós! Nele fomos criados e a ele voltamos! De resto, “ama e faz o que queres” (como dizia já Santo Agostinho)!

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

DEPRESSÕES BIPOLARES E DEPRESSÕES UNIPOLARES


Não há Razão para se envergonhar

António Justo

Uma pessoa diagnosticada com depressão unipolar, depressão bipolar, burn-out, borderline, ou outra doença, não deve ser colocada na gaveta do preconceito. Deve ter-se muito em conta que o paciente é uma pessoa como outra qualquer e com direito a ser tratado não como doente, mas como os considerados “normais”, com todo o respeito, dignidade e consideração. De facto não há ninguém que seja cem por cento são. Todos temos alguma “telha” e se pensamos não tê-la, ainda pior: isso significa que ainda não a descobrimos e quem sofre com ela são os outros. A pessoa faz parte da natureza com momentos estáveis e com outros menos estáveis; como a natureza, trazemos em nós as altas e baixas pressões psicológicas que originam dias soalheiros e chuvosos. Fazemos parte dum globo com diferentes zonas climática, ideias e ideologias. Há pessoas com regiões de alma mais instáveis com tsunamis, tempestades incontroláveis. Neste estado há que ir ao psiquiatra para conseguir estabilizar o próprio clima.

 

No meio de tudo isto há um problema grande que é o próprio preconceito e o preconceito dos outros no que toca à avaliação da doença.

 

As depressões unipolares tornaram-se entretanto socialmente mais aceites; especialmente o burn-out (esgotamento), adquirido pelo demasiado estresse, por se ter trabalhado demais e por não se ter poupado, indo mais além do que as próprias energias permitiam.

 

Mundialmente, cada vez mais pessoas sofrem de depressões unipolares. Depressões unipolares são as depressões em que as pessoas só sofrem de disposições depressivas enquanto nas depressões bipolares as pessoas sofrem de fases de depressão e de fases de euforia. Estas são mais raras e menos aceites pela sociedade. Há entretanto grandes diferenças de expressão de depressão e de grau de bipolaridade. Pessoas com depressões unipolares chegam a sofrer mais do que pessoas com depressões bipolares porque aquelas só têm fases depressivas. Naturalmente, tudo depende do grau da depressão que pode ser leve, média ou grave. O estado grave de depressão é descrito por doentes como o “inferno na terra”. Naturalmente também bipolares, nas fases de depressão, podem chegar a tais estados.

 

No dia-a-dia as pessoas de convívio com pessoas bipolares têm a tendência a verem em tudo que os pacientes fazem ou dizem como resultado da doença. Isto dificulta a disponibilidade do bipolar em reconhecer a bipolaridade. Todos nós temos características doentes e saudáveis. O alto grau de inteligência, de charme e brilho que muitos bipolares têm, só em parte terá a ver com a perturbação. O doente bipolar nota facilmente, quando está na fase de depressão, porque sofre (nesta fase é fácil reconhecer a doença). Sente-se, porém, muito bem na fase eufórica, não sentindo o patológico dela; reconhece a própria personalidade nela, considerando a fase depressiva, estranha à sua natureza, o que torna difícil o reconhecimento da própria doença.

 

Quem convive com uma pessoa unipolar ou bipolar, na sua fase depressiva, deve ter em conta que ela, por vezes, fica incapacitada de agir e de tomar iniciativa; muitas vezes tenta mas não consegue. Por isso o paciente precisa muito do acompanhamento e apoio de pessoa íntima para que aquele aceite o que ela diz e cumpra com a medicação. Muitas vezes o bipolar aceita tomar a medicação (estabilizadores de humor) na fase depressiva (fase desagradável de sofrimento) mas quer interrompê-la na fase eufórica (de felicidade). Na fase depressiva, às vezes, o paciente bipolar (tal como acontece com doentes de borderline) tende a ver a causa da sua infelicidade fora de si, criticando extremamente um pseudo-adversário que é responsabilizado pela sua situação e sofrimento. Na fase eufórica sente-se entusiasmado, fala muito, saboreando a sua genialidade e o seu aspecto excepcional e original, mas confundindo, muitas vezes, a fantasia com a realidade. Também chaga a ter prazer em fazer o destrutivo jogando com o risco.

 

Muitas vezes o psiquiatra diagnostica uma depressão unipolar em vez duma bipolar porque o paciente só se dirige a ele na fase de depressão unipolar sem mostrar as características da fase eufórica.

 

A oscilação de humor e das fases de maior ou menor acção pode, a nível social e individual, ser gerida de maneira a não se prejudicar a si nem aos outros. Se a doença ajuda a pessoa na sua vida social laboral e artística é uma questão de gestão pessoal se não interferem negativamente com terceiros. Há muitas pessoas, que se não tivesse sido a doença, não teriam atingido a celebridade que atingiram: Fernando Pessoa, Hermann Hesse, Sigmund Freud, Victor Hugo, Winston Churchill, Wolfgang Amadeus Mozart, Charles Chaplin, Napoleão Bonaparte, Abraham Lincoln, Elvis Presley, Woody Allen, e milhentos outros.

 

A criatividade de grandes artistas e personalidades mundiais foi, muitas vezes, alimentada pela doença bipolar.

 

Escrevo este artigo na continuação doutros textos “Distúrbio Bipolar ou Transtorno Bipolar” https://antonio-justo.eu/?p=1428 e “Distúrbio Bipolar”  https://antonio-justo.eu/?p=1200&cpage=1#comment-20291, para complementar aspectos tratados e comentários a eles feitos, e só com o sentido de ajudar. O motivo que me levou a escrever sobre isto foi o facto de conhecer grandes amigos que tinham esta doença e que viviam, por vezes, uma vida dupla de sofrimento a nível privado e de alegria a nível exterior.

Só nos podemos ajudar a nós mesmos ajudando os outros! Mas nós também fazemos parte do outro!

 

Aqui na Alemanha há muitos grupos de auto-ajuda e em Portugal e no Brasil também. Muitos são gratuitos, havendo outros em que se paga um contributo para despesas com programas próprios. No Porto há um grupo com o apoio duma médica especialista em depressões unipolares e bipolares: http://www.adeb.pt/

 

Se a doença for demasiado forte, chega a bloquear a pessoa. A fase depressiva pode matar a criatividade ou tornar a pessoa incapaz de se expressar artisticamente, por grandes fases. Importante é estar com eles porque sofrem muito embora não pareça. Os amigos são muito importantes e uma fé forte também. O diálogo na intimidade com Deus, ou com o universo, torna-se libertador e ajuda a tirar o gosto de azedo que a vida, por vezes, tem.

 

Quem tem a doença deve procurar assumi-la, não tendo vergonha de a ter. A vida dos chamados “normais” é, muitas vezes, mais “doente” ainda, que a daqueles que a normalidade considera doente. A esta, falta-lhes, por vezes, um pouco da sensibilidade que aqueles parecem ter a mais.

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

A Alma da Europa sofre – O seu Corpo também

QUINQUAGÉSIMO ANIVERSÁRIO DO CONCÍLIO VATICANO II

António Justo

Há 50 anos (11 de Outubro 1962) a Igreja Católica apostou no aggiornamento. João XXIII convocou os bispos de todo o mundo a reunirem-se em Roma, em concílio (2.400 bispos de todo o mundo, acompanhados de 200 teólogos e 100 observadores doutras confissões cristãs, cf. HNA de 15.10.2012).

 

Na abertura do Concílio, o Papa João XXIII deixou o trono em que era transportado e seguiu a procissão a pé.

 

O Vaticano II começou por reformar a liturgia passando o sacerdote a celebrar a missa de cara virada para a comunidade. A língua litúrgica (latim) deu lugar às línguas vernáculas. A primeira ordem maior – Diácono – precedente da ordenação do padre e da consagração de bispo, passa a ser acessível a homens casados. Intensifica-se o diálogo com outras confissões cristãs (ortodoxos e protestantes) através do movimento ecuménico. Os judeus passam a ser vistos como irmãos mais velhos dos cristãos.

 

Com o concílio a Igreja procurou reconciliar-se com o mundo moderno reconhecendo a liberdade religiosa e empenhando-se no diálogo com outras religiões. O reconhecimento da Igreja católica da liberdade religiosa fundamenta-se no Novo Testamento e no facto de cada ser humano, segundo a doutrina cristã, (imagem e filho de Deus) ser portador do gene divino e como tal a sua dignidade ser intocável e ter liberdade de consciência. A igreja institucional precisou de muito tempo para reconhecer na prática, os valores cristãos que a revolução francesa secularizou. Facto é que uma religião como o Islão, que não reconhece a dignidade humana ao indivíduo, não permitindo consequentemente a liberdade religiosa à pessoa, critica o catolicismo de se ter comprometido demasiado com o modernismo e acusa a “imoralidade” ocidental como consequência da liberalização.

 

Desde o Concílio tem havido grandes discussões e controvérsias entre a ala conservadora e a ala progressista da Igreja. Em águas agitadas da História, em momentos de transição, como aqueles em que nos encontramos, não é fácil chegar-se a compromissos na base da consideração das duas alas entre si. Um problema grande para a eclésia é o facto de muitos dos seus filhos prescindirem da comunidade e se arrogarem a apresentar o seu conceito de igreja como um conceito absoluto (no caso um absolutismo contra outro), quando segundo a mística católica se deve pensar e agir não só a partir do eu mas especialmente a partir do nós (cf. Trindade). Deparamos, por vezes, com uma tendência absolutista por parte da estrutura e um individualismo absolutista por parte de muitos dos seus críticos. De que há falta são personalidades fortes dentro da eclésia. Por todo o lado se encontram indivíduos célebres aplaudidos e feitos por esta ou aquela ideologia sem preocupação pela comunidade, que como o individuo é fraca, precisando os dois de ajuda. A ordem do dia para uns e outros poderia ser: ter compaixão uns dos outros na empresa da metanoia individual e eclesial!

 

De facto, os conservadores, se não o dizem podem pensar o seguinte: o que os progressistas exigem do Vaticano já se encontra praticado pela igreja evangélica e esta parece ter ainda mais dificuldade em congregar gente no serviço religioso do que os católicos. Por outro lado, se a Igreja Católica se aproxima mais da prática protestante isso corresponde, ao mesmo tempo, distanciar-se da Igreja Ortodoxa e das outras religiões. Por outro lado, o conservadorismo e autoritarismo reinante entre os muçulmanos têm ajudado os maometanos a afirmar-se nos meios seculares europeus. Também se observa nos meios progressistas (Europa e USA) uma mentalidade racionalista por vezes à margem da fé! Uma razão sem fé é fria e uma fé sem razão é escura. A desarmonia já se encontra no ser de cada pessoa. Para uns a necessidade de salvação manifesta-se numa aspiração individualista e para outros numa ideia colectivista. A situação da igreja institucional não é de invejar. Dará erros se se orientar para o conservadorismo e errará se se movimentar para o progressismo. O único elo que dará consistência a uma igreja diferenciada é o amor. Sempre que o amor falte na relação seja da parte institucional ou da parte individual, perderam as duas partes a razão, porque o que mantem a relação entre o tu e o eu é o nós (o paráclito). Deixa de haver acção para se passar à reacção e a reacção fomenta a entropia.

 

A ideologia torna-se cada vez mais forte, querendo uma minoria europeia e americana impor a sua mundivisão como a medida da renovação sem considerar a visão doutras igrejas cristãs fora do Ocidente. Muitas vezes parece confundir-se ideologia com fé. Por outro lado seria possível uma igreja petrina forte em que as igrejas locais tivessem mais poder de iniciativa.

 

Um outro problema institucional é o facto de, no cristianismo, um bispo por poder sacramental estar à frente duma igreja e poder continuar igreja mesmo separando-se da Igreja mãe. (Em 1970 o bispo Marcel Lefebvre não aceitou a celebração da missa em vernáculo fundando a Fraternidade Sacerdotal Pio X que exige o regresso às práticas anteriores ao Vaticano II). O Papa para os não perder tem-se esforçado dando-lhes a mão, mas ao fazê-lo descontenta aqueles que querem uma igreja mais ao modo do mundo moderno. Isto torna mais difícil as conversações e os consensos. Por isso até uma minoria de bispos pode condicionar a tomada de decisões a nível do Vaticano. Também a mim me custa verificar que a Igreja Católica não dê mais um passo abrindo o diaconado às mulheres. Um presbiterado, demasiado masculino, não se encontra muitas vezes preparado para um mundo que embora de comportamento macho afectado, é, na sua alma, feminino.

 

Parece ser óbvio que a Igreja petrina se abra mais no sentido da Igreja joanina.

O catolicismo, primeiro modelo e ideal global de comunidades orgânicas complementares, tem a consciência de ser uma comunidade de crentes (Communio) no mundo e não uma cultura que se quer impor ao mundo.

 

 

O desenvolvimento da personalidade humana inerente ao cristianismo é único numa fenomenologia das culturas. Naturalmente que uma religião que fomenta o Homem adulto não pode comportar-se como outras culturas que o querem súbdito.

 

É doloroso verificar-se como a Igreja Católica é atacada, quando ela continua a ser a garante da memória da Boa Nova que dá consistência a um mundo ocidental desorientado. Uma cultura, uma civilização precisa, para subsistir, não só da masculinidade da política e da economia (corpo) mas também da feminidade da religião (alma). Portugal atingiu o apogeu da sua história no momento em que melhor soube unir os dois elementos (corpo e alma) no seu agir (Formação da nacionalidade e Descobrimentos).

 

 

António da Cunha Duarte Justo

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Circuncisão no Islão e no Judaísmo: Acção Criminosa

Tribunal alemão toma uma Decisão corajosa

 

António Justo

A circuncisão de meninos no Islão e no Judaísmo, segundo a sentença do Tribunal Distrital de Colónia, constitui uma agressão criminosa.

 

Mais importante que a liberdade de religião é a integridade corporal e a autodeterminação da criança, argumenta o tribunal, na sua decisão de ontem, 26.06.2012.

 

O direito de autodeterminação das comunidades religiosas não se pode sobrepor ao direito humano da integridade corporal.

 

Este julgamento terá consequências muito importantes.

 

Esta decisão deveria ser um acto de encorajamento para políticos e outros tribunais no sentido de intervirem mais corajosamente em crimes de base cultural como casamentos forçados e crimes de honra, ainda muito em voga em determinadas culturas.

 

Até agora, o corte do clitóris das meninas (praticado em grande parte do mundo muçulmano) era considerado acto criminoso no Ocidente, mas o sofrimento do acto agressivo da circuncisão de meninos ainda não tinha chegado à consciência das pessoas.

 

A decisão do Tribunal é uma vitória contra a barbaridade e leva uma consciência mais sensível a actos culturais que não respeitam a dignidade e a integridade da pessoa e constitui um apelo ao respeito pelo direito dos que não têm voz.

A matança ritual de animais, como no caso muçulmano e judio, em que os animais são mortos duma maneira brutal porque morrem sangrando, não foi proibida na Alemanha por “respeito à religião”. Também aqui será necessária uma consciência mais afinada.

 

António da Cunha Duarte Justo

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PENTECOSTES – O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA ESPIRITUAL


Liberdade e Inovação são Qualidades do Espírito

 

António Justo

 

 

No Natal Deus desce à terra, torna-se carne/terra. Depois vem a Páscoa a apontar para a vida como via-sacra em que a Cruz se torna símbolo da existência que é feita de morte e de ressurreição. No Pentecostes completa-se o ciclo vital em que a natureza através da pessoa humana ergue os olhos da terra para o alto, para o céu, no reconhecimento de que o Homem é feito de terra e céu e Deus também. Proximidade e distância são partes integrantes da pessoa. As fronteiras do homem e do seu biótopo não se deixam definir pelo horizonte que o nosso olhar permite. Há o longe, o distante que chama e tudo move para lá dos nossos limites sensoriais. O longe só é perceptível aos olhos do coração.

 

O Pentecostes inicia a capacidade de respirar um ar invisível que tudo suporta. A experiência da luz (línguas de fogo que vêm do alto) afasta o medo e possibilita a aventura criativa e criadora. Cada ser fica cheio de luz, grávido de Deus. O problema é a crusta, o limite (identificador) que o envolve e leva a afirmar o limite contra o universal integrador. O Paráclito é a essência comum ao particular e ao todo; ele é o nós do eu e do tu, à imagem do eu (Pai) e do tu (Filho JC) que, em relação íntima, cria o terceiro, o nós (Espírito). Por isso a celebração do Pentecostes anda ligada à festa da Trindade. Ireneu de Lyon condensou a Trindade na frase seguinte: «O Pai é complacente e ordena, o filho obra e forma, o Espírito nutre e incrementa». Segundo a filosofia cristã o ser humano está chamado a ser parceiro divino da criação à imagem do JC na filiação divina. A relação criador-criatura faz do cristianismo um monoteísmo mitigado.

 

Assim, não chega correr com os outros; cristianismo é mais que compromisso, é ser margem e rio ao mesmo tempo, espírito e matéria em reconciliação. Na metáfora da realidade que a natureza oferece, no ciclo da água que na sua essência inclui, ao mesmo tempo, os estados sólido, líquido e gasoso, pode pressentir-se a essência do nosso ser: mudança e permanência, espírito e matéria, igual e diferente. O mesmo somos nós a nível de indivíduo e de eclésia. O Paráclito é um desafio à solidariedade e conciliação dos elementos, à capacidade de adaptação contínua ao novo, porque só assim permanecemos nós, não podendo ser reduzidos a mero leito onde a vida passa.

 

O espírito tem uma relação céptica perante o leito mas sem ele faltar-lhe-ia o seu fundamento para poder ser fluxo. A existência é feita de perguntas e respostas em contínua interacção. Parar numa pergunta ou numa resposta seria negar a vida; por isso o Espírito fala em várias línguas, também a tua e a minha. O espírito flui onde e como quer. Importante é a abertura e não a incrustação de vida em preconceitos teorias ou dogmas, como se a verdade e a realidade fosse apenas sólida. Se a afirmarmos como sólida ela é líquida e se a afirmarmos líquida ela é gasosa, sim porque a questão está na nossa visão de perspectiva que é selectiva e não inclusiva.

 

Pentecostes é também celebrado como o aniversário do nascimento da Igreja como comunidade com a missão de viver e levar a Boa Nova à humanidade e de a viver em comunhão com a natureza. Pentecostes vem do grego e significa o “quinquagésimo dia depois” da Páscoa; o Espírito germina na pessoa e na comunidade fazendo deles agentes com a capacidade de falar muitas línguas, a linguagem do amor que é percebida nas mais diversas paragens independentemente de raças e culturas.

 

Cinquenta dias após a “perda” do JC, a tristeza dos discípulos é compensada pela descoberta dele na pessoa e na comunidade na vivência do Espírito; agora a presença de Deus na Humanidade passa a ser cada pessoa, cada cristão que aja no espírito e consciência do JC que resume o espírito e a matéria.

 

A Comunidade eclesial é aberta a todos os povos (idiomas) não se impondo uma cultura sobre a outra sendo seu característico distintivo a ágape, a caritas, o amor. O que a torre de Babel dispersou antes, congrega agora o Paráclito envolvendo tudo no fogo do amor. O característico cristão é a relação e inter-relação pessoal expressa na relação do JC com a natureza-Pai e Espírito. Ao contrário doutras religiões, aqui, a norma é uma pessoa e não um livro e a ética não se reduz a uma subjugação, ao cumprimento de letras (leis) mas ao amor soberano que tudo diviniza. O ser humano na qualidade de filho de Deus pertence por natureza à família mais nobre, tornando anti-humana e ilegítima toda a prepotência, subserviência e opressão; estas constituiriam um atentado à dignidade humano-divina inerente a cada pessoa. Por isso, os ministérios públicos, as autoridades públicas, ministros, etc., deveriam exercer actividades de serviço às pessoas porque toda a dignidade vem e acaba na pessoa em comunhão com o todo.

 

A festa do Pentecostes é celebrada em toda a Igreja desde o Concílio de Elvira do ano 305. Com a descida do Espírito Santo, o dia eterno do Pentecostes torna-se o domingo dos domingos, o sábado dos sábados em que a acção divina se manifesta e realiza no e com o povo no mundo. A participação no Espírito Santo confere o dom das línguas e os dons do espírito. O ciclo litúrgico quer apontar para a realidade profunda que é o mistério da vida que é toda ela relação.

 

Ultrapassa-se a visão grega da vida da relação de sujeito-objecto passando toda a relação humana-divina-natural a ser uma relação de sujeitos entre sujeitos; isto é passa-se duma  consciência de relação sujeito-objecto para uma relação sujeito-sujeito que tudo personaliza e dignifica. A verdade passa a ser um acontecer e não um mero constructo abstracto ou anónimo. Como no ciclo da vida, a palavra de Deus (o Verbo) está na origem da vida tal como o fruto, a flor, a árvore se encontram já na semente.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e publicista

antoniocunhajusto@gmail.com

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